quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

PREFÁCIO A UMA ANTOLOGIA DO CONTO ANGOLANO

Publico aqui o prefácio a Antologia do Conto Angolano, ainda no prelo, a ser editada pela editora portuguesa Caminho, de autoria de Zetho Cunha Gonçalves e João Melo. O prefácio faz um apanhado panorâmico da literatura angolana contemporânea e situa a obra dos autores antologiados. É um bom exemplo de como uma antologia literária deve ser feita: isto é, deve fazer-se acompanhar de um texto que situe os autores e sua obra no contexto mais geral do sistema literário, justificando, de certo modo, a razão de terem sido eles os escolhidos. Este texto foi tomado do site Buala: Cultura Contemporânea Africana (www.buala.org/pt/a-ler/prefacio-a-uma-antologia-do-conto-angolano). As ilustrações são reproduções de obras do artista plástico angolano Marco Kabenda, igualmente tomadas do mesmo site.


Na origem e na formação das literaturas nacionais dos países africanos de língua oficial portuguesa, com as peculiaridades e motivações inerentes a cada país – diferindo mais que tudo os países continentais (Angola e Moçambique) dos países insulares (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – ilhas desabitadas aquando do seu achamento, e países bilingues, com os seus crioulos a par da língua oficial portuguesa) –, sempre a poesia teve a primazia na afirmação nacionalista (ou de identidade nacional, conforme se queira) sobre a prosa de ficção. E a razão encontra-se no facto de que, só a partir dos anos 30 do século XX, a prosa narrativa de ficção se começou a consolidar com inequívoca qualidade estética, numa perfeita ruptura com as literaturas coloniais.
Em Angola (cuja literatura escrita remonta a 1849, com a publicação, em Luanda, do primeiro livro impresso na África subsariana, Espontaneidades da Minha Alma. Às Senhoras Africanas, poemas do angolano José da Silva Maia Ferreira, ou antes ainda, com os escritos de António de Oliveira Cadornega no século XVII), é com Óscar Ribas e Castro Soromenho que se fecunda, nasce e impõe a moderna prosa de ficção narrativa.
Óscar Ribas, que viria a tornar-se um dos mais importantes e fecundos etnólogos e etnógrafos angolanos, reconhecido e galardoado internacionalmente por esse seu trabalho, publica, em 1927 (aos 18 anos de idade), na sua Luanda natal, a novela Nuvens que passam. Dois anos depois, dá à estampa O resgate de uma falta, outra novela.
São obras de juvenília, é certo – mas nelas está já o gérmen angolense e etnográfico que balizará toda a obra ficcional do autor, com todos os defeitos e todas as qualidades que tal opção estética comportará. Não raro, a sua obra narrativa de ficção se torna excessivamente explicativa, nela se encontrando ausente todo o poder sugestivo que a estrutura literária e a consumação estética exigem, com o etnógrafo sobrepondo-se quase sempre ao ficcionista.
Partindo dos contos, das lendas, dos ritos e das cosmogonias dos povos da Lunda, no Nordeste de Angola (que tão bem conheceu, e com quem intimamente conviveu na infância, em parte da adolescência, e já na idade adulta), Castro Soromenho, ao publicar, em 1938, o livro de contos Nhári. O drama da gente negra, reabilita e dignifica a memória cultural desses povos ágrafos ao lhes dar “voz” – ou melhor: restituir “a voz” –, na voz mais alta (ou assim cotada nos cânones do Ocidente), que é a “voz da escrita”.

Ao transpor, impiedosamente, para a sua escrita (que é a sua voz autoral), toda a tradição e memória culturais desses povos (em confronto com a ideologia colonial dominante), Castro Soromenho consolida, pela epopeia que nessa mesma obra se consuma – sempre em crescendo, até à derradeira e magnificente “Trilogia de Camaxilo”, com os romances Terra Morta (1949), Viragem (1957) e A Chaga (1970) – a modernidade da literatura ficcional angolana.
A década de 50 do século XX, na sequência do movimento «Vamos descobrir Angola!» (1948) e do «Movimento dos Novos Intelectuais de Angola» – através da sua revista Mensagem (1951-1952), logo seguida por Cultura II (1957-1961) – e da importantíssima actividade editorial da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, e, subsequentemente, a actividade das Publicações Imbondeiro, em Sá da Bandeira (actual Lubango), da responsabilidade de Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, e dos Cadernos Capricórnio, no Lobito, dirigidos por Orlando de Albuquerque, trouxeram novas perspectivas à criação e divulgação da emergente literatura angolana.
Agostinho Neto e António Jacinto, dois dos mais importantes intelectuais ligados ao movimento de Mensagem, deixaram na poesia a sua marca indelével na literatura angolana. Porém, ambos produziram ficção breve – estórias ou contos (ainda que obra reduzida, em volume quantitativo) –, na prossecução dos propósitos nacionalistas que norteavam a geração de Mensagem. A inclusão dos seus contos nesta antologia, mais que só uma homenagem, é, também, um acto de justiça, que a sua qualidade estética plenamente justifica.
Uanhenga Xitu – que poderia muito bem ter pertencido à geração da revista Mensagem ou de Cultura II –, por razões políticas (foi preso político e esteve no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde – onde escreveu grande parte da sua obra –, de 1962 a 1970), só em 1974 se revela como escritor, trazendo para a literatura angolana as “vozes da sanzala”, a oratura do interior, em sua polifonia linguística, carregada do humor inerente às situações simultaneamente trágicas e cómicas – bem patentes no conto aqui reproduzido, Bola com feitiço –, o que o torna, no dizer de Salvato Trigo, “inequivocamente um dos maiores ‘africanizadores’ da literatura angolana”.1
Henrique Abranches (que integrou o grupo de colaboradores de Cultura II), é autor de uma vasta obra literária e plástica, que vai do ensaio histórico e antropológico, à poesia e ao teatro, e do conto ao romance, passando pela ficção científica e pela banda desenhada. Alimentada por múltiplos interesses e inquietações, a obra ficcional de Henrique Abranches tem na História do próprio país e no resgate da literatura da tradição oral (pela reelaboração estética do maravilhoso e do fantástico, tornando não raro a escrita numa espécie de segunda voz da oratura), a sua marca e a sua vitalidade mais constantes.
Mário António, que publicara na revista Mensagem (a cuja geração pertence) o seu primeiro conto, construirá a sua obra ficcional reelaborando alguns contos da tradição oral angolana (“Histórias tradicionais recontadas livremente”, assim as designa o autor), como é o caso do conto aqui seleccionado, O homem que queria casar-se com a filha do Sol e da Lua, com todo o seu imaginário mítico, o seu poder encantatório e mágico, à semelhança e sob a nítida influência de Castro Soromenho. Outra temática (e esta afim de muita da sua poesia) é a questão da mestiçagem física e cultural na sociedade crioula de Luanda, de que se destacam os contos e novelas de Crónica da cidade estranha.
Arnaldo Santos e José Luandino Vieira pertencem à geração de Cultura, sucedânea da geração de Mensagem. São gerações altamente politizadas e politizantes, que utilizam a literatura como forma de denúncia, não raro panfletária, dos desmandos do colonialismo, e a colocam na vanguarda da formação e consciencialização da identidade nacional. E tanto assim é, que muitos dos intelectuais que as enformaram se tornaram dirigentes dos movimentos de libertação (sobretudo do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola), passando pelas masmorras da polícia política salazarista, como foi o caso de Agostinho Neto, António Jacinto, Henrique Guerra, Luandino Vieira e Uanhenga Xitu, para citar apenas o nome de autores aqui representados.
Deve-se à geração de Cultura II, essencialmente formada por poetas, e sob os auspícios de Castro Soromenho e à influência da literatura brasileira, através de escritores e poetas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima (João Guimarães Rosa chegará depois, fulminante), “o projecto de criação de uma ficção angolana.” “Sobretudo através do conto.”, sendo esses mesmos autores “reunidos depois na antologia Contistas angolanos, 1960, da Casa dos Estudantes do Império, e, mais tarde, uns tantos nas antologias da Imbondeiro.”2
A cidade de Luanda, a cidade histórica e a cidade mítica, bem como os seus musseques, são o cenário comum a Arnaldo Santos e Luandino, do mesmo modo que a infância (A Cidade e a infância é, aliás, o título do primeiro livro de Luandino) é a vitalidade, a voz polífona, a crueldade, a cumplicidade e a transgressão, e se torna ela mesma personagem na tessitura das próprias narrativas, avivando a denúncia das contradições sociais e raciais na sociedade colonial.
Arnaldo Santos tem vindo a construir, desde 1960 (quando publicou o seu primeiro conto e o seu primeiro livro de poemas, Fuga), uma obra onde a memória e a poesia, a história recente do país e as transformações sociais nela implícitas, se aliam numa afirmação plena de valorização e enriquecimento da literatura angolana, de que A Boneca de Quilengues, uma das suas ficções mais recentes, é perfeito exemplo.
    José Luandino Vieira, porventura o mais conhecido e traduzido escritor angolano contemporâneo – escritor na linha directa de João Guimarães Rosa –, é autor fundacional de uma língua e de uma estilística, de uma estética caldeada por as mais variadas contribuições culturais e linguísticas, trazendo, pela escrita, à modernidade da ficção narrativa, uma oralidade radicalmente nova, encantatória e fulgurante de poesia. E é justamente essa força capaz de reinventar a língua portuguesa, revificando-a pela transgressão e violentação da sua convencionalidade estéril, que faz de José Luandino Vieira um dos vultos maiores da nossa contemporaneidade literária, assinando algumas obras-primas, como as estórias de No antigamente, na vida e Macandumba, ou os romances Nós, os do Makulusu e João Vêncio: os seus amores.
No resgate da literatura da tradição oral, e numa atenção crítica aos desmandos do quotidiano seu contemporâneo, também Dario de Melo (cuja obra na área da literatura infanto-juvenil é de capital importância) e Henrique Guerra se têm vivamente empenhado, construindo cada um, com sua voz própria e pessoalíssima cosmovisão interventiva, uma obra onde as palavras são para ser lidas como se fossem cantadas. Com muito gesto, conforme a tradição, e sempre acompanhadas pelo bater compassado e encantado das palmas.
Jofre Rocha, o poeta cujo canto é nascido da muita e de todas as sedes de contar, tem na mesma génese a construção e elaboração das suas estórias sobre as gentes humildes dos musseques luandenses. Não por acaso se chama “Estórias do musseque” o seu primeiro livro de ficção, burilado numa escrita onde a atenção ao coloquial padrão se transforma numa pessoalíssima e vigorosa angolanização da língua portuguesa.
Ruy Duarte de Carvalho entra na literatura angolana, em 1972, com a publicação de Chão de oferta, pela poesia – e pela porta mais alta: a de uma voz de catarse, “De uma nação de corpos transumantes/confundidos/na cor da crosta acúlea/de um negro chão elaborado em brasa.”3E voz, desvairadamente pessoal, telúrica. Voz de cisão, transmudante e transumante, inaugural. E é, na sequência da publicação de A decisão da idade (reunião da sua Obra Poética até então, em 1977), que Ruy Duarte de Carvalho dá à estampa Como se o mundo não tivesse leste – estórias do sul e seca, a sua primeira obra de ficção.
São estórias – e é a essas estórias que se vão buscar As águas do Capembáua, a estória que aqui se dá a ler, antologizada. Telúrica, e sábia de transumância: outros universos, enfim, na prosa de ficção angolana, de voz eivada e levada do deserto, lá do Namibe, no Sul do país, por Ruy Duarte de Carvalho, dono e senhor de uma das obras mais sólidas e avassaladoras da leitura antropológica da Terra e da humanidade sua habitante, vivente e sobrevivente, cujo corolário é a imensidão desse fresco enformado por Vou lá visitar pastores (1999), As paisagens propícias (2005), Desmedida: Luanda-São Paulo-São Francisco e volta. Crónicas do Brasil (2006) e A terceira metade (2009) – tetralogia dos mapas secretos da Terra, trânsfugas e comunicantes, coniventes – e a sua voz inteira. Em viagem, em atenção e registo lapidar e soberano – epopeia, em seu canto maior.
Pepetela (essencialmente romancista, não obstante a sua obra contar com um livro de contos e algumas peças de teatro) vem elaborando na literatura angolana de ficção uma espécie de epopeia fragmentada e em socalcos, quer pelos motivos que se propõe tratar, quer pelos tempos em que as acções decorrem. A obra de Pepetela revela um levantamento sociológico ímpar, de Angola e da angolanidade, narrado ao leitor com a mestria e a sageza de um contador de estórias a voz plena.
Manuel Rui, cujo primeiro livro de contos, Regresso adiado (1973), reflectindo o exílio e a dicotomia África/Europa, e, de onde é retirado o conto dado à estampa nesta antologia – inquestionavelmente um dos seus contos mais emblemáticos, quer pela temática [a humilhação ou a alienação do homem angolano durante o colonialismo, e onde a figura do mulato – Mulato de sangue azul – é uma metáfora contundente da sociedade colonial angolana, com todas as suas contradições de sangue, de raça e de classe social, pois se “Os brancos adiantam que mulato é filho de uma nota de vinte paus (nota de vinte escudos, ou seja, o preço de uma relação sexual de um branco com uma prostituta negra); os pretos, sempre que um mulato arreganha, cospem que mulato não tem terra.”], quer pelo seu alto nível de realização estética –, tem vindo a afirmar-se, com uma obra vasta e multifacetada, trabalhando o coloquial padrão das ruas de Luanda e seu natural “reinventar” da língua portuguesa, o seu absurdo quotidiano, o seu humor, a sua ironia fulminante, como uma das vozes mais estimulantes do panorama literário angolano, de que é justo salientar as novelas Quem me dera ser onda e De um comba.
Fragata de Morais constrói as suas narrativas mesclando a tradição da oralidade com as situações absurdas e hilariantes do quotidiano (sobretudo luandense), numa escrita quase de oratura, eivada de humor e espantada leveza, a que a crítica social sempre “ajindunga” e dá à estória a imagem mais fiel da impressão digital do seu autor.
Jacques Arlindo dos Santos é outro caso de “maquinar” humor nas estórias que nos inventa, onde a alegoria se nos apresenta como um dos seus recursos estilísticos mais constantes. Mas o que Jacques Arlindo dos Santos melhor faz na sua obra ficcional, é “a história das mentalidades, sem tirar nem pôr. Acredite quem quiser.”, disse, um dia, João Melo, para logo acrescentar: “Não faltam, até, as trepidantes aventuras sexuais.”
Boaventura Cardoso traz para a escrita um experimentalismo linguístico, numa “redescoberta de Angola”, pela sua linguagem e onirismo dela decorrente. Isso mesmo (e de modo mais explícito) nos diz o próprio autor:
Sem pretendermos influenciar a apreciação do leitor sobre o nosso processo de escrita, gostaríamos, no entanto, de frisar a linguagem gramaticalmente angolanizada, a sintaxe reinventada para surtir ritmos sincopados dos falares africanos, o recurso a linhas curvilíneas dos fios da história e a constante repetição de frases, o que é uma das componentes de fundo da narrativa afro-banto.4
E essa “envolvência da linguagem banto do maravilhoso e fantástico”5no seu discurso ficcional é um dos encantamentos, nem sempre fáceis, da sua obra literária.
José Mena Abrantes é um nome que se tem distinguido essencialmente no domínio da escrita para teatro, ou sobre o teatro – para além de ser, também, fundador ou co-fundador, e encenador, de vários e importantes grupos no panorama nacional, como é o caso do “Elinga Teatro”, formado nos anos de 1980. A sua obra, quer como dramaturgo, quer como ficcionista, alimenta-se da matéria temática da História do país (inclusive da História recente, com as inevitáveis sequelas da longa e terrível guerra civil e seus protagonistas – com toda a violência, terror, inumanidade e perfídia) em consonância com as literaturas orais, de cujo poder ancestral José Mena Abrantes recolhe e remaneja o sentido transcendente que torna a esperança possível – e a Vida, para quem já praticamente não existe, uma espécie de “vingadora do Além”.
O que primeiro ressalta na obra de Fernando Fonseca Santos é a força telúrica e o encantamento poético da sua escrita. Recorrendo a lendas e mitos fundadores da tradição oral, sobretudo dos povos do centro e Sul de Angola, Fernando Fonseca Santos caldeia o maravilhoso e o fantástico dessa memória ancestral, tanta vez visionária, com a História do país, quer a mais recente (em que a presença da tragédia da guerra civil tem papel preponderante), quer a História mais recuada, onde a afirmação nacionalista se rescreve, reflectindo o autor “a necessidade da literatura e da cultura angolanas recuperarem e readaptarem a herança das culturas orais das suas várias comunidades.”6
Paula Tavares, indiscutivelmente um dos nomes a reter no panorama da poesia moderna angolana, rememorando e resgatando tradições ancestrais e seus ritos; incorporando adágios e provérbios na sua obra (quer poética quer narrativa), traz com a narrativa Cartas de Noéji e Ana Joaquina, uma visão da História de Angola mais recuada, a do grande Império da Lunda. A obra de Paula Tavares, construída a partir de um atentíssimo olhar feminino, é uma obra profundamente religiosa – não tanto pelo seu quase constante diálogo com os temas bíblicos, mas no sentido mais fundo de religação das “coisas” do Mundo: a Terra e o erotismo dos corpos sobre ela; a sensualidade dos cheiros, desde a infância remota; os frutos cantados como quem os possui e saboreia, amante. Não raro, em Paula Tavares, a prosa (crónica ou conto) é proesia, prosema, Poema.
João Melo, contista revelado em 1999 com Imitação de Sartre e de Simone de Beauvoir, traz para a ribalta literária, numa linguagem surpreendente de humor e sarcasmo, o “desbundante” quotidiano angolano dos nossos dias, através de uma escrita que revela um ficcionista com arguto senso de observação, capaz de flagrar como poucos os descompassos da cena urbana luandense e situá-los sob as lentes de uma ácida ironia. Sob esse particular, pode-se verificar que os contos do autor não raro retomam algumas personagens caras à prosa angolana contemporânea como as crianças marginalizadas, por exemplo, mas sem qualquer piedade, com uma linguagem crua que ilumina essas criaturas sob uma nova perspectiva.7
Em João Melo, para além da mestria iconoclasta na construção narrativa do contar e fazer (en)cantar das suas estórias, é de realçar, ainda, a atenção e o espaço que a temática da mulher e/ou da condição feminina detêm na sua obra.
José Luís Mendonça, poeta sobejamente conhecido e autor de uma das obras mais consistentes da poesia angolana contemporânea, é aqui revelado como contista, numa estória onde o maravilhoso e o fantástico são as traves mestras de que a narrativa se constrói e sustenta, num diálogo sereno da modernidade literária com a voz da tradição e da ancestralidade mítica e fundacional.
João Tala é outro poeta que, à semelhança de José Luís Mendonça, encontrou na estória e no seu contar uma outra forma de comunicabilidade e continuidade do fazer poético. Uma inventividade e uma frescura discursivas, onde a “surrealidade” do quotidiano e a herança literária advinda do movimento surrealista se dão as mãos, fazem de João Tala uma outra voz firme no panorama da nova (ou mais recente) produção ficcional angolana.
Luís Kandjimbo, cuja obra ensaística sobre a literatura angolana se tornou já um marco fundamental nas nossas letras, é outro poeta a quem também só o poema não basta como forma de expressão e criação literária, trazendo para as suas estórias a memória cosmopolita em confronto com os múltiplos quotidianos urbanos, com particular enfoque para a sua antiga e sempre jovem cidade de Benguela.
Tal como José Luís Mendonça, também o autor destas linhas se revela aqui como contista.
José Eduardo Agualusa é um mistificador impenitente – quero eu dizer: um ficcionista nato, um contador d’estórias de voz bem colocada e mão cheia, na escrita. E a escrita de José Eduardo Agualusa é uma escrita “viandante”: uma prosa de trazer o mar todo a uma praia única e como que transumante e transcontinental (de Angola, Áfricas, Europas, Brasil), numa proposta de aproximação e encontro, de doação e partilha, de inquirição e festa, de revelação e magia. As narrativas de José Eduardo Agualusa – da crónica ao romance, passando pelo conto –, fluem entre a História mais recente do país (num olhar não isento de humor e rebeldia), e o “maravilhoso” da literatura fantástica ou do realismo mágico, na linha de um Juan Rulfo, de um García Márquez ou de um Jorge Luis Borges.
A obra de José Eduardo Agualusa, iniciada com o romance histórico A Conjura, em 1989, é uma das obras mais límpidas, mais seguras e consistentes, no universo da ficção contemporânea de língua portuguesa.
Luís Fernando, para quem a crítica social produzida através do trabalho estético sobre a História e o quotidiano mais recentes é uma das suas imagens de marca mais consistentes, ao falar dos propósitos e característicos da sua obra, afirma que a elaboração da mesma é “unicamente para proporcionar humor, coragem, optimismo e alegria ao leitor”, porque “a vida é um caleidoscópio de emoções onde a componente riso e boa disposição deve estar presente.”8
Carmo Neto, não obstante a sua ainda parca obra publicada, é outro espantoso cronista de costumes, através da criação de personagens e situações buscadas nos quotidianos luandense e malanjino, socorrendo-se de uma estrutura narrativa que Osvaldo Silva9 assim descreve:
As intrigas [na obra de Carmo Neto] são caracterizadas por episódios de viés picaresco, burlesco e até paródico, tendo nas personagens, e na rede de relações que essas constituem, o centro simbólico da crítica dos valores, discursos e ações que enformam o universo perverso das novas ordens sociais e políticas. De tal sorte que o aparente carácter fragmentário da obra é degenerado pela noção de afinidade subjacente ao estatuto semântico e temático conferido às personagens, numa elaboração temporal que justifica o recurso às memórias do presente e do passado.
Ismael Mateus traz para a sua obra o centro dos furacões do poder, onde acção governativa, intriga política e seus actores se expõem numa trama narrativa consistente, sustentada por uma prosa desembaraçada, sem excessos descritivos, e onde a acção se sobrepõe à tentação fácil de divagar por explicações e justificações que certamente assassinariam todo o prazer jubiloso da fruição plena do texto.
A prosa de Marta Santos é uma prosa carregada de poesia, de sensualidade, não raro de um humor desconcertante, mas sempre com um profundo respeito pela sabedoria que os mais-velhos transmitem aos mais novos, e que é um dos valores fundamentais da cultura angolana da tradição oral.
A presença da personagem do mais-velho em contraponto com a personagem da criança é um dos característicos da obra de Marta Santos, também ela autora de literatura infanto-juvenil, na qual recupera a tradição da contação de estórias ao luar, em roda de uma fogueira, numa transmissão de memórias e ensinamentos ancestrais pela voz sábia dos mais-velhos aos mais novos e às crianças.
Roderick Nehone traz para a prosa angolana a tragédia e a comédia (as duas faces da moeda) do quotidiano, o seu lado absurdo e caricato, ou o seu lado fantástico e maravilhoso. A escrita move-se numa prosa límpida, trabalhada, aparentemente simples na sua construção e funcionalidade narrativas.
A obra de Roderick Nehone revela uma leitura atentíssima dos paradigmas da sociedade angolana contemporânea, onde a condição da mulher, sobretudo no período do pós-guerra, assume um papel de extrema relevância. Tal como o humor trasbordante, que é por certo um dos maiores encantamentos desta prosa.
Sónia Gomes trabalha na sua obra uma temática obsessiva e rara no panorama da literatura angolana: a maternidade, a saúde pública e o flagelo do HIV/SIDA. Profissional de saúde, Sónia Gomes parte da experiência do seu dia a dia como enfermeira para dar ao leitor uma obra inquietante e poderosa, não raro de pendor moralista, e como que um despertar de consciências no vertiginoso redemoinho de transformações e desigualdades sociais em que a sociedade angola se move.
Isaquiel Cori é outro autor de parca obra publicada, que tem na História recente de Angola o húmus da sua criação literária. E nela, o que sobremaneira ressalta, é a vivência e a construção das suas personagens, arrancadas em carne viva aos dramas e às tragédias vividos ao longo da guerra civil que durante anos devastou o país. A obra ficcional (ainda breve) de Isaquiel Cori, a par do seu trabalho como jornalista, trazem à literatura angolana mais uma voz na afirmação da sua pujança e multiplicidade.
Profundamente influenciado pela obra de José Luandino Vieira, de Mia Couto e do poeta brasileiro Manoel de Barros – cujo cordão umbilical é o seu catapultar festivo e trangiverso para a escrita –, “Ondjaki é”, segundo Pepetela, no texto que escreveu para a orelha de E se amanhã o medo (Editorial Caminho, Lisboa, 2005), “um jovem que escreve uma ficção viçosa e jovem. (…) Esperemos que saiba sempre aliar o estudo e a pesquisa com o sentimento de prazer, que fornece a frescura e a alegria a um texto.”
De literatura emergente e de combate, a literatura angolana de ficção é hoje uma literatura com uma pujança e uma modernidade que a edição, a crítica, os estudos universitários e a fortuna de leitores têm vindo a solidificar e a confirmar. Jovem, é certo, se comparada com outras – mas literatura com estórias para contar. Estórias vivas – e muitas! –, cheias de gente dentro – com seus dramas, suas alegrias, seus casos e magias, seu(s) humor(es). Esse é o segredo, a sedução da moderna ficção angolana: ter estórias para contar, encantar, e enfeitiçar – em suas afinidades e ressonâncias, seu rosto e voz (polífona e polígrafa) voltados para o Mundo.



Antologia do Conto Angolano. Em colaboração com João Melo. Alfragide: Editorial Caminho, no prelo.

1. 1. TRIGO, Salvato. Uanhenga Xitu. Da oratura à literatura. Cadernos de Literatura, 12, 1982.

2. 2. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa 2. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, vol. 7, 2.ª ed., 1986, pp. 54 e 55.

3. 3. CARVALHO, Ruy Duarte de. A decisão da idade. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 3.ª ed., 1977, p. 13.

4. 4. CARDOSO, Boaventura. A escrita literária de um contador africano. In: Cavalcante Padilha, Laura e Calafate Ribeiro, Margarida (Org.). Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p.18.

5. 5. Ibid.

6. 6. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 123.

7. 7. MACEDO, Tânia. Posfácio. A poesia, retrato sem molduras. In: Melo, João. Auto-retrato. Lisboa: Editorial Caminho, 2007, pp. 73 e 74.

8. 8. FERNANDO, Luís. In: www.portalangop.co.ao, 6 de Março de 2010.

9. 9. SILVA, Osvaldo. Degravata: entre ter, aparecer e ser. Revista Crioula − Revista Eletrônica dos Alunos de Pós-Graduação, n.º 5. DLCV-FFLC-USP, Maio 2009.