sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O "desespero irredutível" de Bertrand Russel

Bertrand Russel (1872/1970), filósofo britânico, ao mergulhar as suas reflexões no futuro distante da Humanidade, tomado por um "desespero irredutível", escreveu o pensamento abaixo citado, considerado "uma das passagens mais deprimentes da língua inglesa".  

“Nenhum fogo, heroísmo ou intensidade de pensamento ou sentimento é capaz de preservar uma vida para além da sepultura.

Todos os trabalhos de eras, toda a devoção, toda a inspiração, todo o brilho intenso do génio humano, estão condenados à extinção na vasta morte do sistema solar; e todo o templo das realizações humanas terá inevitavelmente que ser enterrado sob os destroços de um universo em ruínas.”


Kinaxixi de grata memória: a infância revisitada

Arnaldo Santos publica “O Mais-Velho Menino dos Pássaros”

Isaquiel Cori

Arnaldo Santos deu a luz (27/03) “O Mais-Velho Menino dos Pássaros”, obra literária que emerge do Kinaxixi mítico da sua infância (que nem por sombras lembra o actual), em cuja floresta exuberante chilreavam as rolas, os bicos de lacre, os bigodes, os cardeais, os catetes, os maracachões, os pardais, os pica-flores, as pírulas, os rabos de junco, os siripipis e as viuvinhas negras. Está-se logo a ver, aquele Kinaxixi era o paraíso das crianças, que nele se entretinham a caçar os pássaros com as suas fisgas certeiras, quando não se ficavam simplesmente a admirar os muitos prodígios da natureza.
O livro, que conta com ilustrações saídas da pena e imaginação de Luandino Vieira, outro kinaxixiano da gema*, contém, segundo o sociólogo Paulo de Carvalho, que o apresentou ao público na União dos Escritores Angolanos, “elementos que podem contribuir para os pais aprimorarem a forma de educação dos seus filhos”.
Arnaldo Santos fez questão de dizer que o seu novo rebento não é para ser lido pelas crianças, devendo elas terem contacto com a estória através da intermediação dos pais, ou outros adultos, que têm de a ler para os petizes. “Gostaria que o livro fosse um bom pretexto para esse tipo de relacionamento e compreensão das coisas do mundo”, sublinhou.

*Um amigo comum trouxe a reclamação do Mais Velho Luandino: afinal ele não é nada kinaxixiano de infância. É sim makulusiano (do Makulusu).
Na verdade, digo eu, a obra de Luandino Vieira transborda de referências ao Kinaxixi; isso, e uma conversa (que tive o grato de prazer de testemunhar, e participar) de Luandino com Arnaldo Santos, em casa deste, em Luanda, recheada de alusões ao Kinaxixi antigo, com toda a sua passarinhada de nomes que soam completamente estranho à miudagem de hoje, levaram-me a intuir, erroneamente, que Luandino Vieira tivesse tido uma infância mergulhada no Kinaxixe.
Em todo o caso, dado que o Kinaxixe e o Makulusu eram  territórios contíguos e os seus pequenos habitantes mais ousados se aventuravam de um lado ao outro, a minha afirmação não estará completamente errada. E suspeito mesmo que a reivindicação de Luandino será, talvez, a assumpção de uma orgulhosa identidade de infância marcada já por toda uma visão da vida adulta recheada de sentimentos, episódios e rivalidades de bairro.

“Nós, os do Makulusu”, o livro mais introspectivo e reflexivo de Luandino Vieira, poderá ser lido também como uma afirmação de identidade local, de bairro, face aos kinaxixianos? Temos de voltar a ler este livro.


As letras das canções da nossa memória

Isaquiel Cori

                                                                                                                       

Carlos Ferreira, o Cassé, jornalista e escritor, entregou ao mercado (18/04, na União 
dos Escritores Angolanos) o seu mais recente livro, “Memórias de Nós”, cerca de centena e meia de poemas-letras para canções escritos ao longo de trinta anos, sendo mais de metade criados ao longo da década de 1980.
Como já se pode inferir do título, “Memórias de Nós”, editado pela União dos Escritores Angolanos, tem um enfoque geracional, é uma entrega do autor, sobretudo, mas não só, para aquela geração de angolanos que, no contexto estrito da literatura, o crítico literário Luís Kandjimbo cunhou como sendo Das Incertezas, e que Paulo Flores, num contexto mais geral, cantou como tendo sido feliz sem o saber. É a geração convencionalmente referida como a dos anos ‘80 e princípios dos ’90 e cujos integrantes estão hoje na faixa etária dos 40/50.
Ao lermos os poemas vocalizados em disco, ao longo dos anos, por artistas como Mamborrô, Eduardo Paim, Paulo Flores, Don Kikas, Ângelo Boss, Joseca e outros, a melodia das canções, como num passe de mágica, enche-nos imediatamente os ouvidos, provinda dos recônditos do cérebro que guardam as memórias mais gratas das nossas vidas.
Eis um excerto de “Traço de união””, musicalmente trabalhado por Mamborrô em 1987: “Era um traço de união / era o cantar da canção / era a força da vontade / era a verdade da nossa idade // era a loucura do tempo / era a vida no momento / era a fase da alegria / era o que a vida sera” (…)
Ainda por Mamborrô, de 1987, “Era miúdo”: “Era miúdo sabia cantar / brincava como um jogo de criança / agora que sinto tempo passar / continuo a saltar ao pé da esperança (…)”
E de “Dizer adeus”, composto por Eduardo Paim e interpretado pelo grupo “S.O.S.”, em 1988: “Dizer adeus aos poucos mais ou menos / sem ter as palavras para falar / dizer que já não há nem movimento / e que parado continuo a andar (…)”
O livro de Cassé, que faz uma singela homenagem ao músico Beto Gourgel, não é propriamente um repositório ou um compêndio de memórias. Estas ganham corpo a partir das palavras-evocações que suscitam todo um clima psicológico de saudade, nostalgia e de recordações difusas, tristes, alegres ou indefiníveis, de situações, vultos e rostos de pessoas queridas, muitas das quais desaparecidas para sempre. Neste sentido, “Memórias de Nós” é uma tentativa de salvar da morte, aqui entendida como o tempo irremediavelmente transcorrido, o mundo difuso dos afectos e das lembranças juvenis de toda uma geração. Lembranças gratas ou ingratas. Lembranças.
No seu livro, como descreve Ladislau Silva, no prefácio, “Cassé fala dele também. Das suas raízes. Da miscigenação. Das influências. Das realidades vividas. Dos ídolos e dos lugares de memória da sua (nossa) terra”. E diz-nos tudo isso, acrescenta, “de uma forma directa, incisiva mas ao mesmo tempo doce, como a brisa que não deixa a chama queimar a magra refeição dos carentes. Antes pelo contrário. Dá-lhe cor, calor e sabor.”
O espólio criativo de Cassé - de letras para canções - agora reunido em livro, foi pesquisado e recolhido por Irene Guerra Marques. Sugestão: “Memórias de Nós” deve ser lido ao som do CD “Cacimbos”, editado em 2006 pela Nzila e que reúne canções  de Paulo Flores, Don Kikas, Ana Maria de Mascarenhas, e outros, suportadas precisamente por letras de Cassé.



AONDE ESTÁ A IMAGINAÇÃO CRIATIVA DAS NOSSAS CRIANÇAS?




Isaquiel Cori

O júri deste ano do concurso literário "Quem me dera ser onda", ao analisar e discutir as dezasseis obras concorrentes, segundo a acta pelo mesmo lavrada, constatou a existência de "sinais de plágio em alguns textos", bem como a "pobreza estética de outros textos". Se a última constatação não é inteiramente de espantar, dada a faixa etária a que o concurso é destinado (dos 13 aos 17 anos) já a primeira, pela mesma e outras razões, deveria suscitar generalizadas preocupações.
O objectivo do concurso, segundo o respectivo regulamento, é "estimular a criatividade literária das crianças e jovens no domínio da prosa de ficção". Os participantes são estudantes de escolas públicas e privadas. Pretende-se, por outras palavras, descobrir e revelar novos valores para a literatura angolana no género prosa de ficção.
O plágio, segundo a académica brasileira Sónia M.R. Vasconcelos, é a "apropriação ou imitação da linguagem, ideias ou pensamentos de outro autor e a representação das mesmas como se fossem daquele que as utiliza".
A detecção de "sinais de plágio" em textos de crianças levanta as seguintes questões: terão sido realmente elas as autoras de tal delito ou por trás delas terão actuado adultos com a ganância de arrebatarem os valores pecuniários dos prémios? Independentemente da forma perfeita ou não como a possam verter por escrito, o que é feito da natural capacidade de imaginação e efabulação das nossas crianças? Estará a acontecer algo, no quesito socialização das nossas crianças, que estará a amputar a sua propensão para o maravilhoso e a percepção de que o mundo é seu e está nas suas mãos o poder de o transformar? Estará a sociedade urbana angolana, definitivamente, rendida ao materialismo "globalista" e à noção fatalista de que tudo o que havia para inventar já o foi, restando-nos apenas consumir ou imitar os produtos culturais que nos chegam maioritariamente pela televisão e a Internet?
Talvez possa parecer exagerado, mas cremos que se faz urgente e necessário analisar em profundidade a mentalidade desta geração que emerge no pós-guerra, que não vivenciou, em consciência, a guerra, mas foi e está a ser educada por pais que, tendo acumulado impossibilidades, carências e frustrações, hoje relativamente desafogados, estão dispostos, literalmente, a dar tudo aos filhos. Esquecem-se, esses pais, apressados em dar aos filhos o que eles próprios jamais tiveram ou sonharam, que o mundo não se dá, conquista-se.
Essa nova geração está igualmente a ser moldada por uma cultura instalada na media que glamouriza o resultado da criação artística, ou pseudo-artística, mas nada diz do processo de criação, do necessário trabalho de oficina que exige estudo e se materializa na obra por mil e uma tentativas, imensas horas de esforço, noites não dormidas e muito suor. A mais das vezes, esses jovens chegam à arte pela ideia de obterem sucesso e reconhecimento a todo o custo e não por força de uma genuína necessidade interior de expressão ou de uma inquietude profunda face ao mundo e à vida. E como a Internet "tem tudo" e está mesmo ao alcance dos dedos, daí a passar à operação "Copy" e "Past" é um pequeno gesto...

Voltando ao concurso "Quem me dera ser onda", talvez se deva dar mais a conhecer aos potenciais candidatos o processo criativo, o trabalho de lavra e oficina do patrono Manuel Rui, a começar pela novela que dá nome ao concurso, um retrato ao mesmo tempo fantástico e realista de uma época de transição em que muitos cidadãos pela primeira vez passaram a habitar edifícios urbanos, carregando consigo muito dos seus hábitos e práticas rurais e suburbanas. Aliás, o universo narrado por Manuel Rui, com animais a morarem em apartamentos e comissões de moradores inoperantes, devia ser encarado pelos gestores das actuais novas centralidades como um catálogo de coisas a evitar. "Quem me dera ser onda", 32 anos depois da sua primeira edição, com toda a sua linguagem vívida, remete para a ideia da extrema importância da literatura como repositório de memórias e auxiliar do conhecimento histórico e sociológico.