(NOTA: A entrevista que
a seguir transcrevo foi produzida e publicada em 2014, quando estava
profissionalmente vinculado ao jornal Cultura, na qualidade de editor de
Letras. Publico-a neste lugar por causa da sua notória actualidade.)
Francisco Noa com o Presidente da República de Moçambique Filipe Nyusi, em 2015 (Foto de Ferhat Momade)
Francisco Noa, doutor em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, docente das Universidades Eduardo Mondlane, de Moçambique, e Agostinho Neto, de Angola, ensaísta e crítico literário, foi um dos ilustres convidados ao III Congresso Internacional da Língua Portuguesa da Universidade Jean Piaget de Luanda, realizado nos dias 16, 17 e 18 de Setembro de 2014. Apresentou a comunicação “A Contribuição da Literatura no Desenvolvimento da Língua Portuguesa”. Gentilmente concedeu ao jornal Cultura a entrevista que a seguir se transcreve.
Jornal
Cultura – Um aspecto que ficou marcado no congresso da UniPiaget é o facto de
nos países africanos a escola tender a impor uma norma da língua portuguesa
afastada do uso corrente da língua. Porque não elevar à norma aquela variante
que afinal é a língua dos cidadãos?
Francisco
Noa
– É muito fácil imputarmos as culpas aos políticos mas é uma situação
extremamente delicada que vai levar, infelizmente, muito tempo a ser resolvida.
Podemos olhar para o exemplo do Brasil, que tem hoje uma norma surgida da
variante brasileira. Isso foi o reflexo de muita discussão. O Brasil ficou
independente em 1822 e houve a preocupação de criar uma literatura e toda uma
mundividência que reflectisse aquilo que o Brasil era culturalmente. Houve,
durante décadas, um grande debate entre aqueles que defendiam a variante que
tinha a ver com a especificidade, estou a pensar num José de Alencar, e aqueles
que defendiam o registo clássico, digamos, culto, da língua, caso de Machado
Assis. Só durante o século XX é que a variante se transformou em norma. Os
nossos países estão com quarenta anos de independência e se formos às Universidades
Agostinho Neto e Eduardo Mondlane, entre outras, vamos encontrar já muitos
estudos de especialistas em linguística, com muita qualidade, que serviriam
para validar, legitimar, a adopção das nossas variantes do português como
normas. Penso que o impasse que existe neste momento é o que Jean-François
Lyotard dizia no seu livro famoso, “A Condição Pós-Moderna”, entre aqueles que
têm que decidir o que saber, que são os da academia, e os que têm que saber o
que decidir, que são os políticos. O que eu quero dizer é que esse impasse de
alguma forma tem de ser quebrado, sendo necessária também coragem política.
JC
– A discussão tem de sair da academia para a sociedade.
FN
–E sobretudo para a política. Isso tem de ser um processo. Há muitos erros
ortográficos e de natureza morfo-sintáctica e não podemos ser paternalistas e
nos escudarmos permanentemente nas questões das línguas africanas. É preciso
que exista um equilíbrio entre aquilo que é a tendência global dos nossos
países, do ponto de vista das falas que se vão cristalizando, e aquilo que deve
ser a norma e que deve legitimar uma certa qualidade comunicativa. A minha
grande preocupação é a nível da escrita. Por isso eu coloco a questão: quais
são os limites que a própria escrita se deve impor no sentido de ela manter a
sua integridade? A escrita foi e será sempre sagrada, será sempre um registo
mais estável e nobre do uso da língua. Significa que na adopção da norma é
preciso que haja muitas precauções no sentido de evitarmos resvalar numa
espécie de caos linguístico que obviamente vai gerar um caos comunicativo.
Entendo que, sobretudo entre os jovens, há uma tendência cada vez maior de
escreverem poesia e narrativas tal e qual como eles falam e o que eles falam
tem a ver com a variante. É necessário haver todo um trabalho de concertação
entre os poderes políticos e a academia. Isso parece-me irreversível.
JC
– A sua comunicação no congresso foi
sobre a relação entre a literatura e a língua portuguesa. Pode fazer um resumo
breve para os nossos leitores?
FN
– Defendi, basicamente, que a literatura tem dado um grande contributo à
estabilização e ao desenvolvimento da língua portuguesa. Dei o exemplo do
Brasil, mas nós, quer em Moçambique como Angola, Cabo Verde e São Tomé e
Príncipe, vamos vendo que cada vez mais a literatura, além da relação com o
quotidiano, tem uma relação muito profunda com a língua. Ela vai espelhando as
tendências da língua dos pontos de vista lexical, semântico, morfo-sintáctico…
Vai registando essas marcas e, de certo modo, legitimando o uso dessas marcas.
No entanto, há uma situação no mínimo paradoxal. Apesar de a literatura ser um
registo culto, ela vai inspirar-se nas falas populares, as falas das massas
anónimas da população que reinventa a língua portuguesa todos os dias,
atribuindo novos significados às palavras, acrescentando novas palavras ao
universo da língua portuguesa, aportuguesando palavras das línguas bantu ou
registando algumas das principais tendências das variantes, onde nós vemos
claramente as interferências das línguas bantu. Sendo um espaço de
possibilidades, a literatura mostra as enormes possibilidades plásticas que a
língua portuguesa possui e explora isso ao limite. Temos os casos, entre
outros, do brasileiro Guimarães Rosa, dos angolanos Luandino Vieira, Uanhenga
Xitu, Ondjaki, de José Craveirinha, do Mia Couto, em que é manifesta a relação
não só com um universo existencial mas sobretudo com a língua. Há claramente
nesta relação com a língua portuguesa uma nativização e africanização da língua
portuguesa.
JC
– Pode traçar-nos um panorama sucinto do estado actual da literatura
moçambicana?
FN
– O que eu sinto em relação à literatura moçambicana é que há uma certa
vitalidade, a nível da produção, e da reflexão sobre ela, que, entretanto, bem
poderia ser maior. Sobretudo entre os jovens há uma grande vontade de produzir
literatura, o que se vai reflectindo em algumas obras que manifestamente
apresentam alguma qualidade, que nalguns casos é já assinalável. Como sabe, a
literatura moçambicana passou por um momento menos bom, em que havia certamente
alguma produção, mas sinto que hoje essa produção é acompanhada por alguma
preocupação pela qualidade, quer a nível da poesia quer da prosa. Há um
movimento dos jovens no sentido de discutirem a própria produção literária, sobretudo
nos meios próximos às Universidades. Há sinais muito fortes e promissores no
sentido de que a vocação e a marca de qualidade que vem dos anos 40 e que
depois foi revitalizada nos anos 80 esteja de regresso. E com uma forte
pujança. Alguns dos jovens autores têm um forte compromisso com uma certa
tradição literária que existe em Moçambique.
JC
– Em Angola temos algum conhecimento da literatura moçambicana que vai até à
geração da Charrua, com nomes como Marcelo Panguana, Eduardo White, Ungulani Ba
Ka Kossa. E há os casos particulares de Mia Couto e Paulina Chiziane. A
antologia do conto moçambicano “As mãos dos pretos”, organizada por Nelson Saúte
e editada em Portugal, foi vendida em algumas livrarias de Luanda. Mas
desconhecemos o quadro das novas gerações. Pode elucidar-nos?
FN
– Esse desconhecimento está a tornar-se estrutural e circular. Não sabemos muito
do que os outros países produzem. Se em relação à poesia houve uma espécie de
continuidade, contudo com aspectos inovadores importantes sobretudo do ponto de
vista de uma certa trans-nacionalidade, que eu percebo, sobretudo em relação à
actual produção moçambicana há uma grande preocupação com a representação do
quotidiano, o que é uma marca das literaturas africanas no geral, esse
compromisso com o meio em que elas surgem. As realidades africanas têm uma
dimensão épica, porque temos grandes transformações a acontecer e isto funciona
como inspiração, não só para os jovens mas também para os mais velhos, já que
há uma espécie de compulsão criativa no sentido de registar toda essa pulsação
que acontece do ponto vista social, cultural, político e a outros níveis. E a
nível da prosa, sobretudo do conto, que é uma das grandes marcas da literatura moçambicana
– contrariamente ao que muitos pensam, o conto é um género muito difícil – vão
aparecendo alguns jovens que mostram qualidade, mas faltará no nosso universo
uma crítica jornalística que poderia dar maior visibilidade às obras
produzidas. Há uma crítica universitária mas que fica confinada às paredes das
Universidades. Não gostaria de ser injusto mas há uns jovens que se destacam: o
Clemente Bata, que lançou, há uns anos, o livro de contos “Retratos do Instante”
e é universitário. Não quero dizer que para ser bom escritor tem que se ser
estudante universitário, mas que o contacto com textos teóricos e com alguma
reflexão mais elaborada na Universidade vai permitindo que esses jovens tenham
uma maior capacidade e amplitude na forma como produzem e sobretudo um maior
domínio das técnicas narrativas. Um dos grandes exemplos é o Lucílio Manjate,
que é professor assistente, produz regularmente e tirou recentemente uma novela,
“A Legítima Dor de Dona Sebastião”, que é, de certo modo, uma novidade na
literatura moçambicana, porque além da preocupação com o quotidiano é uma
narrativa marcada por um ritmo policial, com um texto muito bem conseguido em
termos do enredo e da técnica narrativa. O Alex Dau, em “Reclusos do Tempo”
oscila entre a preocupação com as pequenas ocorrências do quotidiano e as
emoções do universo tradicional. Muitos jovens têm uma ligação com o universo
tradicional muito residual, mas eles devem desenvolver alguma pesquisa para
recuperar esse universo. O Andes Chivengue, no seu livro de contos, “Febre dos
Deuses” apresenta umas marcas obsessivas do ponto de vista temático mas sinto
que é um escritor com enorme potencial e que se mantiver uma certa constância e
alguma profundidade pode ser um autor de referência na nossa literatura. Temos
o Hélder Faive, com “Contos de Fuga”, conjunto de contos premiados onde é
notória a preocupação com os dramas individuais, familiares e sociais, com
forte ironia e uma assinalável qualidade criativa. Esses jovens sentem que nós
vivemos numa sociedade em transição e a literatura funciona como um mecanismo
de registar os movimentos dessa mesma transição. As obras que eles apresentam
mostram que já dominam um conjunto de leituras que lhes permite um certo
desembaraço do ponto de vista da técnica, da criatividade e da representação de
uma determinada realidade.
JC
– Tem chegado até nós, até recentemente com alguma regularidade, a revista
electrónica Literatas, do movimento Kuphaluxa. Fale-nos desse movimento e da
sua inserção na vida cultural de Moçambique.
FN
– Esse movimento, para mim, além de funcionar como um sintoma, no sentido de
que há uma ânsia desses jovens em estarem sintonizados com aquilo que é a
produção cultural e literária, também é uma iniciativa extremamente meritória e
válida. Penso no Nelson Lineu, no Arijuane Japone, no Eduardo Quive, entre outros…
São jovens que estão a deixar uma marca, sobretudo porque não estão só a
produzir literatura, sendo a poesia o seu registo mais importante, organizam
palestras e encontros com convidados que já têm algum percurso criativo ou
académico. Eles estão a ser, de facto, uma referência importante na nossa
literatura. Claro que há alguns excessos, em alguns deles, o que é apanágio e
natural nos jovens, com algum exibicionismo à mistura. O mérito está naquilo
que está por detrás desse tipo de iniciativas, que acaba por ter um grande
impacto junto dos outros jovens. Como sabe, nós vivemos tempos muito difíceis,
em que os jovens vivem uma grande desorientação e uma grande lacuna do ponto de
vista daquilo que seriam as referências nobres e estáveis para sua vida. Com a
preocupação de se aglutinarem a volta de uma revista e de fazerem tertúlias,
tal como aconteceu com a geração da Noémia de Sousa, do José Craveirinha e do
Rui Knopfli à volta do “Itinerário”, e com a geração do Ungulani Ba Ka Kossa, o
Eduardo White, o Suleimane Cassamo, o Armando Artur, e outros, à volta da
Charrua, esses jovens vão certamente deixar uma marca na literatura
moçambicana.
…………………….
FRANCISCO NOA é Doutor em Literaturas Africanas em Língua
Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Ensaísta e professor
de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo,
Moçambique, é também investigador associado na Universidade de Coimbra, em
Portugal. Foi professor na Universidade Agostinho Neto, em Angola.
A sua área de pesquisa actual abarca os
temas da colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, a
literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico, a
partir da literatura.
Actualmente é Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), em Moçambique.
Actualmente é Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), em Moçambique.
PUBLICAÇÕES:
- Literatura Moçambicana: Memória e
Conflito, Imprensa Universitária, 1997.
- A Escrita infinita, Imprensa Universitária, 1998/2003.
- Império, mito e miopia. Moçambique como
Invenção Literária, Caminho, 1998/2002.
- A letra, a sombra e água. Ensaios & Dispersões, Texto, 2008.
- Perto do Fragmento, a Totalidade.
Olhares sobre a literatura e o mundo,
Ndjira, 2014.