domingo, 2 de janeiro de 2011

Kandengues ontem, kotas hoje

Isaquiel Cori

Profundamente envolvidos na aventura de viver, cabisbaixos no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido pelos minutos e horas dos dias, nos transforma. Mas há dias em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.
Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de um dia de trabalho tão esgotante e entediante como os outros, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem, está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.
Foi como se tivesse apanhado um soco no peito. “Kota eu, desde quando?”, exclamei, quase cambaleando.
Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um profundo olhar sobre a minha vida. “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”
Lutando pela vida, a vida transcorrera sobre mim e eu não me apercebera do tempo que me corróia. Independentemente da minha vontade, a vida e com ela o tempo chamavam-me à responsabilidade.
“Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, assumindo então a minha condição de “kota da banda”.



O meu aldrabão favorito

Isaquiel Cori

Os aldrabões assumidos, confirmados e reconfirmados nos seus atributos, são figuras muito nossas conhecidas. Eles pululam em nosso redor.
Há os que se apresentam puros, inconfundíveis, até mesmo perfeccionistas: neles, o aldrabar já é um modo de vida. São, digamos assim, artistas da aldrabice.
Mas entendamo-nos: aqui, estamos a falar dos bons aldrabões, dos indivíduos em todo o caso honestos na sua desonestidade, e coerentes, porque sistemática e repetidamente incoerentes.
É fácil identificá-los nas suas falas versáteis e fluentes e nos gestos largos com que dão mais força às suas estórias engenhosas.
São aldrabões porque é assim que vivem e alimentam o seu ego. Mas porque já sobejamente conhecidos raramente provocam danos. Suscitam o riso, tiram-nos do sério e contribuem imensamente para o nosso bem-estar.
Alguns foram tão marcantes na nossa infância que as suas estórias continuam a povoar-nos o imaginário e eles próprios a habitar a nossa memória.
Há uma geração de ex-crianças do Kassequel do Buraco e do Kassequel do Lourenço, bem como da Calemba, do tempo em que os bairros, mais do que um conjunto de casas eram um sentimento incrustado no coração das pessoas, que conheceu muito bem o Mano Azevedo. Ele narrava-nos histórias incríveis, grosseiramente mentirosas e falsas, de tal modo que, trinta e tal anos depois, essa figura ergue-se na lembrança dos hoje adultos como a consumação da aldrabice e da mentira.
Mas trinta e tal anos atrás ele fora o portador do fantástico e do inverosímil para um pelotão de crianças ávidas do maravilhoso. As suas estórias convocavam e apelavam ao sonho, dinamitavam as frágeis, falsas e arbitrárias fronteiras da nossa realidade.
Até hoje, o Mano Azevedo é o meu aldrabão favorito.

Jornalismo Angolano Hoje

Da importância dos prémios aos profissionais


Isaquiel Cori

Os prémios, seja em que actividade for, constituem sempre um importante elemento de estímulo à criatividade e inovação e uma forma de conferir alguma transcendência àquilo que se faz todos os dias. 
Em algumas profissões um dos principais inimigos da eficiência contínua é o tédio, que resulta de se estar a fazer todos os dias a mesma coisa.
Daí que, pessoalmente, saúdo todos os prémios que visam incentivar os profissionais de uma determinada área ou a estimular e encorajar o acesso de novatos a essas áreas. Aliás, é minha opinião que os prémios deviam multiplicar-se, em todas as áreas, sejam profissionais, artísticas, desportivas, académicas ou culturais.
Enquanto profissional do jornalismo, tenho acompanhado o frenesim que se estabelece na classe quando se aproxima a data do anúncio dos vencedores dos concursos, sejam provinciais ou nacionais. Há como que um despertar da consciência de que se deve trabalhar mais e melhor para se ser considerado candidato ao galardão máximo. Ora, aí, como se diz vulgarmente, já é tarde e má hora.
Sendo anuais, os prémios precisam de ser abordados, pelo profissional interessado, com um projecto estratégico de trabalho coerente, cuja concretização se estenda ao longo de grande parte do ano. Isto porque a maioria dos júris tende a considerar mais os candidatos que se tenham revelado não só com qualidade mas também com bastante regularidade.
Independentemente da agenda de iniciativa das respectivas empresas, os jornalistas devem estabelecer uma agenda de trabalho pessoal, que deverão naturalmente submeter à direcção do órgão a que pertençam, garantindo assim a sua exequibilidade material e operacional.
O género mais susceptível a premiação é a reportagem, dado o seu maior impacto, resultante do facto de poder captar de forma mais completa e humanamente interessante os vários recortes da vida e de exigir do jornalista não só um grande domínio da narrativa jornalística mas também um olhar incisivo e acutilante sobre aquilo que constitui o objecto da reportagem. Os outros géneros, naturalmente, também são de considerar.
No fim de tudo, quando se anunciam os vencedores, caso não tenha sido um deles, o profissional não deve esmorecer: a sua postura pró-activa em torno de um trabalho continuado no tempo, certamente, terá contribuído para a elevação da sua reputação profissional.
Os prémios são, assim, também, um pretexto para se fazer algo que se eleve para lá da rotina do quotidiano. Daí que, efectivamente, deviam multiplicar-se, inclusive no âmbito interno das redacções. A competição profissional, saudável e leal, devia ser incrementada, de forma transparente, com a concessão de estímulos que tanto poderiam ser financeiros, materiais e até mesmo simbólicos.
Todos, certamente, sairiam a ganhar.