quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Escritor Henrique Guerra: "A inveja é um sinal de fraqueza"



Isaquiel Cori

Henrique Guerra é um dos últimos sobreviventes da chamada geração da "Cultura". A sua obra literária, que se estende pelo conto, a poesia e o ensaio, apesar de, como ele próprio diz, ser "curta em volume", é uma das mais representativas da literatura angolana. Alvo de homenagem em Janeiro de 2014 pelo Ministério da Cultura, voltou a sê-lo a 26 de Fevereiro do mesmo ano pela União dos Escritores Angolanos. Henrique Guerra, que também é artista plástico, voltou aos escaparates das livrarias em 2014 com o livro de contos "O Tocador de Quissanje".  

Escritor Henrique Guerra, entrevistado na biblioteca da associação Chá de Caxinde, em Luanda (foto de Paulino Damião)

Pergunta - Tem uma longa carreira literária, iniciada na adolescência. O que o levou a escrever?
Henrique Guerra - A minha carreira literária é longa no tempo, mas em volume é curta. As obras que publiquei já são de há bastante tempo, desde a minha juventude. Sou um pouco aquilo que Manuel Bandeira chamava de escritores bissextos. Não escrevo com muita regularidade. A minha actividade literária começou praticamente nos finais do meu ensino secundário, no Liceu Salvador Correia. Havia as minhas leituras, que eram praticamente a literatura portuguesa. O que me motivou a escrever foi uma vez ter lido no jornal "A Província de Angola", lá para o ano de 1952 ou 1953, um poema do Aires de Almeida Santos, "A Mulemba secou". Fiquei tão fortemente impressionado que tentei fazer uma música à volta desse poema. Verifiquei que para além daquilo que dávamos através dos compêndios escolares, na disciplina de Literatura Portuguesa, havia uma realidade angolana, um quotidiano que estava arredado da literatura oficial. Isso despertou-me a debruçar-me sobre a realidade que não era objecto da cultura oficial e comecei a escrever algumas coisas.
P - Começou pelo conto?
HG - Comecei pelo conto e também pela poesia. Nessa altura havia o movimento "Vamos Descobrir Angola", fundado pelo Viriato Cruz, que tinha vários centros onde se reunia a juventude e eram promovidos concursos de poesia. Resolvi concorrer e ganhei o primeiro prémio.
P - Qual era o título desse poema?
HG - Não tinha título, foi publicado no "Brado Africano". Dizia: "Eu quero fugir de mim / porque quero estar dentro de mim"... Dizia das inquietações da adolescência, da identificação contra si próprio, etc. O facto de ter ganhado o primeiro prémio daquele concurso entusiasmou-me para a escrita.
P - Que circunstâncias terão levado dois irmãos, Mário e Henrique Guerra, separados por dois anos de idade, a enveredarem pela escrita?
HG - Terão sido circunstâncias do meio estudantil. Frequentamos juntos a chamada "Turma do Barulho", que era um dos sectores do "Vamos Descobrir Angola", que de certo nos animou e despertou para a actividade literária.
P - Por que razão é um escritor bissexto? Por que fica tanto tempo, não diria sem escrever, mas sem publicar?
HG - Talvez porque dediquei-me mais à actividade profissional. As necessidades da vida levaram-me a ter uma profissão. Fui para a topografia e depois para a engenharia e isso absorveu-me mais, talvez também pelo lado técnico típico dessas profissões.
P - Os seus contos denotam que viajava bastante pelo interior de Angola. Continua a viajar pelo país?
HG - Agora, por razões de saúde, não viajo. Viajava muito enquanto topógrafo.
P - Há nos seus contos um narrador que observa e "pinta" os cenários com cores fortes, quentes. Nota que há uma interferência do pintor, que existe em si, na sua sua escrita?
HG - Sim. Quem observou primeiro esse aspecto foi o Abreu Paxe. Quando era topógrafo também pintei muito, sobretudo as paisagens dos sítios por onde passava. A pintura e a literatura eram actividades que corriam paralelas e certamente acabaram por influenciar uma à outra.
P - Continua a pintar? Quando teremos uma exposição sua de artes plásticas?
HG - É possível que tenhamos, mas não tenho um projecto.
P - O que faz, concretamente: desenha, pinta a óleo, faz guaches?...
HG - Mais desenho a preto e branco, tipo namquim, e guaches. Um dos meus defeitos é não guardar aquilo que produzo. Descuido-me, ofereço ou levam-me as obras para fazerem publicidade nos jornais.
P - Foi um dos colaboradores do jornal "Cultura", da Sociedade Cultural de Angola. Na sua opinião, qual é o legado dessa publicação para o jornalismo cultural hoje?
HG - Isso é polémico. Há uma tendência, uma corrente juvenil actual, que diz que o "Cultura" pertence ao passado, preocupava-se muito com a luta de libertação, já se fez a independência, agora os temas são outros. Mas acho que há um legado a ter em conta, que tem a ver com uma postura de hombridade e verticalidade moral, de defesa da justiça, da dignidade e igualdade entre os homens.
P - Além de poeta e ficcionista também é um grande ensaísta. Nessa última qualidade o que tem a dizer sobre a literatura angolana que se produz hoje?
HG - Existe uma busca saudável por novos caminhos e novas formas de expressão. Na minha juventude havia uma propensão dominante, que era a oposição à dominação colonial e às suas injustiças. Isso já direccionava e balizava a literatura. Hoje os problemas são muito mais abertos. Têm aparecido escritores novos que procuram debruçar-se sobre novas vertentes, buscando novos caminhos. Há, por outro lado, uma tendência, não muito salutar, de procurar uma maneira um tanto ou quanto individual e arbitrária de tratar os assuntos.
P - Como "uma maneira individual e arbitrária"?
HC - Acho que a literatura não deve ser explicada, a arte não deve ser explicada, ela deve explicar-se por si. Algumas obras são tão obtusas e tortuosas que depois o autor tem de explicar o que quis exprimir, quando a própria obra é que devia explicar-se.
P - Uma característica sua é a discrição e a aversão aos holofotes. Que lição tem a dizer a esse respeito?
HG - É um pouco imodesto a pessoa falar de si própria, apresentar justificações desta ou daquela maneira de ser. Os outros estão em melhores condições de observar e tirar conclusões. Mas talvez seja uma questão de idiossincrasia.
P - Foi preso pela PIDE entre 1964 e 1973, acusado de pertencer ao MPLA. Quais foram as circunstâncias exactas dessa prisão?
HG - Foi no auge da repressão colonial. Na altura o presidente Agostinho Neto lançou a palavra de ordem "Iniciativas e mais iniciativas", para estendermos a luta o mais longe possível, em todos os campos, com propaganda nas cidades. O meu grupo tentou fazer isso e não foi bem sucedido. Como consequência apanhei oito anos e meio de prisão, uma pena excessiva em relação aos actos em si, dependente também da forma como a defesa foi conduzida.
P - No princípio deste ano foi homenageado pelo Ministério da Cultura. Sente-se plenamente reconhecido?
HG - A homenagem sempre deixa o homenageado   recompensado e sentir que os seus actos não foram totalmente em vão.
P - No conto "Mulengue", que faz parte do livro "O Tocador de Quissange", há o desaparecimento dos fatos que os rapazes deviam vestir na festa do Liceu. Mas o clímax do conto acaba por ser a destruição das panelas de barro que a mãe Chica enterrara para se contrapor ao mau olhado. É como se o autor tivesse desistido de encaminhar a estória para descoberta dos culpados do roubo. Isso foi propositado?
HG - A preocupação principal não é repressiva ou policial, mas o fenómeno em si do mau olhado e da inveja. O que está em causa são esses sentimentos e não quem realiza o roubo. Quem realiza o roubo está dentro de um clima que o transcende, e esse clima é o que está em causa.
P - "A inveja, essa maldição que se infiltra no seio da sociedade africana". É um extracto do conto "Mulengue". Extrapolando, pode-se considerar a inveja como um mal latente na sociedade angolana actual?
HG - A inveja é um sinal de fraqueza, é o reconhecimento de uma inferioridade que alguém tem em relação a outro, por causa de uma situação que quer superar, mas não consegue e cai na frustração. Hoje em dia as transformações sociais são tão rápidas e profundas que existem extractos que se sentem fragilizados e frustrados em relação a outros que estão a avançar. E surge a inveja, que aliás, não é um apanágio restrito à sociedade angolana.
P - Alguns dos seus contos possuem tanta informação que dá a impressão que a trama bem poderia desenrolar-se mais lentamente, de modo a transformar-se numa novela ou romance. Porquê que até agora não se aventurou pelo romance?
HG - Na prisão tentei fazer um romance, quase o completei, baseado num conto cokwe. Uma vez o Luandino Vieira tentou animar-me a publicá-lo, mas achei que não estava muito bem conseguido e não o terminei.
P - Tem outros textos para publicar?
HG - Tenho coisas antigas. Eu pensava que depois da aposentação teria a minha vida mais livre e arrumada, mas até agora ainda não consegui isso.

(Nota: Entrevista publicada em Março de 2014 no jornal Cultura, Luanda.)