terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pessoas que vivem com o HIV em Angola (2): "FICAM ADMIRADOS COM A MINHA ALEGRIA DE VIVER"

Ana Maria Gastão, que vive com o HIV, é uma mulher que encara as suas adversidades de frente, está sempre pronta a encontrar formas de as resolver ou contornar. “Desde que comecei a trabalhar na Acção Humana (AH) a minha vida mudou, melhorou muito. Passei a ir às consultas médicas e aos poucos fui recuperando a minha saúde”.

É ela própria quem caracteriza a sua vida antes de trabalhar para a AH: “a minha vida era um inferno. Ficava muito doente e não conseguia tomar conta dos meus filhos. Eles nem sequer conseguiam ir à escola”.
Na altura ela vivia, com os filhos, no bairro Praia do Bispo, em Luanda, na casa de um tio. “Eu não trabalhava, não fazia nada”, revela. “Os meus irmãos vivem na Lunda-Norte, na cidade do Dundo. Vim a Luanda porque a minha filha era muito doentinha. Mas depois eu própria comecei a adoecer. Já não regressei à Lunda-Norte. Estou em Luanda há seis anos”.
Ela encontrou na AH o amparo que necessitava para estabilizar e mesmo dar um novo rumo à sua vida. Para além do salário, recebe apoio em medicamentos para si e os filhos.
Sem subvalorizar o trabalho e o salário que recebe, Ana Gastão acredita que o que mais a compensa na AH é pôr a sua experiência de vida ao serviço das pessoas que vivem com o HIV e enfrentam, sem forças, o estigma, a discriminação e o abandono da sociedade, seja no local de trabalho, na vizinhança e, mais doloroso ainda, na própria família.
“Tento amparar e acompanhar pessoas que vivem com o HIV. Vou com elas aos hospitais, às maternidades”…
Ana Gastão conta com a sua experiência pessoal, alicerçada em métodos que ganhou ao longo desses anos todos, nas várias acções de formação em que teve o privilégio de participar sob os auspícios da AH. O seu método de trabalho baseia-se no pragmatismo. “O meu método de trabalho consiste em ir ao hospital e aproximar-me, conversando com as pessoas que, visivelmente, estão muito afectadas e abaladas pela doença. Quando ficam a saber do seu estado de infecção pelo HIV muitas pessoas põem-se a chorar, a gritar, a fazer escândalo. Têm dificuldade de encarar a sua nova realidade. Pergunto o que têm e acabo por dizer que eu própria vivo com o HIV. Assim cria-se uma maior confiança e abertura. Estabelece-se uma maior comunhão de interesses”.
Ana Gastão tem uma agenda, onde anota os compromissos com os seus assistidos. “Se tiver que levar alguém aos hospital, vou muito cedo à casa dela, apanhamos juntos o táxi. Nos casos em que o paciente não está em condições de andar pelos próprios pés, requisito uma viatura da AH”.
Ana Gastão acompanha todo o processo de consulta, a começar pelo contacto com as catalogadoras, na recepção do hospital. Os doentes mais graves fazem as consultas no Hospital Esperança.

Laços de amizade

Uma das coisas que mais deixam Ana Gastão gratificada e a fazem continuar o seu trabalho de activismo em prol dos portadores de HIV e doentes de Sida são os laços que se estabelecem com os assistidos. Mais do que solidariedade, são laços de amizade e amor. “Já tive vários casos que me marcaram muito. As pessoas quando recebem a nossa ajuda ficam bastante gratas. É uma gratidão pura, que vem do fundo do coração. É que nós surgimos na vida delas no momento em que elas mais precisam de ajuda, no momento em que elas estão mais debilitadas no corpo e na mente. Quando se encontram connosco, na rua, agradecem e apontam-nos a outras pessoas, dizendo que fomos nós que lhes salvámos”.
Actualmente Ana Gastão faz o acompanhamento de seis crianças e cinco adultos. “No caso das crianças, se a mãe estiver em crise, eu própria levo-a à consulta. Ou se a mãe estiver a sentir-se cansada, encorajo-a, dou-lhe forças para não se deixar abater. As crianças chamam-me tia ou mesmo mamã”.
Ana Maria Gastão considera o estigma como um grande problema, ainda por superar. “Há famílias que abandonam os seus doentes de Sida ou então, pura e simplesmente, não aceitam encarar a realidade da doença. É complicado”, desabafa.
Ana Maria Gastão é uma mulher expedita, expansiva, simpática, à vontade. Essa maneira de ser a ajudou a encarar e superar a fase menos boa da sua vida. “O trabalho do activismo deu-me uma nova inspiração para viver. Às vezes, quando dizemos aos nossos assistidos que também vivemos com o HIV eles não acreditam, ficam admirados com a nossa alegria de viver”.
E quando as pessoas lhe perguntam aonde, apesar da sua situação, vai buscar forças para continuar a encarar a vida pelo prisma das cores mais alegres, ela faz uso das seguintes palavras: “Digo a todas as pessoas portadoras do HIV que Deus é muito maravilhoso e ama-nos, e que é só tomar os medicamentos, tenho fé que Deus um dia vai mostrar uma cura para nós”.
Ela é crente, é religiosa praticante, mas do mesmo modo que acredita na força da palavra de Deus também acredita no poder da ciência, dos medicamentos. “Sou crente e rezo para o Bom Deus. Sou portadora e por enquanto não tenho necessidade de usar medicamentos. Usei-os na altura em que fiz o corte da transmissão vertical, quando estava grávida da minha filha. O meu CD4 está óptimo, não tenho nenhuma doença oportunista que me meta cansada. Sinto-me maravilhosa com o apoio e as informações que recebi. Sinto-me bem preparada para o trabalho que faço. Viva a saúde!”.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Pessoas que vivem com o HIV em Angola (1): "CONTINUO A ALIMENTAR SONHOS"

Educadora de infância, Marcelina Machado, 39 anos, separada, é portadora do HIV, tal como os dois filhos. Já chegou a estar doente, mas recuperou graças ao tratamento médico e ao acesso aos medicamentos, facilitado pela Acção Humana, que também lhe proporcionou ajuda psicológica. Ela usa a sua experiência pessoal ajudando outras pessoas a encarar e a aceitar o seu estado de seropositividade. E a procurar ajuda médica. Eis aqui o seu depoimento, na primeira pessoa.

“Soube do meu estado de seropositividade há quatro anos. Então vivia com o meu marido e um filho, que tinha três anos. A partir de certo momento o meu filho andava sempre doente. Como eu estava grávida, não o podia levar sempre às consultas. Era o meu marido que o fazia. Um dia o médico pediu-lhe para fazer o teste do HIV, juntamente com a criança, e ele chegou em casa todo embirrado. Até que uma vez, por uma simples coisa, chateou-se todo, pegou as suas coisas e foi-se embora de casa. Até hoje não sei se chegou a fazer ou não o teste.
Na altura vivia no Kassequel, na zona do Catinton. Assim que o meu marido me abandonou regressei à casa da minha mãe. Mas os meus filhos continuavam a adoecer muito.
Eu trabalhava. Sempre trabalhei. Sou educadora num lar de infância. No meu serviço tem médicos e enfermeiros. Passei a levar para lá o meu filho, para ser consultado. Como ele nunca melhorava, apesar da medicação, um dia o médico mandou que ele fizesse o teste do HIV. Deu positivo. Uma das enfermeiras contou às minhas colegas do serviço que o menino tinha HIV e que eu, como mãe, por ignorância, lhe estava a fazer sofrer. Alguém lá do serviço foi contar à minha família, alegando que o menino tinha Sida e eu já sabia. Toda a minha família veio contra mim. Deram-me 48 horas para abandonar a casa, porque senão, disseram-me, acabaria por contaminar outras pessoas. Por isso não poderia continuar no meio deles. Quando digo “a minha família” refiro-me à minha mãe e aos meus irmãos.
Tive de arrendar uma casa. A minha própria saúde também se foi debilitando. Eu estava muito em baixo, não sabia que rumo dar à minha vida. Foi nessa altura que, graças à Deus, através de uma pessoa amiga, descobri a Acção Humana. Se até hoje eu e os meus dois filhos estamos de pé é graças à Acção Humana, que nos recebeu e nos tem apoiado bastante. Já recebi ajuda em meios financeiros, bens alimentares e até em termos de renda de casa. Eu e os meus filhos temos acesso às consultas e aos medicamentos contra o HIV. Graças a Deus estamos bem.
A minha colaboração com a Acção Humana consiste em procurar pessoas com HIV e que não querem aceitar a sua condição de seropositividade. Converso com essas pessoas, aconselho-as a irem ao hospital, acompanho-as às consultas. Às grávidas aconselho a fazerem o teste, para que não lhes aconteça o que me aconteceu e possam beneficiar, se forem seropositivas, do corte da transmissão vertical, livrando assim os bebés da contaminação pelo HIV.
A minha vida, desde que colaboro com a Acção Humana, deu uma volta completa. Estou mais serena. Acredito na vida. Cheguei à conclusão que o HIV não é um bicho de sete cabeças, só é preciso saber lidar com ele. É preciso fazer os testes, a medicação, alimentar-se bem, levar uma vida sem vícios, nada de perder noites.
Aos que não são seropositivos aconselho a não ignorarem as pessoas que estão com o HIV. Os que hoje são seropositivos nunca contaram que um dia estariam nessa situação. Usem preservativos nas relações sexuais, seja com quem for. Não confiem na aparência saudável das pessoas.
A minha vida continua. E alimento sonhos. O grande sonho da minha vida é conseguir um lar e ver os meus filhos formados. É o meu grande sonho.”