quarta-feira, 29 de agosto de 2012

ELEIÇÕES GERAIS EM ANGOLA 2012

Campanha eleitoral de "quase quase"

 
Isaquiel Cori

A campanha para as eleições presidenciais e legislativas de 31 de Agosto, para mim, deixou uma sensação de “quase quase”, de algo incompleto, inacabado. Nesse período, os políticos esgrimem os seus mais profundos argumentos para aliciamento do eleitorado, chegando ao extremar das posições. Em todo o mundo é nas campanhas eleitorais que se revelam os instintos mais básicos dos políticos e em que os seus discursos não escondem ao que vêem e põem mais claramente a nu o seu destino e vocação: a manutenção ou a conquista do poder.
A campanha eleitoral, se não chegou a ser ruim, foi morna. Num previsível crescendo, vieram ao de cima algumas questões que, fora desse período, o bom senso convencionou não abordar, por ferirem a ainda tão frágil reconciliação nacional. A memória da guerra, que vem sendo fixada, num meritório esforço de exorcismo, através de livros de vários autores/actores preocupados em fornecer subsídios aos historiadores, foi lançada na agenda da campanha por várias formações políticas. Eu, que julgava que a guerra, não devendo jamais ser esquecida, transformara-se em mero registo da história e reminiscência tênue na memória de uma ou duas gerações que os tempos acelerados prematuramente envelheceram, fiquei assustado. É que na boca dos políticos o tema da guerra  tem um enorme potencial de deitar por terra o edifício reconciliatório que a nação conseguiu construir ao longo dos anos de paz. Tenho dito aos amigos que têm a paciência de me escutar que a temática da guerra deve ser entregue aos sociólogos, historiadores, antropólogos, psicólogos, filósofos e outros académicos, para a dissecarem da mesma forma como os biólogos matam o seu objecto de estudo para descortinarem o seu modo de funcionamento interno e assim chegarem a verdades mais gerais. Não mencionei os escritores e os poetas porque estes há muito mergulharam no interior da guerra e os seus livros estão aí a  interpelar as nossas consciências e a mostrar a dimensão da loucura colectiva.
Voltando à vaca fria. Ainda não foi desta que a campanha eleitoral serviu para unir os angolanos. Os partidos políticos, apesar de se dizerem interessados no voto de todos os angolanos, na prática mostraram-se fundamentalmente sectários, quase inteiramente voltados para os seus militantes e apoiantes. Por exemplo, os actos políticos de massas, sendo uma exibição da força interna e organizada do partido, ao mesmo tempo constituem um momento de separação entre o “nós” e os “outros”.
Os tempos de antena na televisão e na rádio foram um maçante desfiar de monólogos, de discursos unidireccionais e arrogantes.
De repente, os serviços noticiosos mais nobres da TPA e da RNA, invadidos com notícias redundantes, tornaram-se intragáveis, obrigando os consumidores mais lúcidos a exercerem o direito de mudar de canal. O MPLA, naturalmente, aproveitando o vazio legal, e estando-se no período do “tudo ou nada”, em que em causa está acima de tudo a continuidade no poder,  tirou o maior proveito possível da comunicação social pública. Esse facto traz a tona a necessidade imperiosa de se legislar e regulamentar a respeito de todos os aspectos da campanha eleitoral, ao invés de os deixar à deriva da ética e do bom senso. Traz igualmente à ribalta a questão das relações entre o jornalismo e a política e do quanto entre nós o jornalismo está profundamente inquinado pela política. É ainda sintoma de que o jornalismo angolano hoje ainda não se emancipou para ganhar o estatuto de consciência moral da sociedade e almejar um lugar de respeito na história.
Do lado da UNITA vieram os maiores motivos para calafrios. A bandeira da fraude antecipada, da desconfiança visceral nas instituições, o nacionalismo fundamentalista com alardes racistas, tribalistas e regionalistas, que se julgava superado com o choque cultural e científico da modernidade, revelaram uma UNITA acossada nos seus medos, presa a questões atávicas de identidade.
A CASA-CE, que alguns apontaram como a terceira via, revelou-se uma força política inteiramente tributária do carisma do seu líder, que lhe confere a aparente unidade e capitaliza e canaliza algumas frustrações oriundas do MPLA e da UNITA. Ora, até aonde irá uma formação política essencialmente reactiva, assente em bases tão precárias?
A campanha eleitoral permitiu enxergar melhor aquela franja de jovens que se autodenominam revolucionários e que, há alguns meses, protagonizaram manifestações de rua contra o regime instituído. De tendência confusamente libertária e anarquista, essa franja de jovens viu-se órfã com a exclusão do Bloco Democrático do processo eleitoral. O BD era a formação política que mais se esforçava por enquadrá-los politicamente, juntando-se invariavelmente às suas manifestações de rua.
A campanha eleitoral revelou mais uma vez a força dos partidos políticos e a fragilidade dos movimentos políticos reivindicativos apartidários. Depois das eleições os jovens ditos revolucionários terão de redefinir a sua identidade, os seus propósitos ideológicos, optando por um partido político existente, criando eles próprios um partido político ou fundando uma associação da sociedade civil.. Sob pena da sociedade assimilá-los como meros arruaceiros.
Enfim, na sexta-feira (31 de Agosto) vou votar lá para o final do dia, pois só o poderei fazer depois da jornada de trabalho. Cá estarei para depois debitar umas quantas palavras sobre os resultados eleitorais.


KANDENGUES ONTEM, KOTAS HOJE


ISAQUIEL CORI
 
 

Envolvidos profundamente na aventura de viver, mergulhados no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido por minutos e horas, nos transforma. Mas chega finalmente o dia em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.

Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de uma esgotante jornada de trabalho, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem. Está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.

Foi como se me tivessem acertado com um soco no peito. “Kota eu, desde quando!”, exclamei, quase a cambalear.

Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um repentino e profundo olhar sobre a minha existência. Uma profusão de pensamentos e imagens tomou conta da minha cabeça e fui dominado por um sentimento misto de saudade, dor, perda e exaltação.

Submisso, entregue à vida com a vontade de a viver sem queixumes, não reparara que ela, aos poucos, de modo insidioso e silencioso, me foi corroendo a inocência e pondo calos na minha alma. A anteriormente densa e enorme floresta em que cada árvore era um amigo, ou em que cada amigo era uma árvore, estava, via eu agora com uma nitidez estonteante, repleta de clareiras. E era mais difícil respirar.

 “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”, interroguei-me.

Lutando pela vida, a vida transcorrera em mim e até aqui não me apercebera do quanto o tempo me transformara. Sempre a viver na desportiva, com muito “fair play”, apesar de já ter constituído um lar, de ter sido sacudido por muitos embates da vida, de possuir a cabeça ornamentada por uns quantos cabelos brancos e ter sido prematuramente “premiado” com umas doenças típicas de mais velhos, jamais, verdadeiramente, me sentira “kota”.

Mas agora, ante a solicitude confiante e infantil do rapaz, da candura com que se dirigiu a mim, abriu-se-me uma nova perspectiva e, como nunca antes, assumi, na intimidade e em toda a plenitude, a minha condição de mais velho. Afinal, o tempo não perdoa. A vida chamava-me à responsabilidade.

 “Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, já no papel de “kota da banda”.

 

 

Kota da banda – Mais velho do bairro

Kandengue da banda – Miúdo do bairro

PS: Esta crónica está publicada algures neste blog. Acabo de revê-la com algumas alterações.