quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

SÓ HÁ ARTE PARA OS OUTROS E PELOS OUTROS

JEAN-PAUL SARTRE, IN SITUAÇÕES II


"(...) O escritor não prevê nem conjectura: projecta. Acontece por vezes que espera por si mesmo, que espera pela inspiração, como se diz. Mas não se espera por si mesmo como se espera pelos outros; se hesita, sabe que o futuro não está feito, que é ele próprio que o vai fazer, e, se não sabe ainda o que acontecerá ao herói, isto quer simplesmente dizer que não pensou nisso, que não decidiu nada; então, o futuro é uma página branca, ao passo que o futuro do leitor são as duzentas páginas sobrecarregadas de palavras que o separam do fim.
Assim, o escritor só encontra por toda a parte o seu saber, a sua vontade, os seus projectos, em resumo, ele mesmo; atinge apenas a sua própria subjectividade; o objecto que cria está fora de alcance; não o cria para ele. Se relê o que escreveu, já é demasiado tarde; a sua frase nunca será a seus olhos exactamente uma coisa. Vai até aos limites do subjectivo, mas sem o transpor; aprecia o efeito dum traço, duma máxima, dum adjectivo bem colocado; mas é o efeito que produzirá nos outros; pode avaliá-lo, mas não senti-lo.
Proust nunca descobriu a homossexualidade de Charlus, uma vez que a decidiu antes de ter começado o livro. E se a obra adquire um dia para o autor o aspecto de objectividade, é porque os anos passaram, porque a esqueceu, porque já não entra nela, e seria, sem dúvida, incapaz de a escrever. Aconteceu isto com Rousseau ao reler o Contrato Social no fim da vida. 
Não é portanto verdade que se escreva para si mesmo: seria o pior fracasso; ao projectar as emoções no papel, a custo se conseguiria dar-lhes um prolongamento langoroso. O acto criador é apenas um momento incompleto e abstracto da produção duma obra; se o autor existisse sozinho, poderia escrever tanto quanto quisesse; nem a obra nem o objecto veriam o dia, e seria preciso que pousasse a caneta ou que desesperasse.

Mas a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético, e estes dois actos conexos precisam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objecto concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só há arte para os outros e pelos outros."

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Entrevista a António Quino a propósito do seu livro “Duas Faces da Esperança – Agostinho Neto e António Nobre num estudo comparado”

Por: Isaquiel Cori

        Mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa, licenciado em Ciências da Educação pela Universidade Agostinho Neto, jornalista, escritor, entre outras coisas, António Quino publicou em 2014, no âmbito do FENACULT, o livro “Duas Faces da Esperança – Agostinho Neto e António Nobre num estudo comparado”, um ensaio resultante precisamente dos seus estudos de mestrado em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa. Em 2015 voltaria aos escaparates com o livro “República do Vírus”, ficção. No espaço de tempo que transcorreu entre a publicação de um e outro livro o autor deste blogue teve uma conversa com A. Quino, que por razões de força maior, alheias à minha vontade, só agora dou à estampa. [Do segundo livro darei certamente conta aqui, num futuro breve]. O tema da esperança, como bem o título mostra, é o traço de união dos dois autores, Agostinho Neto e António Nobre, poetas gigantes no sistema literário a que cada um pertenceu. No seu livro, António Quino trata de assinalar, ao detalhe, os pontos de contacto (e de afastamento) da obra dos poetas em causa, sublinhando, entretanto, a singularidade de cada um. Leia então, caro internauta, a esclarecedora entrevista de António Quino a este blogue.




         Pergunta – Que intuição ou conhecimento o levou a dedicar-se a um estudo comparado tão aprofundado sobre Agostinho Neto e António Nobre?
Resposta - No meu projecto de mestrado, até chegar ao método de investigação e aos autores eleitos, divaguei um bom bocado. É bem verdade que tinha acumulado um conjunto de leituras de poemas que me enchiam a cabeça, e todas elas convergiam na ideia de esperança ou liberdade do ser poético, um sentido até certo ponto filosófico. Comecei por eleger a sociologia da literatura como foco. E nas minhas pesquisas deparei-me com a literatura comparada e os seus fundamentos, paradigmas e desafios. Assim elegi a literatura comparada. Comecei então a pensar nos autores. Pela afinidade que tenho com a poesia de Agostinho Neto, só precisava encontrar outro ou outros poetas para estabelecer os propósitos comparativos. Até chegar ao António Nobre foram longas horas e buscas de incessantes equilíbrios nos textos. Curiosamente, quem me deu a certeza dessa possibilidade de estudo comparado entre Agostinho Neto e António Nobre foi o meu orientador, o Professor Doutor Francisco Soares. Quando o vi a franzir o sobrolho em jeito de dúvida pelo êxito do trabalho com tais escolhas, pelas diferenças entre os dois, senti que aquele seria realmente o caminho a seguir. O desafio recompôs a segurança que eu necessitava para avançar. E iniciei então a peregrinação para descobrir as afinidades e dissemelhanças entre os dois poetas que, como se pode ver no livro, aparentemente nada os ligava. Hoje, com as ideias mais arrumadas, posso sem receio afirmar que queria mostrar vários ângulos que podem ser apresentados pela esperança, tirando-a do plano meramente filosófico ao da vida vivida pelo sujeito poético. Portanto, só precisei encontrar os poetas certos para transmitir isso.
P - Se Agostinho Neto é conhecidíssimo em Angola, o mesmo não diria de António Nobre. Como chegou a este autor português?
R - Como disse, foram buscas para encontrar um poeta que, não confirmando a esperança como em Neto, enriquecesse o ensaio que rondava pela minha cabeça em ideias. Finalmente, simpatizei-me com a sua história e vida e, por ser um grande desafio, embrenhei-me na nobreza da poesia de Nobre. Também devo referir que me aguçou o sentido por Nobre “profetizar” o seu destino, o que leva às vezes as pessoas a pensarem que ele escreveu o conjunto de poemas do seu livro “Só” na aflição da doença que o matou. Também, o simbolismo foi sempre um mundo enigmático, cavernoso e entrar nele também representava um desafio. Portanto, são várias as razões que me levaram a apostar nesse outro António que, tal como o referiu o meu orientador, viríamos a constituir o trio de Antónios.
         P – Em literatura a que levam os estudos comparados?
         R - Os estudos comparados, duma forma geral, são um instrumento analítico muito importante para o estabelecimento de planos de confrontação, equiparação e comparação de sistemas a fim de buscar analogias, conhecer semelhanças e diferenças ou as relações entre sistemas. Com base num estudo comparado se pode compreender e respeitar melhor o próximo.
A literatura comparada não é diferente. Ela convoca rumos e relações das dimensões locais e planetárias e faz do local mais planetário, e do planetário mais local. Como diz uma referência da área, a brasileira Sandra Nitrini, a literatura comparada rebate os cruzamentos de limites críticos consagrados, questionamentos de paradigmas estabelecidos e trânsitos de textualidades e linguagens. Portanto, a literatura comparada é um campo privilegiado para o estabelecimento de inter-relações de movimentos, estilos, autores, lugares, nações, povos. Outro aspecto que acho relevante é que pela literatura comparada podemos inclusive perceber que não há hierarquizações ou degraus pré-definidos para se qualificar estilos, obras, autores, correntes, etc. Relativizar permite aproximar, pelo conhecimento do outro a partir de nós mesmos.
P  - “A alma das nações nem sempre é acessível às ciências mas sim à literatura” (pág. 26). A literatura, mais concretamente a poesia, é capaz de fazer o catálogo da alma humana?
R - Sem dúvida. A arte é muito mais do que um elemento simbólico para as consciências colectivas definidas por Émile Durkheim. Na arte literária, ao envolvermos a semiótica, a estética e a linguística, estabelecemos um triângulo que envolve agrupamentos culturais de sentimentos, pensamentos e ideias morais e normativas duma comunidade. É essa alma que a poesia cataloga. O próprio Umberto Eco reconhece essa capacidade da arte ampliar o universo semântico provável, em cuja memória cultural colectiva joga um papel preponderante nas infinitas interpretações sobre os jogos semióticos invocados por nós, intérpretes. Essa perspectiva é inversamente proporcional às ciências, que são metódicas, formais, sincronizadas e universalizantes. Numa conversa que mantive com o professor Eduardo Fonseca, e reproduzida no livro na íntegra, ficou claro que a literatura tem uma importância fundamentalíssima no procurar e divulgar a identidade duma nação.
             P – No seu livro fala em esperança activa e passiva. Quando é que a esperança é activa ou passiva?
             R - Há duas perspectivas díspares, que se complementam, que procurei traduzir num quadro, na pág. 198, penso. De um lado está a esperança activa, materializada por Agostinho Neto, consubstanciada no desejo de lutar para atingir os seus anseios de liberdade; vista no seu sentido dinâmico. Sem luta, nada se consegue, parece querer reafirmar Neto. No outro lado está a esperança passiva, apresentada no aceitar dos desígnios; no acreditar que a morte trará a ansiada liberdade. Nobre vive-a numa contagiante estática. Ambos alimentam as suas esperanças pela liberdade nos seus poemas, mas na confluência entre o poeta e o sujeito poeta, não comungam no tempero a dar ao alimento liberdade.
             P - Uma das lições do seu livro é que não há literatura isolada (mesmo as supostamente mais regionalistas ou nacionalistas) e que é sempre possível encontrar pontos de contacto com outras literaturas. Concorda com essa leitura?
             R - Completamente. Nada nasce do nada. As obras literárias são um emaranhado de pontos em permanente contacto e contágios. Os contágios são activos importantes na literatura. Há uma permanente renovação de sangue azul, fazendo do marginal um promissor original utente do traço da inovação e criatividade. Um aspecto extremamente positivo na literatura é que ela nunca está só; traz sempre consigo pedaços informes de outras literaturas, embora nem sempre identificáveis ou identificadas. Mas está lá. Se não pelo texto, talvez pela implícita leitura produtora da experiência congregada no eu do poeta.
             P - Agostinho Neto era um intelectual e homem de acção e António Nobre um intelectual mais compassivo, sonhador, utópico?
             R - Não sei se diria exactamente nestes termos. Não será todo o sonho uma utopia? A independência não era uma utopia? A perspectiva de liberdade em Agostinho Neto, a sua Sagrada Esperança, não será uma utopia? Prefiro continuar a pensar que ambos foram intelectuais activos nas suas respectivas épocas, construtores de sonhos e utopias. Penso que a diferença está não só no carácter, mas na forma como cada um procurou atingir ou lutar pelos seus sonhos. Muito influenciados pelas respectivas correntes artísticas em voga, mesmo nos seus textos revelam contágios na tematização ou na abordagem de assuntos polemizados na época. Estaria eu errado se afirmasse que todo o intelectual é um fomentador de utopias?
            P - Na nota de agradecimentos, estende os seus votos ao seu pai, “que inundou a casa da minha infância de livros”. É o conselho que dá aos pais: “inundar” a casa de livros?
            R - Comigo funcionou. Ter a casa cheia de livros, a estante na sala enfeitada com livros, com a não autorização da minha finada mãe. Hoje percebo a relevância daquele permanente contacto com os livros. Foi um hábito construído na imprecisão do tempo, desintencionadamente. Se com estantes de livros na sala não for mais moderno devido à modernidade das casas que exigem outras domésticas arrumações, mas jornais e livros ajudam sempre a valorizar o homem do futuro. Os aparelhos alimentados pelas tecnologias de informação, como computadores, Ipad’s, telemóveis, etc., são valiosos instrumentos de incentivo à leitura. O nosso desafio é sempre conduzir o veículo da modernidade para os caminhos que pretendemos, contra a rota traçada pelas gerações da simplificação; que da internet só limitam o olhar à sombra, dispensando a luz que alimenta a penumbra.
             P – Na vertente da pesquisa académica quais são as suas próximas metas?
             R - Continuo a trabalhar em literatura comparada, procurando aprofundar uma pesquisa, ainda imberbe, sobre uma aplicação do ponto de vista da geometria, mais concretamente matemático, na análise e interpretação de textos literários. Trata-se de uma técnica matemática baseada na aproximação poligonal do contorno do objecto. A escolha das características adequadas torna-se mais natural e simples conforme o usuário adquire progressivamente mais familiaridade e experiência com a área da classificação e os problemas específicos. Tenho estado a trabalhar nisso, embora empiricamente, num conceito desenvolvido por Claude Lévi-Strauss. Falo do invariante, que reclama pela existência, sempre, de uma base de caráter binário, de sustentação da estrutura. Ou seja, esse invariante vai gerar variáveis, assumindo novas formas, mas o invariante é, logicamente, o mesmo. Portanto, essa variedade literária introduz um certo princípio de ordem nos estudos comparados e nos permite olhar o individual sem perder de vista o universal.
              P – A partir da sua condição de professor e estudioso da literatura angolana está bem colocado para responder a esta pergunta: nota tendências novas na escrita que se vai publicando hoje?

              R - Creio ser muito cedo para essa conjunturação. A escrita literária em si é produto duma realidade social; e a sua inovação, ou chamemos revolução, traduz a dinâmica das sociedades. E tal como outras ciências, os estudos literários também anseiam por se distanciar dos vícios envolventes do contexto para análises frias do produto literário. Análises, interpretações ou ensaios são produzidos para enquadramento da obra. No entanto, os estudos desses fenómenos são feitos noutros amanhãs. Os escritores são inimigos do conformismo. Andam sempre atrás da criatividade, que só em si é sinónimo de revolução e inovação. Há temáticas universais, como o amor, a riqueza, a pobreza, a guerra, os congestionamentos do tráfego rodoviário, etc. Mas dessas tematizações universais nascem as particularizações assentes em realidades muito concretas que tendem para a alma das nações. E, tal como no passado aconteceu, por esse caminho tenderá certamente a literatura dessa geração.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

SILÊNCIO! ESCUTEMOS AGOSTINHO NETO!

Os grandes poetas falam para os seus contemporâneos mas têm o condão de captar o intemporal, o permanente, aquilo que está para lá da aparência imediata das coisas. Com isso, tornam-se imortais. Deu-me para reler Agostinho Neto e estou a redescobrir a sua imorredoura contemporaneidade, muito para lá de qualquer apropriação oficialista da sua obra. Silêncio! Escutai Agostinho Neto hoje! Agora!



DEPRESSA

Impaciento-me  nesta mornez histórica
das esperas e de lentidão
quando apressadamente são assassinados os justos
quando as cadeias abarrotam de jovens
espremidos até à morte contra o muro da violência

Acabemos com esta mornez  de palavras e de gestos
e sorrisos escondidos atrás de capas de livros
e o resignado gesto bíblico
de oferecer a outra face

Inicie-se a acção vigorosa máscula inteligente
que responda dente por dente olho por olho
homem por homem

venha a acção vigorosa
do exército popular pela libertação dos homens
venham os furacões romper esta passividade

Soltem-se em catadupas as torrentes
vibrem em desgraças as florestas
venham temporais que arranquem as árvores pela raiz
e esmaguem tronco contra tronco
e vindimem folhagens e frutos
para derramar a seiva e os sucos sobre a terra húmida
e esborrache o inimigo sobre a terra pura
para  que a maldade das suas vísceras
fique para sempre aí plantada
como monumentos eternos dos monstros
a serem escarnecidos e amaldiçoados por gerações
pelo povo martirizado durante cinco séculos

África gloriosa
África das seculares injustiças
acumuladas neste peito efervescente e impaciente
onde choram os milhões de soldados
que não ganharam as batalhas
e se lamentam os solitários
que não fizeram a harmonia numa luta unida

Atraia-se o raio sobre a árvore majestosa
para assustar os animais dos campos
e queimar a insantidade dos santos e dos preconceitos
Rompa aos gritos a juventude da terra e dos corações
na irreverente certeza do amanhã nosso
apressando a libertação dos amarrados
ao tronco esclavagista
dos torturados no cárcere

dos sacrifícados no contrato
dos mortos pelo azorrague e pela palmatória
dos ofendidos
dos que atraiçoam
e denunciam a própria pátria

Não esperemos os heróis
sejamos nós os heróis
unindo as nossas vozes e os nossos braços
cada um no seu dever
e defendamos palmo a palmo a nossa terra
escorracemos o inimigo
e  cantemos numa luta viva e heróica
desde já
a independência real da nossa pátria

Cadeia do Aljube de Lisboa
Agosto de 1960


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

RUA DA INSÓNIA, de João Tala: Um manifesto poético carregado de inquietações

ISAQUIEL CORI



“A vivência e a sobrevivência através de uma infância, adolescência, seguidas de uma juventude em tempos de possibilidades precárias; a desordem espiritual, colectiva, traumas antigos e do pós-guerra, bem como inconsistências e desnivelamentos que não vale a pena nem classificar nem enumerar”, segundo o poeta João Tala,  “formam um quadro inquietante” que sobre um formato estético emprestam o  conteúdo à sua nova obra, “Rua da Insónia – Um manifesto de inquietações”.
O autor, em fala ao público que compareceu (25/04/2014) ao lançamento do seu poemário na sede da União dos Escritores Angolanos, explicou, como nunca o tinha feito antes, as razões da sua escrita, o húmus sobre o qual ela se funda. “E o poema, enquanto saliência da própria vida não pode se desprender dos factos que vivemos. Não é apenas um encontro, uma junção de palavras, daí que no caso expresso deste poemário, Rua da Insónia se enraíza na própria inquietação do ser”.
João Tala, que fechou o seu dissertar com a leitura de um poema  dedicado ao escritor e musicólogo Jorge Macedo (1941-2009), citou o poeta e antropólogo Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) [… “Que a criação vos possua, vos anime até aos desvarios que a sociedade teme nos poetas, porque é daí que resulta a obra. Mas que a angústia dos resultados não vos envenene a alma nem instile veneno na alma dos outros. É perigoso e traz doença. O mérito da vossa obra é no acto que a criou que se decide, não é depois, quando se mede à dos outros.”], confessou-se um ser criado de inquietações, antes de glosar o seu próprio poema: “…tudo passa e o poema indaga / o dia que acontece como uma ruína”.
O poeta António Pompílio, que apresentou o novo poemário de João Tala, lembrou que este é médico, e que talvez por isso, no seu livro, “ele faz um diagnóstico à alma”.
Ele é também um vendedor de sonhos, considerou Pompílio, “o tema infância e sonho percorre toda a sua obra, como que um renascer de esperanças, ‘porque é pecado engolir o sonho’”. Acrescentou: “O poeta passeia a passos lentos pela rua; desencantado, sofrido e amargurado por tudo o que vê e sente. João Tala, para retratar melhor as paisagens da Rua da Insónia, busca a simbologia da água, como choro e bênção para apagar os nossos males”.
Segundo António Pompílio, o poemário de Tala “tem também um percurso mais lírico, mais metafórico, onde o poeta pinta paisagens lúgubres com cores mais vivas e dá novo alento às metáforas da vida e nos brinda com sentimentos profundos”. Citou o poema “Desaguar”:
“pertenço às trinta casas que pernoitam / a angústia de um barco. / eu me enchi de pequenos rios / e por isso tenho um barco / me leva das espáduas ao frémito / das chuvas; ensopado, descalçado / sem as cicatrizes deste mundo / e meu tempo um rio novo. desaguar.”
Por fim, Pompílio manifestou uma inquietação que não é apenas sua, pois tem vindo a ser exteriorizada por vários homens e mulheres das artes, em geral, e da literatura em particular: “Sabemos que a divulgação das artes está muito aquém das espectativas. Um poema bem difundido pode revolucionar a mente de um povo, acabar ou anular mesmo muitas das nossas inquietações. A poesia angolana e os seus poetas precisam de ser conhecidos e difundidos”.
João Tala, especialista em medicina interna, é um dos casos mais recentes, em Angola, da lista de médicos cujo olhar afinado para os dramas humanos do corpo e da alma, e da sociedade, aliado a uma aguda inquietude existencial, é canalizado para a criação poética. Dessa lista constam os nomes de Agostinho Neto, Alda Lara, Carlos Mac-Mahon e Domingos Fragoso.
Uma análise à obra de Tala, desde “A Forma dos Desejos” (poesia, prémio Primeiro Livro da UEA, 1987), “Os Dias e os Tumultos” (contos, Grande Prémio de Ficção, 2004, da UEA), “A Vitória é Uma Ilusão de Poetas e de Filósofos” (Grande Prémio de Poesia, 2005, da UEA), “Surreambulando”, contos, 2007, “Forno Feminino”, poesia, 2010, passando por “Rosa & Munhungo”, contos, 2011, e culminando em “Rua da Insónia”, revela um adensar das alusões semânticas ao mundo da medicina, dos hospitais e do consultório médico, o que faz colocar a questão, de viés aparentemente retórico: é o poeta que se projecta no universo do médico ou é o médico que se intromete no conteúdo e na forma da obra do poeta?

Na presente edição de “Rua da Insónia” foram feitas mil cópias, chanceladas e catalogadas pela UEA na colecção “Guaches da Vida”

sábado, 1 de novembro de 2014

O Miting Resgatado pelo Grupo Mba Eza

(Carnaval memorável em Saurimo)

ISAQUIEL CORI




As ruas de Saurimo, paralelas e perpendiculares, com asfalto impecável, estavam limpas, bem lavadas pelas águas da chuva, quando chegou a tarde e com ela a hora marcada para o desfile. No Largo Dr. António Agostinho Neto era grande a expectativa em relação à performance dos grupos oriundos dos quatro municípios da província: Saurimo, Dala, Cacolo e Muconda. Um dos principais redutos da tradição Lunda Cokwe, a par da Lunda-Norte e do Moxico, a Lunda-Sul, no conjunto das dinâmicas das suas comunidades, é um verdadeiro museu vivo onde podem ser apreciadas algumas manifestações culturais antigas, em estado quase puro. Sendo que as danças são as principais manifestações culturais que o carnaval põe em evidência.
Mencionando aqui apenas a Txianda, a Txissela, o Makopo, o Muquixi e o Cafundês, é grande o mosaico das danças típicas da cultura Lunda Cokwe. Algumas, como a Txianda e o Muquixi, são amplamente conhecidas no país porque já foram executadas vezes sem conta em palcos nacionais ou porque foram alvo da atenção de estudiosos das danças.   



O Miting é uma dança que corria o risco de desaparecer e que foi resgatada pelo grupo Mba Eza, do município do Dala, o campeão em título do carnaval provincial.
Enquanto o público compunha o cenário, as entidades protocolares tomavam os seus assentos e os grupos carnavalescos faziam o "aquecimento", da amplificação sonora que abarcava todo o largo ouviam-se alguns dos maiores sucessos da música popular urbana local (os conjuntos "Moyowenos da Lunda Sul" e "Sassa Tchokwe", bem como o cantor Rei Dacosta, todos ao ritmo da omnipresente Txianda, animavam sobremaneira os presentes.
Ao longo do desfile dos onze grupos que competiam pelo título de melhor do ano vimo-nos relativamente frustrados na nossa expectativa. Esperávamos uma maior variedade de danças mas fomos brindados apenas com a Txianda, o Muquixi, e, para nossa satisfação, o Miting pelos Mba Eza do Dala.



O Miting é uma dança que tem características modernas e traços urbanos, a começar pela indumentária dos bailarinos: homens e mulheres apresentam-se vestidos a "rigor", com calças sociais, camisa branca e gravata. O grupo forma uma grande roda, tendo no interior o vocalista e os percussionistas. Os bailarinos vão evoluindo com uns movimentos alternados de sapateado, de ombros e braços e uns laivos de ginga próprios da Txianda. O acompanhamento musical tem uma passada lenta, à base da percussão. O Miting é claramente uma dança de salão, que muito vagamente faz lembrar a rebita de Luanda, sem a famosa massemba.


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Escutando o grande Vum Vum Kamusasadi

ISAQUIEL CORI




A musicalidade de Vum Vum Kamusasadi, artista angolano de regresso a Angola 45 depois, está muito bem espelhada no CD "Ode aos meus amores", já em circulação  no mercado luandense.
Muito presente no imaginário das gerações que atingiram a maioridade no tempo colonial, Vum Vum é pouco conhecido pelas novas gerações de músicos, compositores e apreciadores da música angolana.
Com onze faixas seleccionadas com rigor e executadas com os acordes melódicos ora nostálgicos - "Ah! quando eu era garoto", "Capricho-morena"; ora arrebatadoramente alegres - "Kibelebeletanxe", do violão que domina a cena do som, "Ode aos meus amores" é também um tributo à poesia, ou não constasse dele a canção "Testamento", com letra do poema homónimo da poetisa Alda Lara, com a inesquecível estrofe inicial: "À prostituta mais nova / Do bairro mais velho e escuro / Deixo os meus brincos lavrados / Em cristal, límpido e puro".
Com o propósito de se dar a conhecer a um público novo, além de reafirmar o seu valor junto dos da sua geração, Vum Vum, a começar já pelo título do CD, enfatiza o seu lado de cultor da palavra. A sonoridade é límpida e nela dominam o violão e a voz que canta e se transmuta em instrumentos musicais.
A infância é revisitada enquanto tempo e espaço de inocência e liberdade, em contraposição a um tempo "que não sabe que a vida é poesia para unificar".
A carreira musical de  Manuel Rosário das Neves, vulgo Vum-Vum Kamusasadi (nascido a 31 de Dezembro de 1943, no Dondo) remonta aos anos 1960, quando atingiu o auge da fama em Angola. Cabeça de cartaz na boate Tamar, à Ilha de Luanda, durante quase um ano (feito inédito para um negro num espaço tão segregado) em 1968 parte para Portugal, contratado para participar num teatro de revista, à época em voga.
Vum-Vum mal sabia que partia para um exílio de 45 anos, que o levaria a viver também na Suíça e Espanha e, finalmente, na Alemanha e a calcorrear meia Europa a divulgar a imagem de Angola em espectáculos em que quase invariavelmente se apresentava descalço e vestido de panos.
"A Alemanha me deu asas, lá fui recebido de braços abertos", refere, grato pelo ambiente que lhe permitiu dar livre curso à sua criatividade.
"Toda a minha criatividade artística assenta nos valores da minha cultura e tradição", diz Vum-Vum. "Eu não preciso inventar, a minha arte vem do dia-a-dia".
Empenhado numa cruzada de resgate da sua identidade, Vum-Vum viaja pelos lugares de e da memória e reconhece no Duo Ouro Negro os pioneiros da internacionalização da musicalidade popular angolana.
Com mente aberta gosta de mergulhar por outras sonoridades e confessa o fascínio que sente pelo jazz e a música erudita. Aliás, vestígios dessas sonoridades estão bem patentes no CD "Ode aos meus amores". Na mesinha de centro da sala em que recebeu a equipa do jornal Cultura eram bem visíveis os CD de música clássica e do jazzman Thelonius Monk.
A versatilidade artística de Vum-Vum estende-se para a literatura: publicou em 2011, com chancela da Chá de Caxinde, a novela "Simplesmente Maria", e tem pronto para publicação os livros "Kota Luanda" e "Memórias do meu Salalé". Uma peça dramática sua, "O processo", vai ser encenada ainda este mês de Novembro pelo grupo teatral Horizonte Nzinga Mbande.
Mas o sonho da sua vida é levar ao palco a opereta "Salalé! Luanda misoso". As démarches para tal, junto de instituições de direito, já vêm de longe e Vum-Vum ainda não perdeu a esperança.
Enquanto isso continua a compor e aonde quer que vá está quase invariavelmente acompanhado pela Marikota, o seu violão de ofício e estimação.
Quanto ao cenário musical actual no país o velho músico não é nada condescendente. Detesta o Kuduro e não o esconde: "O kuduro não tem pulsação melódica, são palavras atiradas e um ritmo que apenas serve para as pessoas bambolearem o corpo". Aposta que daqui a dez anos esse estilo musical "vai desaparecer ou deixará de ter a expressão que tem hoje, assente sobretudo numa formidável promoção".
"A minha rota é outra", diz, reafirmando o seu compromisso com os valores tradicionais da cultura angolana.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O "desespero irredutível" de Bertrand Russel

Bertrand Russel (1872/1970), filósofo britânico, ao mergulhar as suas reflexões no futuro distante da Humanidade, tomado por um "desespero irredutível", escreveu o pensamento abaixo citado, considerado "uma das passagens mais deprimentes da língua inglesa".  

“Nenhum fogo, heroísmo ou intensidade de pensamento ou sentimento é capaz de preservar uma vida para além da sepultura.

Todos os trabalhos de eras, toda a devoção, toda a inspiração, todo o brilho intenso do génio humano, estão condenados à extinção na vasta morte do sistema solar; e todo o templo das realizações humanas terá inevitavelmente que ser enterrado sob os destroços de um universo em ruínas.”


Kinaxixi de grata memória: a infância revisitada

Arnaldo Santos publica “O Mais-Velho Menino dos Pássaros”

Isaquiel Cori

Arnaldo Santos deu a luz (27/03) “O Mais-Velho Menino dos Pássaros”, obra literária que emerge do Kinaxixi mítico da sua infância (que nem por sombras lembra o actual), em cuja floresta exuberante chilreavam as rolas, os bicos de lacre, os bigodes, os cardeais, os catetes, os maracachões, os pardais, os pica-flores, as pírulas, os rabos de junco, os siripipis e as viuvinhas negras. Está-se logo a ver, aquele Kinaxixi era o paraíso das crianças, que nele se entretinham a caçar os pássaros com as suas fisgas certeiras, quando não se ficavam simplesmente a admirar os muitos prodígios da natureza.
O livro, que conta com ilustrações saídas da pena e imaginação de Luandino Vieira, outro kinaxixiano da gema*, contém, segundo o sociólogo Paulo de Carvalho, que o apresentou ao público na União dos Escritores Angolanos, “elementos que podem contribuir para os pais aprimorarem a forma de educação dos seus filhos”.
Arnaldo Santos fez questão de dizer que o seu novo rebento não é para ser lido pelas crianças, devendo elas terem contacto com a estória através da intermediação dos pais, ou outros adultos, que têm de a ler para os petizes. “Gostaria que o livro fosse um bom pretexto para esse tipo de relacionamento e compreensão das coisas do mundo”, sublinhou.

*Um amigo comum trouxe a reclamação do Mais Velho Luandino: afinal ele não é nada kinaxixiano de infância. É sim makulusiano (do Makulusu).
Na verdade, digo eu, a obra de Luandino Vieira transborda de referências ao Kinaxixi; isso, e uma conversa (que tive o grato de prazer de testemunhar, e participar) de Luandino com Arnaldo Santos, em casa deste, em Luanda, recheada de alusões ao Kinaxixi antigo, com toda a sua passarinhada de nomes que soam completamente estranho à miudagem de hoje, levaram-me a intuir, erroneamente, que Luandino Vieira tivesse tido uma infância mergulhada no Kinaxixe.
Em todo o caso, dado que o Kinaxixe e o Makulusu eram  territórios contíguos e os seus pequenos habitantes mais ousados se aventuravam de um lado ao outro, a minha afirmação não estará completamente errada. E suspeito mesmo que a reivindicação de Luandino será, talvez, a assumpção de uma orgulhosa identidade de infância marcada já por toda uma visão da vida adulta recheada de sentimentos, episódios e rivalidades de bairro.

“Nós, os do Makulusu”, o livro mais introspectivo e reflexivo de Luandino Vieira, poderá ser lido também como uma afirmação de identidade local, de bairro, face aos kinaxixianos? Temos de voltar a ler este livro.


As letras das canções da nossa memória

Isaquiel Cori

                                                                                                                       

Carlos Ferreira, o Cassé, jornalista e escritor, entregou ao mercado (18/04, na União 
dos Escritores Angolanos) o seu mais recente livro, “Memórias de Nós”, cerca de centena e meia de poemas-letras para canções escritos ao longo de trinta anos, sendo mais de metade criados ao longo da década de 1980.
Como já se pode inferir do título, “Memórias de Nós”, editado pela União dos Escritores Angolanos, tem um enfoque geracional, é uma entrega do autor, sobretudo, mas não só, para aquela geração de angolanos que, no contexto estrito da literatura, o crítico literário Luís Kandjimbo cunhou como sendo Das Incertezas, e que Paulo Flores, num contexto mais geral, cantou como tendo sido feliz sem o saber. É a geração convencionalmente referida como a dos anos ‘80 e princípios dos ’90 e cujos integrantes estão hoje na faixa etária dos 40/50.
Ao lermos os poemas vocalizados em disco, ao longo dos anos, por artistas como Mamborrô, Eduardo Paim, Paulo Flores, Don Kikas, Ângelo Boss, Joseca e outros, a melodia das canções, como num passe de mágica, enche-nos imediatamente os ouvidos, provinda dos recônditos do cérebro que guardam as memórias mais gratas das nossas vidas.
Eis um excerto de “Traço de união””, musicalmente trabalhado por Mamborrô em 1987: “Era um traço de união / era o cantar da canção / era a força da vontade / era a verdade da nossa idade // era a loucura do tempo / era a vida no momento / era a fase da alegria / era o que a vida sera” (…)
Ainda por Mamborrô, de 1987, “Era miúdo”: “Era miúdo sabia cantar / brincava como um jogo de criança / agora que sinto tempo passar / continuo a saltar ao pé da esperança (…)”
E de “Dizer adeus”, composto por Eduardo Paim e interpretado pelo grupo “S.O.S.”, em 1988: “Dizer adeus aos poucos mais ou menos / sem ter as palavras para falar / dizer que já não há nem movimento / e que parado continuo a andar (…)”
O livro de Cassé, que faz uma singela homenagem ao músico Beto Gourgel, não é propriamente um repositório ou um compêndio de memórias. Estas ganham corpo a partir das palavras-evocações que suscitam todo um clima psicológico de saudade, nostalgia e de recordações difusas, tristes, alegres ou indefiníveis, de situações, vultos e rostos de pessoas queridas, muitas das quais desaparecidas para sempre. Neste sentido, “Memórias de Nós” é uma tentativa de salvar da morte, aqui entendida como o tempo irremediavelmente transcorrido, o mundo difuso dos afectos e das lembranças juvenis de toda uma geração. Lembranças gratas ou ingratas. Lembranças.
No seu livro, como descreve Ladislau Silva, no prefácio, “Cassé fala dele também. Das suas raízes. Da miscigenação. Das influências. Das realidades vividas. Dos ídolos e dos lugares de memória da sua (nossa) terra”. E diz-nos tudo isso, acrescenta, “de uma forma directa, incisiva mas ao mesmo tempo doce, como a brisa que não deixa a chama queimar a magra refeição dos carentes. Antes pelo contrário. Dá-lhe cor, calor e sabor.”
O espólio criativo de Cassé - de letras para canções - agora reunido em livro, foi pesquisado e recolhido por Irene Guerra Marques. Sugestão: “Memórias de Nós” deve ser lido ao som do CD “Cacimbos”, editado em 2006 pela Nzila e que reúne canções  de Paulo Flores, Don Kikas, Ana Maria de Mascarenhas, e outros, suportadas precisamente por letras de Cassé.



AONDE ESTÁ A IMAGINAÇÃO CRIATIVA DAS NOSSAS CRIANÇAS?




Isaquiel Cori

O júri deste ano do concurso literário "Quem me dera ser onda", ao analisar e discutir as dezasseis obras concorrentes, segundo a acta pelo mesmo lavrada, constatou a existência de "sinais de plágio em alguns textos", bem como a "pobreza estética de outros textos". Se a última constatação não é inteiramente de espantar, dada a faixa etária a que o concurso é destinado (dos 13 aos 17 anos) já a primeira, pela mesma e outras razões, deveria suscitar generalizadas preocupações.
O objectivo do concurso, segundo o respectivo regulamento, é "estimular a criatividade literária das crianças e jovens no domínio da prosa de ficção". Os participantes são estudantes de escolas públicas e privadas. Pretende-se, por outras palavras, descobrir e revelar novos valores para a literatura angolana no género prosa de ficção.
O plágio, segundo a académica brasileira Sónia M.R. Vasconcelos, é a "apropriação ou imitação da linguagem, ideias ou pensamentos de outro autor e a representação das mesmas como se fossem daquele que as utiliza".
A detecção de "sinais de plágio" em textos de crianças levanta as seguintes questões: terão sido realmente elas as autoras de tal delito ou por trás delas terão actuado adultos com a ganância de arrebatarem os valores pecuniários dos prémios? Independentemente da forma perfeita ou não como a possam verter por escrito, o que é feito da natural capacidade de imaginação e efabulação das nossas crianças? Estará a acontecer algo, no quesito socialização das nossas crianças, que estará a amputar a sua propensão para o maravilhoso e a percepção de que o mundo é seu e está nas suas mãos o poder de o transformar? Estará a sociedade urbana angolana, definitivamente, rendida ao materialismo "globalista" e à noção fatalista de que tudo o que havia para inventar já o foi, restando-nos apenas consumir ou imitar os produtos culturais que nos chegam maioritariamente pela televisão e a Internet?
Talvez possa parecer exagerado, mas cremos que se faz urgente e necessário analisar em profundidade a mentalidade desta geração que emerge no pós-guerra, que não vivenciou, em consciência, a guerra, mas foi e está a ser educada por pais que, tendo acumulado impossibilidades, carências e frustrações, hoje relativamente desafogados, estão dispostos, literalmente, a dar tudo aos filhos. Esquecem-se, esses pais, apressados em dar aos filhos o que eles próprios jamais tiveram ou sonharam, que o mundo não se dá, conquista-se.
Essa nova geração está igualmente a ser moldada por uma cultura instalada na media que glamouriza o resultado da criação artística, ou pseudo-artística, mas nada diz do processo de criação, do necessário trabalho de oficina que exige estudo e se materializa na obra por mil e uma tentativas, imensas horas de esforço, noites não dormidas e muito suor. A mais das vezes, esses jovens chegam à arte pela ideia de obterem sucesso e reconhecimento a todo o custo e não por força de uma genuína necessidade interior de expressão ou de uma inquietude profunda face ao mundo e à vida. E como a Internet "tem tudo" e está mesmo ao alcance dos dedos, daí a passar à operação "Copy" e "Past" é um pequeno gesto...

Voltando ao concurso "Quem me dera ser onda", talvez se deva dar mais a conhecer aos potenciais candidatos o processo criativo, o trabalho de lavra e oficina do patrono Manuel Rui, a começar pela novela que dá nome ao concurso, um retrato ao mesmo tempo fantástico e realista de uma época de transição em que muitos cidadãos pela primeira vez passaram a habitar edifícios urbanos, carregando consigo muito dos seus hábitos e práticas rurais e suburbanas. Aliás, o universo narrado por Manuel Rui, com animais a morarem em apartamentos e comissões de moradores inoperantes, devia ser encarado pelos gestores das actuais novas centralidades como um catálogo de coisas a evitar. "Quem me dera ser onda", 32 anos depois da sua primeira edição, com toda a sua linguagem vívida, remete para a ideia da extrema importância da literatura como repositório de memórias e auxiliar do conhecimento histórico e sociológico.

domingo, 29 de dezembro de 2013

ANTENA KRÍTICA: O ÚLTIMO RECUO de Isaquiel Cori

ANTENA KRÍTICA: O ÚLTIMO RECUO de Isaquiel Cori: Lapidar, digamos, um exercício de escrita onde a clareza do texto não é sinónimo de despretensiosidade da arte, esse autor oferece-nos uma l...

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Província do Bié, o coração de Angola

Estávamos em 2006, a guerra terminara há quatro anos. Carmo Neto, então director do Gabinete de Comunicação e Imagem da Polícia Nacional, fez-me o convite que não pude recusar: "que tal fazeres uma série de reportagens pelo interior do país para a revista Tranquilidade?" Não pude recusar o convite porque coincidiu com uma preocupação existencial que então me assolava e que ia precisamente no sentido de conhecer o país mais a fundo e nos detalhes do quotidiano do pós-guerra. A concretização do projecto levou-me a ir pela primeirissima vez às províncias do Bié e Moxico, em quase todos os seus municípios. As viagens eram feitas em estradas recém-resgatadas às minas, que ainda espreitavam bem à beira, pelos trilhos nas chanas ou ainda pelas plataformas das linhas férreas então abandonadas do CFB. Como companheiros tinha, alternadamente, o Frederico Ningi e o Paulino Damião "Cinquenta", dois dos mais respeitáveis fotógrafos angolanos. A preocupação da Polícia era, obviamente, que fizéssemos o retrato da organização e pessoal da corporação. Satisfizemos a vontade do nosso patrocinador e fomos mais além, de acordo com as nossas preocupações pessoais. Hoje deparei-me aqui na Net com alguns textos da reportagem feita no Bié e não resisto a trazê-los aqui, para minha satisfação própria e partilha com quem esteja interessado.  


Isaquiel Cori (Textos) e Paulino Damião  (Fotos)



O Bié, a província mais central de Angola, é um verdadeiro prodígio da natureza. Com um clima favorável, terrenos férteis e uma população trabalhadora, a província tem na agricultura o seu forte.
Percorrendo a província em várias direcções, tendo a cidade do Kuito como ponto de partida, somos amiúde confrontados com os sinais, à beira da estrada, da presença de minas e de destroços de veículos militares, marcos silenciosos da guerra que terminou há apenas quatro anos.
David Kupanda, o Regedor Municipal do Andulo, diz que a população hoje vive bem melhor, todavia, alerta para os resíduos das confrontações militares: “Para além das minas temos o problema dos obuses que não rebentaram. Quase todos os dias descobrimos mais um obus”.
Mas é visível o esforço do Governo e de algumas ONG no sentido da desminagem: terrenos que há bem pouco tempo eram intransitáveis são agora lavras verdejantes e viçosas. Em todas as localidades é visível o ressurgimento da agricultura em toda a sua força. Os mercados estão repletos de produtos frescos, à espera de escoamento.
Os principais actores da ascensão agrícola são as mulheres, a grande força do campo. Pessoas modestas e humildes, tocadas pela guerra até no mais profundo de si mesmas, estão aí elas de pé, empenhadas na batalha da sobrevivência.
Justiana Joana, 28 anos, tem uma lavra nos arredores do Kuito. Cultiva mandioca e batata. Vai à lavra todos os dias. Tem um olhar triste e ela explica porquê: “O meu pai e a minha mãe morreram durante a guerra. O meu marido desapareceu”. Mãe de três filhos, é inteiramente responsável por eles. É principalmente para eles que ela trabalha. O que produz é para consumo e também para venda. Receosa, ela confessa que gostaria que o Governo a apoiasse: “É preciso adubos e também sementes”.
O Governo Central relançou, em Outubro de 2005, no Andulo, o programa de Extensão e Desenvolvimento Rural, cuja intenção é promover, de modo sustentado e integral, o desenvolvimento das comunidades rurais.
Maria Luísa Chicapa, administradora municipal do Andulo, explica que no quadro desse programa cada grupo de quatro camponeses será contemplado com duas cabeças de gado, uma charrua, enxadas, catanas, sementes e adubos. “Mas trata-se de um programa amplo, que abarca, para além da agricultura, a educação, a saúde, as obras públicas, enfim. E sabe-se que a maior parte da população rural é feminina, logo, estaremos a contribuir para o desenvolvimento da mulher rural”.
Viajar por estrada no Bié é um martírio. Do Kuito para o Chinguar, do Kuito para Catabola e Kamacupa, e do Kuito para o Cunhinga e Andulo, as estradas são um nunca mais acabar de buracos e verdadeiras máquinas de sacolejar. A maioria das pontes são precárias e perigosas. E sendo o Bié uma província abençoada pelas chuvas, é de se ver o quanto é difícil viajar de carro. Mas em todo esse quadro movimentam-se os taxistas, esses heróis das estradas.
Do Kuito para o Chinguar apanhámos um táxi que ia para a cidade do Huambo. Era um Toyota Corolla, conduzido por Floriano Chipino. De 45 anos, percorre a mesma estrada quase todos os dias, há dois anos. Por isso conhece de memória a localização dos buracos mais importantes; e numa estrada capaz de desanimar um outro qualquer, Chipino movimenta o seu carro com uma habilidade incrível a uma velocidade de arrepiar. Como consequência todas as semanas é obrigado a tirar um dia para fazer uma revisão completa à viatura.
O renascer da agricultura no Bié é mais do que evidente: para além das grandes extensões cultivadas, o viajante espanta-se com a variedade de produtos a venda à beira das estradas, mas sobretudo com os preços baixíssimos.
As estradas difíceis dificultam o escoamento da produção e a exploração mais intensa das potencialidades turísticas, transformando algumas localidades em verdadeiras ilhas, tal é a dificuldade de acesso.
O reerguer do Bié dos escombros e das sequelas da guerra tem como exemplo mais impressionante a cidade capital, Kuito. Quem lá esteve logo depois do fim do conflito armado não acredita no que os seus olhos agora podem ver.
Edifícios então feitos em pedaços, paredes picotadas com balas, foram em grande parte reabilitados, dando assim uma nota muito mais alegre à paisagem urbana.
E o tecido humano e social ganha uma nova vitalidade, uma outra dinâmica, em muito facilitada pela retirada dos milhares de cadáveres (cerca de sete mil) enterrados nos quintais e em locais públicos, para o cemitério criado a propósito, com a dignidade merecida e requerida.
A província do Bié tem nove municípios: Kuito, Chinguar, Cuemba, Kamacupa, Andulo, Catabola, Cunhinga, Nharea e Chitembo. O seu forte, economicamente falando, é a agricultura e a pecuária. Cultiva-se em larga escala o milho, o feijão, a batata rena e a mandioca. Nos municípios de Kamacupa e do Chinguar estão a ser feitos esforços de revitalização da cultura do arroz, um produto de que o Bié era famoso em anos anteriores à guerra. 
Este é o desenho possível do cenário onde se desenvolve a acção do Comando Provincial do Bié da Polícia Nacional.


11 Julho 2006


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      Kamacupa: estradas precisam-se



A viagem do Kuito a Kamacupa é de apenas 82 quilómetros, mas para quem viaja de carro a distância parece o triplo. A paisagem ao longo do percurso é de uma beleza sem par, dominada pelos campos agrícolas, testemunhas irrefutáveis do carácter trabalhador das populações locais.
Todavia, a estrada, que para além dos buracos, em alguns troços chega mesmo a desaparecer, transformando-se em ravinas ou picadas, amassa e cansa de tal modo o viajante que este perde o desejo e a postura contemplativa para tão somente querer chegar ao destino o mais rápido possível.
Quando chegamos a Kamacupa, depois de umas três horas de viagem num táxi de marca Toyota Hiace, inevitavelmente tivemos de nos sacudir da poeira vermelha, não fôssemos ser tomados por maltrapilhos, e estirar o corpo em improvisados exercícios de ginástica, para repor a circulação sanguínea normal bem como a disposição um tanto abalada.
Recuperámo-nos rapidamente: Paulino Gomes, 2.º Comandante Municipal e na altura Comandante Municipal em exercício, recebeu-nos com uma simpatia e uma bonomia sem par. Depois de uma conversa preliminar, que serviu também para ambientação e descontracção, a nosso pedido fomos à Administração Municipal, onde encontramos Aleixo Fernandes Kandambu, o Administrador, solícito apesar do imenso expediente que tinha.
“A base produtiva de Kamacupa é a agricultura. Aqui cultivamos sobretudo a ginguba, o milho, o feijão e a mandioca. Estamos a reactivar a produção de arroz: Kamacupa já foi o principal produtor de arroz em Angola”, informa Aleixo Kandambu.
O município tem apresentado níveis crescentes de colheitas. Esse incremento da produção agrícola tem muito a ver com o apoio prestado pelo Governo no tocante ao fornecimento de adubos, sementes e instrumentos de trabalho.
Todavia, existe o sério problema do escoamento da produção. “As estradas estão muito degradadas, o que desencoraja a vinda de compradores. Tem havido produtos que se deterioram ao longo do tempo”, diz o Administrador. “Temos camponeses que ainda têm café nos seus celeiros mas que não encontram compradores”, reforça.
O Governo está a fazer grandes esforços no domínio da reactivação da vida social. É neste quadro que se situa a inauguração do sistema de iluminação pública da sede municipal e de uma escola do I e II níveis. Por outro lado, “as relações com a Polícia são muito boas, não temos razões de queixa. Todos os dias temos contacto e a população sente-se protegida”, testemunha.
A sede provisória do Comando Municipal de Kamacupa é um edifício antigo, pequeno, a precisar de reabilitação e ampliação. O edifício original foi partido durante a guerra.
O efectivo policial desdobra-se pelas comunas de Umpulo, Ringoma, Muinha e Kwanza, onde existem postos policiais.
“Os crimes mais frequentes em Kamacupa são as ofensas corporais e o fogo posto em moradias, tudo resultante do excessivo consumo de álcool”, dá a conhecer o Comandante Municipal em exercício, Paulino Gomes.
Com uma população estimada em 213.444 habitantes, Kamacupa faz fronteira, a Norte, com a província de Malanje, a Oeste com o município de Katabola, a Leste com o município do Cuemba e a Sul com o Chitembo.

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O ressurgir do Andulo 

Com uma população estimada em 500 mil habitantes, maioritariamente agricultores, o município do Andulo é, económica e demograficamente, um dos mais importantes da província do Bié. A 130 quilómetros da cidade do Kuito, o Andulo é um verdadeiro celeiro.
Cultiva-se em abundância o milho, diferentes tipos de feijão e até o café arábico (cuja produção decaiu muito em decorrência da guerra).
Tendo sido um dos mais importantes palcos da última fase da guerra, o Andulo está francamente a recuperar-se. O Governo reconstruiu três hospitais e pôs em funcionamento um Instituto Médio de Educação e um instituto pré-universitário. 



Está a ser construído de raiz aquele que será o Instituto Médio Agrário, que terá uma capacidade para 1.600 alunos, 800 dos quais em regime de internato. No ano lectivo de 2005 estavam inscritos no ensino de base 130 mil alunos, 90% dos quais no I Nível.
À frente da Administração Municipal está Maria Lúcia Chicapa, uma mulher dinâmica e determinada.
Cortesmente, ela revelou à Revista Tranquilidade o seu estilo de governação: “A boa governação é participativa. O meu estilo natural de governar é o participativo mas às vezes temos de nos impor, porque infelizmente muitos dos nossos parceiros homens não gostam de ser liderados por uma mulher”.
Maria Chicapa acredita no pleno ressurgimento do Andulo como uma potência agrícola e turística. Mas isso passa antes pelo recuperar do tecido humano e social, fortemente desconjuntado pela guerra. Essa recuperação será conseguida com a integração social e produtiva dos desmobilizados das ex-FAPLA e das ex-forças militares da UNITA e também com o contributo espiritual das igrejas.
“Tivemos quase 28 anos de guerra, que deixou sequelas consideráveis e marcantes. As igrejas estão a contribuir imenso para a pacificação dos espíritos, com os seus cultos ecuménicos e não só”, considera a Administradora. 

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Chinguar, onde o mercado é uma festa


Calvino Florindo Ngongo, o Administrador Municipal do Chinguar, endireitou-se no cadeirão e gesticulou com os braços como que para enfatizar as suas palavras, ao responder à nossa pergunta sobre como iam as relações entre a administração e as autoridades policiais locais. “São excelentes. Estão a 100%. Há comunicação entre nós. A Polícia é parceira da administração e o garante da paz e da ordem pública”, disse.
Vindo de um almoço interrompido precisamente por nós (tal era a surpresa da nossa chegada ao Chinguar), Calvino Ngongo não parecia, todavia, arreliado. Pelo contrário: embalou-se logo em gabar as virtudes do seu município.
“A agricultura é que criou o homem e o Chinguar é o principal pólo de desenvolvimento agrícola do Bié. Se antes tínhamos problemas de inputs agrícolas, hoje estamos de parabéns, porque tivemos uma recepção desses inputs como há muito não tínhamos. Viram o mercado como está abarrotado? Os nossos produtos são escoados por agentes privados para Benguela, Huambo, Kuito, Kuando Kubango e Moxico. Mas o ritmo é lento, o que não permite o escoamento necessário e suficiente”.
Na verdade o mercado à beira da estrada era uma festa. Quase tudo à venda era resultante da produção local: batata rena em grandes quantidades e a preços inacreditáveis para quem vinha de Luanda; feijão fresquíssimo, acabadinho de colher; a boa galinha rija, viva ou frita, era um regalo para a vista e para o estômago; quanto às frutas, tivemos muita pena de não estarmos na época dos pêssegos, um dos cartões de visita do Chinguar.
“Sendo a agricultura a principal actividade económica, cá pratica-se também a pecuária, nomeadamente a criação de gado caprino, suíno e bovino. Em pequena escala desenvolve-se igualmente a apicultura e a pesca.
Em três anos de paz, com o apoio dos governos central e da província recuperámos o hospital municipal, a central eléctrica, o centro materno infantil, uma escola do I e do II níveis, construímos de raiz uma escola do I nível, com seis salas, e estão em obras as sedes das administrações comunais. Em cada uma das comunas estamos a construir um posto de saúde e uma escola”.
No final, Calvino Ngongo desvendou-nos a origem do topónimo “Chinguar”: trata-se da corruptela da palavra “Onguali”, que na língua nacional umbundu significa perdiz, uma ave que abunda (e abundava muito mais no passado) em Chinguar.
De acordo com estimativas oficiais, o município do Chinguar tem uma população de 134.000 habitantes.