segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Escritor João Tala: “Conto os meus mortos e revejo as cicatrizes”


 


O poeta e ficcionista João Tala lançou, recentemente, na União dos Escritores Angolanos, o livro de contos “Rosas & Munhungo”. Tala é autor dos livros “A Forma dos Desejos”, poesia, prémio Primeiro Livro da UEA, 1997, “O Gasto da Semente”, poesia, menção honrosa do Prémio Sagrada Esperança do INALD, 2000, “A forma dos Desejos II”, Chá de Caxinde, 2003, “Lugar Assim”, poesia, UEA, 2004, “Os Dias e os Tumultos”, contos, Grande Prémio de Ficção da UEA, 2004, “A Vitória é Uma Ilusão de Filósofos e de Loucos”, Grande Prémio de Poesia da UEA,  2005, “Surreambulando”, contos, UEA, 2007, e “Forno Feminino”, poesia, Kilombelombe, 2009.

Isaquiel Cori

Vida Cultural - Cada conto refere-se a uma mulher. São curtas mas grandes estórias de amor. Amores vividos ou sonhados?
João Tala - As personagens principais dos contos em Rosas & Munhungo  são mulheres distintas que vivem diversas situações, ou são reconhecidas num cenário do pós-guerra imediato. Um traço comum entre essas mulheres é a superação de traumas e outros estados psicológicos daí decorrentes, pelo amor. A característica estilística tem uma grande carga onírica onde o real vivido se revê na composição do sonho.
VC - O título "Rosas & Munhungo" sugere amor e boemia. Quer comentar?
JT - Rosas, como sendo flores, é simbologia feminina, portanto, associada à mulher. Essas personagens, a maioria delas, adaptaram-se a ambientes que lhes eram hostis, ou então a carência cede-lhes o argumento para “ir à rua”. Daí a expressão kimbundo munhungo que é sinónimo de libertinagem, num sentido mais ousado da boemia.
VC - A proveniência médica do autor está muito presente pelo uso notório de termos do jargão médico. Este uso é propositado ou decorre, digamos, de deformação profissional?
JT - Deformação profissional e porque a personagem representa gente. A essência da medicina são as pessoas.
VC - No estrito sentido do texto pressentem-se algumas ressonâncias intertextuais que fazem lembrar o argentino Jorge Luis Borges, o moçambicano Mia Couto, o angolano Boaventura Cardoso e mais remotamente o também angolano Luandino Vieira. Assume essas influências?
JT - Leio muitos escritores. Mas, no interesse da minha escrita, são os latino-americanos que mais me inspiram. Começou, esse interesse, com a leitura da colecção “Vozes da América Latina” que o nosso INALD dava à estampa nos primórdios de 80 do século passado, principalmente quando li “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo. Seguiram-se depois “O Trovão entre Folhas”, de Roa Bastos, os livros de Gabriel Garcia Marques, entre outros. Do Boaventura Cardoso fascinou-me mais “A Morte do Velho Kipacaça”. Já Luandino Vieira e Mia Couto, salvas as diferenças, parecem enquadrados dentro da mesma dinâmica de reinvenção que a mim fascina, mas não creio que perceba na minha escrita esse modo de conceber o texto. Borges é uma leitura mais recente.
VC - Desde “A Forma dos Desejos I” a mulher tem um lugar muito especial nas suas obras. É seu propósito constante homenagear a mulher? As mulheres tiveram ou têm um papel determinante na sua vida?
JT - Esclarecer sobre isto seria mais do domínio da psicanálise, já que é quase uma constante também na minha poesia. Evidentemente, não vou passar o filme da minha infância e flagrar o papel delas no meu “esquecimento”. Fica para depois.
VC - O contar recorrente de estórias e histórias humanas do tempo da guerra faz parte dos seus livros? Acredita que isso faz falta à reconciliação nacional?
JT - Não o faço pela reconciliação. Faço-o pelo hábito de contar. O militar que conte os cartuchos e o que ainda resta para esmagar. Eu conto os meus mortos, revejo as cicatrizes, teço sonhos, amo e amargo-me. Não fui voluntário quando um dia me cangaram para a tropa onde eu conviviria mais de perto com a guerra. Isso assim, é também matéria para poesia. Escrevo sobre aquilo que vivi e o que me está mais próximo é a guerra. Se analisar bem, saberá que só falta aos políticos reconciliarem-se e deixarem de arrastar os militantes dos partidos nas suas paranóias. De resto, nem a Bíblia reconciliaria. Por exemplo, não acredito que o malanjino não se dê bem com um bieno ou que um bakongo seja inimigo de um umbundo. Só entre militantes de uns e de outros é que se destilam ódios. É maka deles, os políticos.
VC – Sendo um dos autores mais premiados no país, a sua obra não deveria ter uma maior divulgação em Angola e no estrangeiro?
JT - Para tal, falta ao João Tala a cunha. Dizem que isso se faz com a imprensa e com agregação a grupos privilegiados. São coisas de acontecer.
VC - O que o faz escrever? O que o move enquanto escritor?
JT - A leitura. Eu leio mais do que escrevo e isso me inspira, insufla no meu cérebro imagens que persigo no acto da escrita. Depois há o hábito de contar, há a beleza da poesia.
VC - Na qualidade de poeta, que avaliação faz do legado poético de Agostinho Neto?
JT - Posta a pergunta em termos de “legado” fica difícil responder. Agostinho Neto concebeu belas criações poéticas, com um simbolismo que se remetia aos conteúdos da sua época, com plena satisfação estética. No seu tempo o neo-realismo fazia escola com preocupações que tinham no centro a vida simples dos homens mais simples. E no seu caso, a sua terra então colonizada e oprimida, estava no centro das suas inquietações.
VC - A literatura angolana está robusta? Vê nela sinais de renovação?
JT - A geração à qual pertenço, iniciou nos anos 80 uma movimentação que daria em fartos acontecimentos literários. Essa inspiração colectivista, depois que o tempo fez a sua natural selecção, permite hoje distinguir a maturidade dos que jamais se despojaram do interesse pelo estudo e trabalho. Sim, essa literatura está mais robusta. Quanto aos sintomas de renovação ou inovação costumam estar mais associados ao desempenho universal da literatura. Somos apenas peças dessa grande engrenagem, cada um contribuindo para o produto final. Só o génio é outra coisa.


OBS: ESTA ENTREVISTA FOI ORIGINARIAMENTE PUBLICADA NO SUPLEMENTO VIDA CULTURAL DO JORNAL DE ANGOLA, EDIÇÃO DE 09 DE OUTUBRO DE 2011.







quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Moçambique: UM PAÍS DE POESIA

Já foi publicada a antologia da nova poesia moçambicana - POETAS DE MOÇAMBIQUE - na nova edição da Revista Zunai, com seleção e organização de Amosse Mucavele (Movimento Kuphaluxa), nota introdutória de Ricardo Riso e poemas de Tânia Tomé, Sangare Okapi, Ruy Ligeiro, Emmy Xyx - Manuela Xavier, Manecas Cândido, Helder Faife, Dinis Muhai, Andes Chivangue, Celso Manguana, Amin Nordine e Mbate Pedro.
Segue o link para a antologia POETAS DE MOÇAMBIQUE:
http://www.revistazunai.com/poemas/index.htm
Abaixo reproduzo a introdução que que Ricardo Riso fez para a antologia.



Ricardo Riso

25 de julho de 2011.http://www.revistazunai.com/poemas/ricardo_riso_introducao.htm


Em boa hora chega para o público brasileiro esta antologia de poesia moçambicana organizada por este jovem guerreiro das letras chamado Amosse Mucavele, que esse novo canal de comunicação, a internet, e o amor pela literatura fizeram o prazer de nos apresentar.
Com pouco mais de cem anos, a poesia moçambicana pode se orgulhar de sua trajetória vigorosa escorada em nomes que se consagraram através de uma lírica contundente e crítica do triste passado colonial, tais como de Noémia de Sousa, Rui Knopfli e José Craveirinha, e mais recentemente Mia Couto, sem dúvida, um dos principais escritores do universo lusófono. Dentre tantos outros poetas que poderia citar, estes quatro são dignos representantes do consolidado sistema literário moçambicano e de reconhecimento entre os amantes da poesia em língua portuguesa.
Entretanto, a poesia moçambicana carece de maior disseminação entre nós, ainda mais quando se trata de agentes contemporâneos, pois por aqui temos apenas Paulina Chiziane, Nelson Saúte, Eduardo White e Luís Carlos Patraquim. Estes, já com alguma fortuna crítica em nossas universidades, porém restritos ao mundo acadêmico apesar dos dois primeiros possuírem títulos publicados no país. Por isso, a pertinência dos nomes selecionados por Amosse Mucavele para oferecer um panorama, ainda que breve, da poesia moçambicana contemporânea.
O leitor perceberá que um macrotema é desenvolvido com frequência pelos poetas aqui reunidos: o país, assim como as implicações do destino que tomou com a independência e de como a população absorveu irrealizações dos sonhos da revolução. Enquanto para José Craveirinha a noção de pertencimento à terra vinculava-se ao direito legítimo e incondicional da pátria livre do jugo colonial, basta lembrar o “Poema do futuro cidadão” e seus versos, “Homem qualquer/ cidadão de uma Nação que ainda não existe”, lemos em Celso Manguana o desencanto da contemporaneidade, “A nenhuma/ cidadania/ pertenço”, de um país à mercê da corrupção e da submissão ao neoliberalismo imposto pelos países desenvolvidos, situação de indignação do poeta por essa “pátria que me pariu”. O canto sofrido desse poeta revela-se na grave crise que assola famílias, “Dividida a pátria/ entre o coração/ e o estômago”, e recorre à intertextualidade ao livro de Nelson Saúte, “A pátria dividida” (1993), para demonstrar a inércia do quadro socioeconômico da nação desde o fim da guerra de desestabilização em 1992. Um país dilacerado entregue a esses jovens como demonstra Manecas Cândido: “Logo que nasci/ deram-me presentes/ de pobreza e um país/ de angústias”.
Refletir poeticamente sobre o país é recorrente na poesia moçambicana. A intertextualidade com esse macrotema vem desde Rui Knopfli e o clássico “O País dos Outros”, no final dos anos 1980 Eduardo White lança “País de Mim”, já Ruy Ligeiro publica “O País de Medo” (2003) sinalizando para as incertezas que dominam o moçambicano na atualidade. Novamente, a referência ao Velho Cravo se apresenta em Ruy Ligeiro: “volto a um país que não existe/ senão quando o habito/ entre abutres de sonhos/ que vêm enovelados/ em galerias de medo”.
Sonhos dilacerados por uma elite corrupta são mostrados pelo olhar ácido aos desvios éticos e políticos de Amin Nordine: “Um a outro os sabores desejados/ Com muitas regalias ministrados/ Banqueiros de banquete obsequiados/ Milhentas vezes da colheita graúda/ Cintilar grandes pratos arrojados;/ Melhorem o celeiro da fome aguda/ Ou vire trigo o grito nos acuda/ Em nome da plebe implorar ajuda”. Descaso e descaminhos que geram a indecisão dessa geração, Mbate Pedro desvela o seu medo diante da amargura de seus pares, “a geografia dos meus medos/ é limitada (em toda a sua extensão)/ pela angústia do meu povo”, enquanto Sangare Okapi desnuda o seu interior em conflito: “há um pequeno país/ no meu país:/ chama-se angústia”.
Entretanto, nem só de críticas ao país versam os poetas como o leitor poderá verificar em “Meu Moçambique” de Tânia Tomé. Neste, tal como em “Hino à minha terra” de José Craveirinha, a celebração ao país se apresenta e assim canta Tomé, “Eu sei Moçambique,/ no cume das árvores, na sede incontinente/ da minha falange, Rovuma ao Incomati,/ no xigubo terrestre dos pés descalços/ e em todos tambores que surdem/ das mãos coloridas nos braços em chaga”.
Concentrei-me na maneira como os poetas contemporâneos pensam poeticamente a nação moçambicana, mas outros temas e vertentes literárias são trabalhados pelos poetas desta antologia. Vale ressalta o simbolismo corrosivo repleto de metapoética e erotismo de Andes Chivangue, nome que merece maior visibilidade, assim como a maneira como Sangare Okapi e Mbate Pedro trabalham o lirismo erótico e a metapoética. Estas características também estão nos poemas de Tânia Tomé, Dinis Muhai, Manecas Cândido, para além do intimismo e das metáforas inusitadas e bem construídas de Helder Faifer e Manuela Xavier (Emmy Xyx).
Para finalizar, parabenizo a revista Zunai por esta bela iniciativa ao abrir espaço para os novos agentes deste país de poesia, tão perto e tão distante de nós, Moçambique.


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terça-feira, 13 de setembro de 2011

"Sandumingu: O Nome de um Miúdo", livro de Frederico Ningi


Frederico Ningi (dir) com o escritor Gociante Patissa
Isaquiel Cori

Acabo de ler o livro de Frederico Ningi, “Sandumingu: O Nome de um Miúdo”, editado pela União dos Escritores Angolanos na colecção “Sete Egos”.

É uma narrativa de 24 páginas, que durante vários dias ficou na minha mesa de leitura à espera de uma oportunidade para ser lida. O subtítulo “O Nome de um Miúdo”, ao remeter imediatamente para a ideia de um livro para crianças, é enganador. Se nas primeiras linhas, efectivamente, o autor parece hesitar entre a narrativa infantil e a, digamos, “adulta”, tão logo envereda para um retrato desapiedado de um sujeito embriagado pelos vinhos do poder.
O que parecia, pela sugestão do título e a hesitação inicial do autor acima referida, um livro destinado primordialmente a leitores infantis, explode tão logo numa prosa satírica, de escárnio, uma pintura de tintas fortes, carregadíssimas, a respeito da vida de um novo-rico que dá precisamente pelo nome de Sandumingu.
A narrativa é rápida, concisa, focada em cenas tão hilariantes que não pude deixar de, de quando em vez, largar umas boas e revitalizadoras gargalhadas.
Sandumingu não é um miúdo. É um indivíduo que se apresenta como “Sandumingu de Sandumingu”, do alto da mais pura arrogância. É um dos milhares de indivíduos que, favorecidos por uma conjuntura histórica, económica, política e social peculiares, se ergueram rapidamente do campesinato para a superestrutura do poder político, económico e empresarial.
Frederico Ningi desconstrói esse indivíduo, desnuda a sua psicologia, ridiculariza a sua arrogância e dá ao leitor um festim de riso de que poucos terão desfrutado ao ler um livro.
Retrato hilariante do novo-riquismo angolano, lá para o fim, a história desemboca num conflito entre Sandumingu e o Senhor-Figura, em que intervêm, ou são mencionadas, a chefe Rabú e a doutora Sorna…

O Autor

Frederico Ningi (n.17/02/1959) é natural de Benguela. Jornalista, artista plástico e poeta, ultimamente está muito voltado para a exploração do potencial artístico das novas tecnologias de informação e comunicação.
Membro da União dos Escritores Angolanos, é  autor dos livros:

 - Os Címbalos dos Mudos (poesia)1994.

- Infindos nas Ondas (poesia) 2002.

- Títulos de Areia (poesia) 2003.

 Tem poemas e crónicas esparsos por publicações angolanas e estrangeiras.


O livro por si mesmo (Excertos)

“Sandumingu, emocionado, descalçou os sapatos dos seus segredos e disse aos integrantes da sua equipe: - Eu fui nomeado e quero ser rico – e então vamos ter de arrumar e limpar o nosso caminho tirando todas as pedras do caminho. Vamos perdoar os casos perdoáveis, se casos da nossa causa forem. – Prometo trabalhar para todos, mas primeiro para mim e para os que estiverem comigo nessa caminhada, prometo dar coragem, que não tenho, posso dar a esperança, que não está em mim.” Pág. 14.

…//…

“Logo depois apareceu o próprio Sandumingu, em pessoa, para resolver as questões de tesouraria com a clínica e apresentar-se junto da equipe médica de serviço naquela noite no banco de urgência: - Eu sou Sandumingu de Sandumingu, como podem ver – e este paciente é o meu tio. Qualquer coisa, é só ligar para o meu móvel. – Por favor, não se acanhem…

- Ele é o que de quem? – perguntou o médico de serviço.

O seu assistente: - é o famoso famosíssimo Sandumingu de Sandumingu. O médico assistente: - é famoso porquê? – Na vaidade e na arrogância.” Pág 15.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Estou de volta, estou de saúde recuperada, obrigado!


 ISAQUIEL CORI

Durante vários meses deste ano de 2011 estive doente. Em alguns momentos eu próprio temi pela minha vida. Mas nunca me senti sozinho. A minha família esteve sempre a meu lado, dando-me um conforto inestimável. A minha esposa esteve na linha da frente do apoio emocional extraordinário de que desfrutei.

Os meus filhos foram o meu acalento nos longos momentos de solidão nos vários internamentos hospitalares a que tive de me submeter. Foi bom, valeu a pena a confirmação de que posso e deverei sempre contar, incondicionalmente, com o apoio dos meus entes queridos.

Mas há outras pessoas que não sendo meus parentes tiveram uma intervenção decisiva na recuperação do meu bom estado de saúde. Sublinho aqui com particular apreço o senhor José Ribeiro, Presidente do Conselho de Administração das Edições Novembro, cujo apoio decisivo é o principal responsável pelo restabelecimento da minha saúde. O senhor Eduardo Minvu, Administrador da mesma empresa, teve igualmente, na sequência, um papel fundamental.

Em Portugal, para onde fui encaminhado, tive a prestimosa ajuda da Dra. Luísa Figueiredo, directora dos serviços de radiologia do Hospital de Santa Marta.  O Dr. João Jácome de Castro, director dos serviços de endocrinologia do Hospital Militar Principal, será sempre merecedor do meu sentimento de gratidão e apreço, tal como a Dra. Maria Santana Lopes, nutricionista. Apesar de discreta, foi decisiva a intervenção do senhor Artur Queiroz.

Tal sentimento é extensivo ao Dr. Henrique Dias, ortopedista, bem como ao Dr. Carlos Morais, angiologista e cirurgião vascular.


Este meu preito de gratidão não ficaria completo se não mencionasse o Dr. Elieccer, angiologista cubano da Clínica Sagrada Esperança, em Luanda, e o enfermeiro Tintas, da mesma clínica.

Afinal, ainda existem pessoas de bom coração sobre a face da Terra. Foi bom comprovar essa verdade, que até então me parecia uma ficção.

De resto, obrigado aos internautas que nunca deixaram de visualizar este meu blog, que, reitero, é uma janela aberta para a vida em Angola e no Mundo.


quarta-feira, 20 de julho de 2011

Notas de um Verão frio em Lisboa

Isaquiel Cori | Lisboa



Ponte Vasco da Gama


Lisboa, a encantadora capital de Portugal, vive os dias de um verão atípico, com a temperatura ambiente a obrigar os forasteiros mais friorentos, sobretudo ao cair da noite e ao princípio da manhã, ao uso de roupas adequadas.

A cidade continua a atrair imensos cidadãos estrangeiros, apesar das notícias pouco animadoras a respeito da crise que afecta o país. O Rossio é a meca que todo o mundo sabe e é um deslumbre percorrê-lo todo, por entre a multidão de vozes em várias línguas, as montras apelativas das lojas e as esplanadas, quase sempre abarrotadas de clientela, dos restaurantes. A calçada, antiga mas muito bem cuidada, remete-nos imediatamente para o universo poético de Cesário Verde, que no século XIX descreveu, com uma beleza e precisão definitivas (Cristalizações), o trabalho pesado dos calceteiros lisboetas (“terrosos e grosseiros”).

Num outro lado da cidade, na parte oriental, estão jóias da modernidade como o Oceanário (considerado por muitos o melhor do mundo) e a ponte Vasco da Gama (cujo vulto enorme estende-se por toda a dimensão do olhar).

Por estes dias um fantasma percorre Lisboa e todo o Portugal. É o fantasma da crise económica que assombra os portugueses e ensombrece o Verão. A crise ainda não marca o quotidiano de modo exuberante mas já preenche os principais espaços das televisões e dos jornais. O recente anúncio do imposto extraordinário de 50 por cento sobre o subsídio de natal foi recebido pela população, de modo geral, com desagrado e ao mesmo tempo com resignação resultante da compreensão da necessidade de se consentir sacrifícios para se ultrapassar a situação.

O país, carregado de dívidas e com um défice orçamental enorme, tem de implementar, em três anos, um programa de austeridade imposto pela Troyka (União Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), com reformas estruturais que irão repercutir em todos os sectores da actividade económica e social. Prevêem-se, ao menos, dois anos de recessão e o desemprego deverá agravar-se, atingindo em 2012 os 13,2 por cento.

A grande dúvida que paira em muitos espíritos é se os sacrifícios exigidos pelo governo valerão mesmo a pena, quando é cada vez mais patente que os problemas e as soluções ultrapassam o quadro português e estendem-se a toda a zona do euro. Muitos analistas sustentam a teoria da conspiração e denunciam um ataque em toda a linha contra a moeda única europeia por forças do mercado interessadas na supremacia do dólar norte-americano. Nesse quadro, as todo-poderosas agências de notação, predominantemente americanas, com a Moodys à cabeça, são encaradas como as principais desestabilizadoras do mercado europeu. Só para lembrar, na semana passada, a sentença da Moodys, que atirou a dívida pública portuguesa à categoria de lixo, suscitou o repúdio da sociedade lusa que se uniu num sentimento geral de orgulho nacionalista. Aliás, a dita sentença da Moodys teve o condão de levantar, a nível europeu, todo um coro de solidariedade para com Portugal e aumentar a percepção geral a respeito do poder nefasto de tais agências.

Se o futuro próximo e distante de Portugal é mais do que complicado, hoje por hoje a vida em Lisboa segue o seu curso normal. As férias de verão levam muita gente às praias e os festivais musicais que se vão sucedendo reúnem multidões sedentas de diversão. Mas as pessoas sabem o que se passa e o que as espera nos próximos tempos, não fossem os cidadãos portugueses indivíduos muito bem informados. Os telejornais e os debates televisivos são acompanhados atentamente até nos restaurantes e os jornais, segundo estatísticas recentes, são cada vez mais procurados.

No verão os jornais adoptam estratégias diversas para aumentar as vendas. Só para citar um exemplo, o Diário de Notícias está a oferecer gratuitamente com as suas edições das segundas-feiras, quartas e sábados livros de bolso, com pouco mais de meia centena de páginas, que reúnem contos de autores universais. É uma verdadeira delícia reencontrar assim textos de mestres como Edgar Allan Poe, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Guy de Maupassant, e outros.
Raramente a imprensa consegue alcançar tamanha expressão de serviço público!

(Texto publicado na edição de 17/07/2011 do Jornal de Angola)


domingo, 2 de janeiro de 2011

Kandengues ontem, kotas hoje

Isaquiel Cori

Profundamente envolvidos na aventura de viver, cabisbaixos no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido pelos minutos e horas dos dias, nos transforma. Mas há dias em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.
Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de um dia de trabalho tão esgotante e entediante como os outros, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem, está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.
Foi como se tivesse apanhado um soco no peito. “Kota eu, desde quando?”, exclamei, quase cambaleando.
Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um profundo olhar sobre a minha vida. “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”
Lutando pela vida, a vida transcorrera sobre mim e eu não me apercebera do tempo que me corróia. Independentemente da minha vontade, a vida e com ela o tempo chamavam-me à responsabilidade.
“Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, assumindo então a minha condição de “kota da banda”.



O meu aldrabão favorito

Isaquiel Cori

Os aldrabões assumidos, confirmados e reconfirmados nos seus atributos, são figuras muito nossas conhecidas. Eles pululam em nosso redor.
Há os que se apresentam puros, inconfundíveis, até mesmo perfeccionistas: neles, o aldrabar já é um modo de vida. São, digamos assim, artistas da aldrabice.
Mas entendamo-nos: aqui, estamos a falar dos bons aldrabões, dos indivíduos em todo o caso honestos na sua desonestidade, e coerentes, porque sistemática e repetidamente incoerentes.
É fácil identificá-los nas suas falas versáteis e fluentes e nos gestos largos com que dão mais força às suas estórias engenhosas.
São aldrabões porque é assim que vivem e alimentam o seu ego. Mas porque já sobejamente conhecidos raramente provocam danos. Suscitam o riso, tiram-nos do sério e contribuem imensamente para o nosso bem-estar.
Alguns foram tão marcantes na nossa infância que as suas estórias continuam a povoar-nos o imaginário e eles próprios a habitar a nossa memória.
Há uma geração de ex-crianças do Kassequel do Buraco e do Kassequel do Lourenço, bem como da Calemba, do tempo em que os bairros, mais do que um conjunto de casas eram um sentimento incrustado no coração das pessoas, que conheceu muito bem o Mano Azevedo. Ele narrava-nos histórias incríveis, grosseiramente mentirosas e falsas, de tal modo que, trinta e tal anos depois, essa figura ergue-se na lembrança dos hoje adultos como a consumação da aldrabice e da mentira.
Mas trinta e tal anos atrás ele fora o portador do fantástico e do inverosímil para um pelotão de crianças ávidas do maravilhoso. As suas estórias convocavam e apelavam ao sonho, dinamitavam as frágeis, falsas e arbitrárias fronteiras da nossa realidade.
Até hoje, o Mano Azevedo é o meu aldrabão favorito.

Jornalismo Angolano Hoje

Da importância dos prémios aos profissionais


Isaquiel Cori

Os prémios, seja em que actividade for, constituem sempre um importante elemento de estímulo à criatividade e inovação e uma forma de conferir alguma transcendência àquilo que se faz todos os dias. 
Em algumas profissões um dos principais inimigos da eficiência contínua é o tédio, que resulta de se estar a fazer todos os dias a mesma coisa.
Daí que, pessoalmente, saúdo todos os prémios que visam incentivar os profissionais de uma determinada área ou a estimular e encorajar o acesso de novatos a essas áreas. Aliás, é minha opinião que os prémios deviam multiplicar-se, em todas as áreas, sejam profissionais, artísticas, desportivas, académicas ou culturais.
Enquanto profissional do jornalismo, tenho acompanhado o frenesim que se estabelece na classe quando se aproxima a data do anúncio dos vencedores dos concursos, sejam provinciais ou nacionais. Há como que um despertar da consciência de que se deve trabalhar mais e melhor para se ser considerado candidato ao galardão máximo. Ora, aí, como se diz vulgarmente, já é tarde e má hora.
Sendo anuais, os prémios precisam de ser abordados, pelo profissional interessado, com um projecto estratégico de trabalho coerente, cuja concretização se estenda ao longo de grande parte do ano. Isto porque a maioria dos júris tende a considerar mais os candidatos que se tenham revelado não só com qualidade mas também com bastante regularidade.
Independentemente da agenda de iniciativa das respectivas empresas, os jornalistas devem estabelecer uma agenda de trabalho pessoal, que deverão naturalmente submeter à direcção do órgão a que pertençam, garantindo assim a sua exequibilidade material e operacional.
O género mais susceptível a premiação é a reportagem, dado o seu maior impacto, resultante do facto de poder captar de forma mais completa e humanamente interessante os vários recortes da vida e de exigir do jornalista não só um grande domínio da narrativa jornalística mas também um olhar incisivo e acutilante sobre aquilo que constitui o objecto da reportagem. Os outros géneros, naturalmente, também são de considerar.
No fim de tudo, quando se anunciam os vencedores, caso não tenha sido um deles, o profissional não deve esmorecer: a sua postura pró-activa em torno de um trabalho continuado no tempo, certamente, terá contribuído para a elevação da sua reputação profissional.
Os prémios são, assim, também, um pretexto para se fazer algo que se eleve para lá da rotina do quotidiano. Daí que, efectivamente, deviam multiplicar-se, inclusive no âmbito interno das redacções. A competição profissional, saudável e leal, devia ser incrementada, de forma transparente, com a concessão de estímulos que tanto poderiam ser financeiros, materiais e até mesmo simbólicos.
Todos, certamente, sairiam a ganhar.