domingo, 29 de dezembro de 2013

ANTENA KRÍTICA: O ÚLTIMO RECUO de Isaquiel Cori

ANTENA KRÍTICA: O ÚLTIMO RECUO de Isaquiel Cori: Lapidar, digamos, um exercício de escrita onde a clareza do texto não é sinónimo de despretensiosidade da arte, esse autor oferece-nos uma l...

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Província do Bié, o coração de Angola

Estávamos em 2006, a guerra terminara há quatro anos. Carmo Neto, então director do Gabinete de Comunicação e Imagem da Polícia Nacional, fez-me o convite que não pude recusar: "que tal fazeres uma série de reportagens pelo interior do país para a revista Tranquilidade?" Não pude recusar o convite porque coincidiu com uma preocupação existencial que então me assolava e que ia precisamente no sentido de conhecer o país mais a fundo e nos detalhes do quotidiano do pós-guerra. A concretização do projecto levou-me a ir pela primeirissima vez às províncias do Bié e Moxico, em quase todos os seus municípios. As viagens eram feitas em estradas recém-resgatadas às minas, que ainda espreitavam bem à beira, pelos trilhos nas chanas ou ainda pelas plataformas das linhas férreas então abandonadas do CFB. Como companheiros tinha, alternadamente, o Frederico Ningi e o Paulino Damião "Cinquenta", dois dos mais respeitáveis fotógrafos angolanos. A preocupação da Polícia era, obviamente, que fizéssemos o retrato da organização e pessoal da corporação. Satisfizemos a vontade do nosso patrocinador e fomos mais além, de acordo com as nossas preocupações pessoais. Hoje deparei-me aqui na Net com alguns textos da reportagem feita no Bié e não resisto a trazê-los aqui, para minha satisfação própria e partilha com quem esteja interessado.  


Isaquiel Cori (Textos) e Paulino Damião  (Fotos)



O Bié, a província mais central de Angola, é um verdadeiro prodígio da natureza. Com um clima favorável, terrenos férteis e uma população trabalhadora, a província tem na agricultura o seu forte.
Percorrendo a província em várias direcções, tendo a cidade do Kuito como ponto de partida, somos amiúde confrontados com os sinais, à beira da estrada, da presença de minas e de destroços de veículos militares, marcos silenciosos da guerra que terminou há apenas quatro anos.
David Kupanda, o Regedor Municipal do Andulo, diz que a população hoje vive bem melhor, todavia, alerta para os resíduos das confrontações militares: “Para além das minas temos o problema dos obuses que não rebentaram. Quase todos os dias descobrimos mais um obus”.
Mas é visível o esforço do Governo e de algumas ONG no sentido da desminagem: terrenos que há bem pouco tempo eram intransitáveis são agora lavras verdejantes e viçosas. Em todas as localidades é visível o ressurgimento da agricultura em toda a sua força. Os mercados estão repletos de produtos frescos, à espera de escoamento.
Os principais actores da ascensão agrícola são as mulheres, a grande força do campo. Pessoas modestas e humildes, tocadas pela guerra até no mais profundo de si mesmas, estão aí elas de pé, empenhadas na batalha da sobrevivência.
Justiana Joana, 28 anos, tem uma lavra nos arredores do Kuito. Cultiva mandioca e batata. Vai à lavra todos os dias. Tem um olhar triste e ela explica porquê: “O meu pai e a minha mãe morreram durante a guerra. O meu marido desapareceu”. Mãe de três filhos, é inteiramente responsável por eles. É principalmente para eles que ela trabalha. O que produz é para consumo e também para venda. Receosa, ela confessa que gostaria que o Governo a apoiasse: “É preciso adubos e também sementes”.
O Governo Central relançou, em Outubro de 2005, no Andulo, o programa de Extensão e Desenvolvimento Rural, cuja intenção é promover, de modo sustentado e integral, o desenvolvimento das comunidades rurais.
Maria Luísa Chicapa, administradora municipal do Andulo, explica que no quadro desse programa cada grupo de quatro camponeses será contemplado com duas cabeças de gado, uma charrua, enxadas, catanas, sementes e adubos. “Mas trata-se de um programa amplo, que abarca, para além da agricultura, a educação, a saúde, as obras públicas, enfim. E sabe-se que a maior parte da população rural é feminina, logo, estaremos a contribuir para o desenvolvimento da mulher rural”.
Viajar por estrada no Bié é um martírio. Do Kuito para o Chinguar, do Kuito para Catabola e Kamacupa, e do Kuito para o Cunhinga e Andulo, as estradas são um nunca mais acabar de buracos e verdadeiras máquinas de sacolejar. A maioria das pontes são precárias e perigosas. E sendo o Bié uma província abençoada pelas chuvas, é de se ver o quanto é difícil viajar de carro. Mas em todo esse quadro movimentam-se os taxistas, esses heróis das estradas.
Do Kuito para o Chinguar apanhámos um táxi que ia para a cidade do Huambo. Era um Toyota Corolla, conduzido por Floriano Chipino. De 45 anos, percorre a mesma estrada quase todos os dias, há dois anos. Por isso conhece de memória a localização dos buracos mais importantes; e numa estrada capaz de desanimar um outro qualquer, Chipino movimenta o seu carro com uma habilidade incrível a uma velocidade de arrepiar. Como consequência todas as semanas é obrigado a tirar um dia para fazer uma revisão completa à viatura.
O renascer da agricultura no Bié é mais do que evidente: para além das grandes extensões cultivadas, o viajante espanta-se com a variedade de produtos a venda à beira das estradas, mas sobretudo com os preços baixíssimos.
As estradas difíceis dificultam o escoamento da produção e a exploração mais intensa das potencialidades turísticas, transformando algumas localidades em verdadeiras ilhas, tal é a dificuldade de acesso.
O reerguer do Bié dos escombros e das sequelas da guerra tem como exemplo mais impressionante a cidade capital, Kuito. Quem lá esteve logo depois do fim do conflito armado não acredita no que os seus olhos agora podem ver.
Edifícios então feitos em pedaços, paredes picotadas com balas, foram em grande parte reabilitados, dando assim uma nota muito mais alegre à paisagem urbana.
E o tecido humano e social ganha uma nova vitalidade, uma outra dinâmica, em muito facilitada pela retirada dos milhares de cadáveres (cerca de sete mil) enterrados nos quintais e em locais públicos, para o cemitério criado a propósito, com a dignidade merecida e requerida.
A província do Bié tem nove municípios: Kuito, Chinguar, Cuemba, Kamacupa, Andulo, Catabola, Cunhinga, Nharea e Chitembo. O seu forte, economicamente falando, é a agricultura e a pecuária. Cultiva-se em larga escala o milho, o feijão, a batata rena e a mandioca. Nos municípios de Kamacupa e do Chinguar estão a ser feitos esforços de revitalização da cultura do arroz, um produto de que o Bié era famoso em anos anteriores à guerra. 
Este é o desenho possível do cenário onde se desenvolve a acção do Comando Provincial do Bié da Polícia Nacional.


11 Julho 2006


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      Kamacupa: estradas precisam-se



A viagem do Kuito a Kamacupa é de apenas 82 quilómetros, mas para quem viaja de carro a distância parece o triplo. A paisagem ao longo do percurso é de uma beleza sem par, dominada pelos campos agrícolas, testemunhas irrefutáveis do carácter trabalhador das populações locais.
Todavia, a estrada, que para além dos buracos, em alguns troços chega mesmo a desaparecer, transformando-se em ravinas ou picadas, amassa e cansa de tal modo o viajante que este perde o desejo e a postura contemplativa para tão somente querer chegar ao destino o mais rápido possível.
Quando chegamos a Kamacupa, depois de umas três horas de viagem num táxi de marca Toyota Hiace, inevitavelmente tivemos de nos sacudir da poeira vermelha, não fôssemos ser tomados por maltrapilhos, e estirar o corpo em improvisados exercícios de ginástica, para repor a circulação sanguínea normal bem como a disposição um tanto abalada.
Recuperámo-nos rapidamente: Paulino Gomes, 2.º Comandante Municipal e na altura Comandante Municipal em exercício, recebeu-nos com uma simpatia e uma bonomia sem par. Depois de uma conversa preliminar, que serviu também para ambientação e descontracção, a nosso pedido fomos à Administração Municipal, onde encontramos Aleixo Fernandes Kandambu, o Administrador, solícito apesar do imenso expediente que tinha.
“A base produtiva de Kamacupa é a agricultura. Aqui cultivamos sobretudo a ginguba, o milho, o feijão e a mandioca. Estamos a reactivar a produção de arroz: Kamacupa já foi o principal produtor de arroz em Angola”, informa Aleixo Kandambu.
O município tem apresentado níveis crescentes de colheitas. Esse incremento da produção agrícola tem muito a ver com o apoio prestado pelo Governo no tocante ao fornecimento de adubos, sementes e instrumentos de trabalho.
Todavia, existe o sério problema do escoamento da produção. “As estradas estão muito degradadas, o que desencoraja a vinda de compradores. Tem havido produtos que se deterioram ao longo do tempo”, diz o Administrador. “Temos camponeses que ainda têm café nos seus celeiros mas que não encontram compradores”, reforça.
O Governo está a fazer grandes esforços no domínio da reactivação da vida social. É neste quadro que se situa a inauguração do sistema de iluminação pública da sede municipal e de uma escola do I e II níveis. Por outro lado, “as relações com a Polícia são muito boas, não temos razões de queixa. Todos os dias temos contacto e a população sente-se protegida”, testemunha.
A sede provisória do Comando Municipal de Kamacupa é um edifício antigo, pequeno, a precisar de reabilitação e ampliação. O edifício original foi partido durante a guerra.
O efectivo policial desdobra-se pelas comunas de Umpulo, Ringoma, Muinha e Kwanza, onde existem postos policiais.
“Os crimes mais frequentes em Kamacupa são as ofensas corporais e o fogo posto em moradias, tudo resultante do excessivo consumo de álcool”, dá a conhecer o Comandante Municipal em exercício, Paulino Gomes.
Com uma população estimada em 213.444 habitantes, Kamacupa faz fronteira, a Norte, com a província de Malanje, a Oeste com o município de Katabola, a Leste com o município do Cuemba e a Sul com o Chitembo.

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O ressurgir do Andulo 

Com uma população estimada em 500 mil habitantes, maioritariamente agricultores, o município do Andulo é, económica e demograficamente, um dos mais importantes da província do Bié. A 130 quilómetros da cidade do Kuito, o Andulo é um verdadeiro celeiro.
Cultiva-se em abundância o milho, diferentes tipos de feijão e até o café arábico (cuja produção decaiu muito em decorrência da guerra).
Tendo sido um dos mais importantes palcos da última fase da guerra, o Andulo está francamente a recuperar-se. O Governo reconstruiu três hospitais e pôs em funcionamento um Instituto Médio de Educação e um instituto pré-universitário. 



Está a ser construído de raiz aquele que será o Instituto Médio Agrário, que terá uma capacidade para 1.600 alunos, 800 dos quais em regime de internato. No ano lectivo de 2005 estavam inscritos no ensino de base 130 mil alunos, 90% dos quais no I Nível.
À frente da Administração Municipal está Maria Lúcia Chicapa, uma mulher dinâmica e determinada.
Cortesmente, ela revelou à Revista Tranquilidade o seu estilo de governação: “A boa governação é participativa. O meu estilo natural de governar é o participativo mas às vezes temos de nos impor, porque infelizmente muitos dos nossos parceiros homens não gostam de ser liderados por uma mulher”.
Maria Chicapa acredita no pleno ressurgimento do Andulo como uma potência agrícola e turística. Mas isso passa antes pelo recuperar do tecido humano e social, fortemente desconjuntado pela guerra. Essa recuperação será conseguida com a integração social e produtiva dos desmobilizados das ex-FAPLA e das ex-forças militares da UNITA e também com o contributo espiritual das igrejas.
“Tivemos quase 28 anos de guerra, que deixou sequelas consideráveis e marcantes. As igrejas estão a contribuir imenso para a pacificação dos espíritos, com os seus cultos ecuménicos e não só”, considera a Administradora. 

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Chinguar, onde o mercado é uma festa


Calvino Florindo Ngongo, o Administrador Municipal do Chinguar, endireitou-se no cadeirão e gesticulou com os braços como que para enfatizar as suas palavras, ao responder à nossa pergunta sobre como iam as relações entre a administração e as autoridades policiais locais. “São excelentes. Estão a 100%. Há comunicação entre nós. A Polícia é parceira da administração e o garante da paz e da ordem pública”, disse.
Vindo de um almoço interrompido precisamente por nós (tal era a surpresa da nossa chegada ao Chinguar), Calvino Ngongo não parecia, todavia, arreliado. Pelo contrário: embalou-se logo em gabar as virtudes do seu município.
“A agricultura é que criou o homem e o Chinguar é o principal pólo de desenvolvimento agrícola do Bié. Se antes tínhamos problemas de inputs agrícolas, hoje estamos de parabéns, porque tivemos uma recepção desses inputs como há muito não tínhamos. Viram o mercado como está abarrotado? Os nossos produtos são escoados por agentes privados para Benguela, Huambo, Kuito, Kuando Kubango e Moxico. Mas o ritmo é lento, o que não permite o escoamento necessário e suficiente”.
Na verdade o mercado à beira da estrada era uma festa. Quase tudo à venda era resultante da produção local: batata rena em grandes quantidades e a preços inacreditáveis para quem vinha de Luanda; feijão fresquíssimo, acabadinho de colher; a boa galinha rija, viva ou frita, era um regalo para a vista e para o estômago; quanto às frutas, tivemos muita pena de não estarmos na época dos pêssegos, um dos cartões de visita do Chinguar.
“Sendo a agricultura a principal actividade económica, cá pratica-se também a pecuária, nomeadamente a criação de gado caprino, suíno e bovino. Em pequena escala desenvolve-se igualmente a apicultura e a pesca.
Em três anos de paz, com o apoio dos governos central e da província recuperámos o hospital municipal, a central eléctrica, o centro materno infantil, uma escola do I e do II níveis, construímos de raiz uma escola do I nível, com seis salas, e estão em obras as sedes das administrações comunais. Em cada uma das comunas estamos a construir um posto de saúde e uma escola”.
No final, Calvino Ngongo desvendou-nos a origem do topónimo “Chinguar”: trata-se da corruptela da palavra “Onguali”, que na língua nacional umbundu significa perdiz, uma ave que abunda (e abundava muito mais no passado) em Chinguar.
De acordo com estimativas oficiais, o município do Chinguar tem uma população de 134.000 habitantes.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

"São falsos puristas os que acham que em Angola se deve falar o português como em Portugal"

Entrevista a Linguista Amélia Mingas


Isaquiel Cori

O modo de estar dos angolanos no seio da língua portuguesa, o seu contributo para o enriquecimento dessa língua e o futuro da mesma em Angola, foram assuntos abordados ao longo da entrevista que a linguista Amélia Mingas, decana da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, concedeu ao jornal Cultura. O Novo Acordo Ortográfico   preencheu um largo espaço da conversa que decorreu no gabinete da entrevistada. "Como é que o vamos assinar quando a nossa variação não está lá dentro?", argumenta Amélia Mingas, defendendo a sua não ratificação pelo país.

Jornal Cultura - Como é que a senhora se auto-define? Como é que a Dra. Amélia Mingas avalia a Dra. Amélia Mingas? 

Amélia Mingas - Como alguém que se preocupa com a problemática linguística do país, até por inerência de formação, porque sou linguista. Para além disso tive uma vivência que criou condições para que me conformasse não só a essa problemática linguística mas ao país no seu todo.
JC - Em termos de  formação como é que vai para a área da linguística?
AM - Isto começou em Lisboa, onde fiz a licenciatura em filologia germânica. Tive acesso à linguística geral, à linguística portuguesa e, acima de tudo, à linguística inglesa e alemã. Ao  estudar os períodos antigo, moderno e contemporâneo dessas línguas, fiquei muito sensibilizada, sobretudo ao nível do alemão, porque eu lia alguns sons que me lembravam o kimbundo. Em função disso coloquei-me a questão: se é possível estudar essas línguas nesses séculos todos, certamente as nossas línguas também podem ser estudadas. Essa preocupação ficou para sempre em mim. Entretanto, fui levada pela conjuntura própria do ambiente que se vivia em Lisboa e em Angola, já que o meu pai foi preso político tal como outros familiares e amigos meus. Aliás eu já havia iniciado uma actividade política na clandestinidade, em que estive integrada no grupo de Santa Cecília, com o padre Vicente (não me recordo do seu apelido).
JC - Esse grupo praticamente não é mencionado no historial da luta clandestina anti-colonial...
AM - Mas é um grupo interessante. Tínhamos reuniões na Liga Nacional Africana. O padre Vicente, que já é falecido, era um jovem muito comprometido com a revolução e criou um grupo de jovens, mais jovens do que ele, de que eu fazia parte bem como uma série de amigas e colegas como, por exemplo, as irmãs Irene e Engrácia Cohen, Thalita e Sílvia Belo e Olga Lima. Nós ajudávamos à missa e logo a seguir recebíamos formação política. Partíamos para os bairros onde contactávamos as pessoas e as sensibilizávamos para a causa da independência. O escritor Arnaldo Santos também fazia parte do grupo. Lembro-me que na altura ainda se ia à Chicala de barco. Tudo isso foi nos anos 1960.
JC - Uma das conclusões a que chegou, nas suas pesquisas, é que a variante angolana do português é determinada pela interferência das línguas nacionais?  
AM -  Sim. Não se compreende uma variante que não tenha uma componente nacional. É uma maneira própria de estar na língua portuguesa que é dos angolanos. E ela reflecte-se não só no léxico, com termos ligados à nossa realidade, mas também no modo como transformamos a estrutura do desenvolvimento de frases da língua portuguesa. Isso acontece com todos os povos. Há uma contribuição dos angolanos para o enriquecimento da língua portuguesa, que a torna adaptada à nossa realidade. São novos termos que se introduzem e que fazem parte da nossa maneira de estar no mundo mas que também entram na língua portuguesa.
JC - A variante do português angolano está muito patente no linguajar popular e na literatura mas no ensino predomina a norma de Portugal. Aí, a variante angolana é combatida e tida como erro...
AM - Este é um problema que já há algum tempo enfrentei no ISCED, onde então eu era responsável pelo departamento de Língua Portuguesa. Reunimos os professores ligados à área de língua portuguesa e chegamos a uma conclusão: enquanto formadores temos de nos apoiar em documentos e orientações que conformem a nossa actividade. E porque não existe nenhuma norma do português falado em Angola, existe a necessidade, cada vez mais premente, dos angolanos formados em linguística se reunirem e verem as características da língua portuguesa falada em Angola.
JC - Aí a Faculdade de Letras teria um papel importante a desempenhar?
AM - Sem dúvida alguma. Mas, de modo geral, todos os docentes. A Faculdade pode fazer e apresentar uma investigação, mas dentro de uma estrutura específica. De momento o país não tem um centro de línguas nem uma associação dos linguistas. Deveríamos juntarmo-nos para vermos qual é a especificidade da nossa língua e definir o que é ou deveria ser ou não erro na língua portuguesa.
JC - Como é que a norma seria fixada? Pela elaboração de uma gramática do português angolano, por exemplo?
AM - Sim. E através do estudo dos casos que se notam a nível do português angolano. Por exemplo, há uma tendência extraordinária dos angolanos, a nível da regência verbal, para a anulação da preposição "a" pela "em". Dizemos "ir em" em vez de "ir a": "ir na escola", "ir no hospital", "ir no enterro", ao invés de "ir à escola"; "ir ao hospital", "ir ao enterro". Nas nossas línguas quando se vai para um espaço determinado, por exemplo o mercado, a escola ou o hospital usa-se sempre "mu", isto é, "dentro". Isso deve ter se imposto no nosso falar de tal modo que está vulgarizado. Pela norma, adquire-se ou introduz-se como orientação determinado fenómeno quando ele se impõe pelo número de falantes. A verdade é que ao nível da norma angolana temos de ter essa sensibilidade.
JC - Tornar norma esses modos de dizer não levantaria objecções por parte da elite "bem falante" da língua portuguesa?
AM - Toda a minha experiência de formação, da primária à Universidade, foi feita com professores portugueses. Só mais tarde fui estudar a França. Os professores portugueses corrigiram-me sempre e logicamente eu não digo "ir na escola". Mas isso já sai naturalmente nos nossos jovens, o que tem de ser respeitado. 
JC - Numa recente entrevista à Rádio Nacional a senhora defendeu a posição do Executivo de não ratificar o novo acordo ortográfico da língua portuguesa porque, segundo disse, não incorpora a variante angolana. Não é um contrasenso, tendo em conta que a variante angolana do português nem sequer é legitimada institucionalmente no ensino e, de modo geral, na comunicação social em Angola?
AM - O caso é diferente. O acordo tem em conta as variações, alterações da língua. Como é que o vamos assinar quando a nossa variação não está lá dentro? A minha defesa não é ir à língua portuguesa, que é património comum de todos nós, e alterá-la. Por exemplo, como é que se escreve "Mbanza Congo"? O português, porque não tinha "Mb" registou "Banza". Mas o termo não é português! Quando alguém que conhece uma língua bantu como nós vê "Banza" não vai poder pensar que é "Mbanza" e aí a comunicação terá problemas. Mais ao norte, em Cabinda, temos "Mbuco Nzau", onde "Nzau" significa elefante, mas o português registou "Buco Zau". Portanto, "Zau" não significa elefante na língua de origem. Quer dizer que se o termo é kikongo, kimbundo ou umbundo e temos que utilizá-lo porque faz parte do nosso património cultural temos que usá-lo na língua de origem, porque senão estamos a descaracterizar a estrutura dessa língua.
JC - Terá havido então um défice negocial aquando da discussão do acordo ortográfico?
AM - Houve. A Dra. Luísa Dolbeth e Costa, que fez parte da comissão, insurgiu-se dizendo que não podia assinar o acordo sem que o mesmo fosse discutido a nível do país. Como digo, o Acordo Ortográfico é um problema essencialmente político, que não tem a base científica. Mais tarde arranjou-se alguém para ir assinar o acordo.
JC - Arranjou-se alguém?
AM - Sim, indigitaram outra pessoa para assinar por Angola. Mas a verdade é que o acordo não foi avante, não foi implementado. O último Acordo foi mais agressivo, porque, a nível da reunião da CPLP na Guiné Bissau, os presidentes decidiram que num conjunto de sete países (Timor Leste ainda não fazia parte da CPLP) desde que três (que nem sequer era cinquenta por cento) o ratificassem, o Acordo entraria imediatamente em vigor. Por aí vê-se a base política do Acordo. E quem o ratificou? Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Não tenho nenhuma crítica a fazer aos países que o ratificaram com o Brasil. Hoje em dia diz-se que o Brasil tem 200 milhões de habitantes e, portanto, pode. Não posso estar de acordo com isso. Se formos pelo argumento de que os milhões podem decidir então não vamos só pela língua, pode ser mais alguma coisa qualquer. A língua é património comum e temos todos o mesmo direito a ela. Enquanto património comum que se vai alterar, quanto a mim, devemos nos perguntar, por exemplo, como é que nós que escrevemos a língua portuguesa vamos escrever "Mbanza Congo" sem prejudicar o étimo africano, a palavra na sua origem, e também sem ferir a fonologia e a ortografia portuguesa. Acho que a base da discussão do Acordo é que está errada.
JC – Há quem argumente que independentemente de Angola ratificar ou não o Acordo ele entra-nos porta a dentro seja pela influência das televisões de Portugal e do Brasil ou pela tecnologia, com os programas de correcção automática do português nos computadores. Quer comentar?
AM - Por esse andar Portugal, enquanto país da União Europeia, também deixaria de falar português, já que os portugueses são obrigados a falar outras línguas que não o português na UE. Quando o meu computador tenta corrigir o que escrevo, eu digo "adicionar o dicionário" e escrevo normalmente. Estive no Brasil, na Universidade da Bahia, em representação do Reitor [da Universidade Agostinho Neto] para a assinatura de um protocolo e eles apresentaram-me o documento escrito no português brasileiro. Recusei-me a assinar o documento tal como estava escrito porque o Estado angolano ainda não ratificou o Acordo Ortográfico. Eles desculparam-se e o Dr. [Carlos] Lamartine pôs o documento na língua tal como a gente escreve e então as duas versões do documento foram assinadas. Isso faz-se. Mas é preciso que saibamos o que queremos.
JC - E nós sabemos o que queremos?
AM - Eu pelo menos sei.
JC - Referia-me do ponto de vista institucional.
AM - A nível da língua não há tanto essa ideia mas por um certo posicionamento verificamos que os angolanos sabem o que querem. Querem ser respeitados como seres pensantes e como seres capazes também de contribuir para um saber geral. Mas é preciso que quando se vai a áreas específicas haja lá gente capaz de defender aquilo que os angolanos querem. E também é preciso alguma discussão. Há termos que são nossos e que entram para a língua portuguesa. Temos de os escrever de modo a que os portugueses os consigam ler mas também de modo a que a nossa origem, a nossa marca, não se perca.
JC - Retenho a expressão "termos que entram para a língua portuguesa". Isso implica uma instância homologadora, de legitimação, que não está situada em Angola. O que diz em relação a isso?
AM - Não está porque não temos uma norma definida, como acontece com o Brasil. Mas há quantos anos o Brasil existe como um país independente? Nós ainda no último quartel do século passado estávamos sob dependência portuguesa! Estamos num momento difícil, com problemas tremendos, que é o da construção da nossa Nação. Ainda estamos a nos constituir como Nação pluriétnica, plurilinguística e pluricultural. Muitos de nós ainda pensam em função do grupo etnolinguístico a que pertencem e não em termos de todo o país. Muitas vezes eu digo aos meus colegas: "eu já saí do kimbo há muito tempo".
JC -  Para onde nos levará a dinâmica do português em Angola no quadro do processo da criação e consolidação da Nação angolana e da procura de um modo próprio de estar na língua portuguesa "sob pressão das línguas nacionais"? Poderá eventualmente haver uma evolução tão radical que os angolanos de hoje não serão percebidos pelos angolanos de daqui à cem anos?
AM - Não. Uma coisa é falar kimbundo, umbundo ou kikongo e outra é falar português sabendo kimbundo, umbundo ou kikongo. A interferência na língua portuguesa cria-se como? Quando a gente quer definir algo que faz parte da nossa vivência como africanos que não existe na sociedade portuguesa. Por exemplo, o funge, a kizomba, a kifufutila, o bombó, são criações africanas, são parte da nossa vida, da nossa maneira de estar no mundo e, logicamente, entram na língua que nós utilizamos para interagir com os outros, que são angolanos. Mas como é que entram? Cabe a nós angolanos definir.  O problema é que somos muito poucos linguistas, concentrados  e preocupados com essa situação. Mas já fomos menos do que somos agora. Agora temos muitos jovens a trabalhar connosco nesse sentido. Os estudantes que estamos a preparar [na Faculdade de Letras] devem ser integrados, por exemplo, como assessores dos administradores e outros dirigentes nos seus contactos com as populações nos kimbos. 
JC - O que está a ser feito na Faculdade de Letras em termos de pesquisa linguística?
AM - Temos um grupo de docentes e discentes que está  a fazer investigação nas províncias sobre as línguas que ensinamos aqui: kimbundo, umbundo, cokwe e kikongo. Estamos a elaborar livros de leitura e de exercícios nessas línguas. No ano passado, em Fevereiro, fizemos recolhas em vários municípios do Uíge, e, ainda no mesmo mês, estivemos no Huambo. Este ano já estivemos em Malange e na Lunda-Sul. Falamos com sobas e mais velhos, recolhemos dados. 
JC - Quando é que vão surgir as primeiras publicações baseadas nesses estudos?
AM - O material sobre o kikongo está na gráfica e o sobre o umbundo já está feito.
JC - As publicações vão circular apenas no âmbito interno da Faculdade ou serão também acessíveis aos grande público?
AM - As pessoas que quiserem poderão ter acesso. Mais tarde faremos edições bilingues kimbundu/português, umbundo/português, kikongo/português e cokwe/português. Outra das preocupações que temos é a tradução de obras importantes para a formação dos nossos estudantes, inexistentes em português, como é o caso de "A Filosofia Bantu", [de R. P. Placide Tempels].
JC - Qual é o enquadramento que a Faculdade de Letras faz à literatura angolana?
AM - A literatura angolana está integrada em duas áreas: no curso de Língua Portuguesa e Literaturas em Língua Portuguesa e no curso de Línguas Angolanas e Literaturas Angolanas.
JC -  Voltando à problemática da língua: não estará a fazer falta uma Academia Angolana de Letras?
AM - Faz falta. Há tempos estive no Brasil e coloquei junto de colegas das academias brasileiras a possibilidade de alguém lá ir fazer um estágio de um ou dois meses para estudar a estrutura de uma academia. O que é que faz a academia? Ela segue as evoluções e fixa aquilo que se impõe na prática. Por exemplo, a Academia Angolana de Letras teria que fixar que aqui em Angola tanto "ir a" como "ir em" é certo e não errado. Mas a essa posição já chegaram os professores da língua portuguesa no ISCED, na altura em que eu era responsável do departamento de língua portuguesa. Como não há a definição de uma norma angolana nós pedíamos que os professores ensinassem a norma portuguesa, só que tinha de haver sensibilidade, de modo a que quando o aluno dissesse "fui no hospital" não devia ser marcado como erro. A esse nível o problema estava superado. Quando o aluno diz "comeu o meu dinheiro" em vez de "roubou o meu dinheiro", a gente não deve considerar erro, porque trata-se de uma criatividade que nós definimos em linguística como expansão semântica, isto é, a nível do significado.
JC - Expressões como "ir no hospital" estampadas num jornal de referência não cairiam muito mal?
AM - Cairiam mal aos falsos puristas e que não estão a ver a realidade angolana como capaz também de criar condições e de viabilizar algo que já começa a ser uma regra na língua.
JC - Quem são os que a Dra. Amélia Mingas considera "falsos puristas"?
AM - São falsos puristas os que acham que o português que se deve falar em Angola é o português que se fala em Portugal. Enquanto angolanos eles deviam pensar na realidade angolana. 
JC - Convenhamos que a realidade linguística angolana é bastante complexa?
AM - Tudo é complexo e a língua cria sempre muitos problemas. O que acontece é que a língua portuguesa foi aqui imposta pelo processo colonial mas é uma língua completamente distinta da nossa. O português que a gente fala é nosso. Foi-nos imposto e o adoptamos com a nossa marca. O nosso som está lá todo. A vogal que o português fecha nós abrimos. No aspecto da língua estamos muito mais próximos dos brasileiros porque muitos dos nossos antepassados para lá foram e deixaram a sua marca na língua. A língua evolui com a comunidade que a fala. 
JC - Como é que avalia o contributo da literatura angolana para o enriquecimento da língua portuguesa?
AM - No fundo os nossos autores tentam seguir a evolução da língua portuguesa em Angola. Os escritores reflectem a realidade que vivem. O meu amigo Luandino [Vieira] a partir de uma determinada altura estava a inventar uma língua que era já só dele. Mas no [livro] "Luuanda" a gente via realmente o nosso povo  a movimentar-se, a falar, a viver. O escritor é um criador, também inventa mundos.

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Amélia Arlete Dias Rodrigues Mingas (1946, Ingombota, Luanda) é licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorada em Linguística Geral e Aplicada pela Universidade René Descartes, de Paris. Foi coordenadora do Departamento de Língua Portuguesa do Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (ISCED) e directora do Instituto de Línguas Nacionais do Ministério da Cultura. Foi igualmente directora do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, sediado na Cidade da Praia, Cabo Verde.
Publicou o livro "Interferência do Kimbundu no Português Falado em Lwanda" e tem no prelo outros trabalhos de investigação linguística. Actualmente é docente e Decana da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto.

Entrevista originariamente publicada na edição nº 41, de 14 a 27 de Outubro do jornal angolano Cultura, do grupo empresarial público Edições Novembro.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

O lado obscuro e a vertigem das redes sociais

A Internet e as suas várias dimensões






Isaquiel Cori

É um facto que as redes sociais, actualmente, são o "carro chefe" da Internet, isto é, constituem o motivo principal dos usuários acederem à Web. Antes já o foram os motores de busca com a sua quantidade quase infinita de informação sobre praticamente todos os tópicos e assuntos.
Os internautas, vezes sem conta, perdiam-se [perdem-se] no meio de tanta informação, incapazes de fazer as devidas conexões e dar um rumo a tanto saber. E havia ainda [há] o aspecto da impessoalidade: ao accionar o browser estamos claramente a lidar com a máquina não apenas como meio mas também como fonte de informação.
É o contrário do que acontece com as redes sociais, onde o internauta lida com pessoas [virtuais], interagindo com elas, colocando questões e obtendo respostas a mais das vezes em tempo real. As redes sociais são assim o lado mais humano e humanizante da Internet, na medida em que a principal característica do ser humano é precisamente a socialização.
Mas aqui é pertinente colocar as questões: as pessoas com quem lidamos nas redes sociais são verdadeiramente reais? São mesmo autênticas?
Ou são máscaras, projecções idealizadas de eus solitários diante do computador? De gente que sonha e vive contente, amando, sofrendo, lutando, perdendo, ganhando, caindo, soerguendo-se, gritando, calando, batendo, apanhando, e projecta os seus sonhos, através do teclado do computador, tablet ou smartphone para a rede social de que faz parte?
Para mim, confesso, esse é o lado obscuro das redes sociais e que, não poucas vezes, me provoca vertigem. Gosto de falar com pessoas de carne e osso, olhá-las nos olhos, sentir as palavras a saírem-lhes literalmente da boca, acompanhar os seus gestos ou, pelo menos, se ao telefone, captar as nuances da sua voz.
Quando leio um post no facebook ou noutra rede social é como se estivesse a ler um romance: mais do que o autor, visualizo um narrador, um contador de estórias.  

terça-feira, 16 de abril de 2013

A Opinião do Escritor João Tala

Processo eleitoral na União dos Escritores Angolanos

Isaquiel Cori
 
Três perguntas ao escritor João Tala, a propósito do processo para eleição dos novos corpos sociais da União dos Escritores Angolanos. Tala é um dos inspiradores da candidatura da Lista B, liderada por António Gonçalves.
  
Tem alguma razão de queixa em relação à forma como está a decorrer o processo eleitoral?

Está uma campanha bastante desigual e a imprensa não equilibra a vontade das duas listas do mesmo modo. Por exemplo, determinado semanário, muito conhecido no país e não só, fez campanha a favor da Lista A por três semanas consecutivas. Sabemos como isso se processa com negociatas «debaixo da mesa». Mas isso reflete apenas a atitude de uns quantos escritores sempre envolvidos de pensamentos mercantilistas para benefícios próprios e de alguns jornalistas ávidos da "massa". Estou hoje nada fascinado com a mesquinhice que reina na UEA. Muitos confrades consentem miséria ideológica, desunião, clientelismo, a exclusão etc., para que possam acontecer coisas desse género. A campanha da Lista A começou muito antes da realização da Assembleia que fixaria o início a 01 de Abril e isso já me deixa intrigado. Há também o facto autoconsumista, com dispêndio de fundos da UEA à campanha própria por parte da actual direcção, cedendo apenas valor irrisório à lista oponente.

O que tem a acrescentar ao programa eleitoral da lista B em circulação?

A Lista B parte de uma experiência que é o trabalho com o escritor, é a valorização da escrita literária como contributo ao património cultural. Fóruns como o I Encontro Internacional de Literatura Angolana, realizado em 1987, a instituição de prémios literários como o "Prémio pelo Conjunto da Obra" e outros, a promoção de tertúlias na casa dos escritores estariam acima do mercantilismo aproveitacionista, devolvendo-nos o conforto das Ideias, curtindo a nata do pensamento que faz o escol em Angola.

Tem a convicção de que a vitória da lista B está garantida?

Não me falta a convicção de que a UEA deve mudar uma série de aspectos. Apesar da surpresa que constitui a quebra rotineira das unanimidades, as duas listas estão em condições de ganhar ou não. Não antecipo nada para ninguém porque até ainda estou gratamente em campaha pela Lista B e os outros também estarão a fazer a sua.

Tudo a postos para o pleito eleitoral na UEA


Amélia Dalomba, presidente da Comissão Eleitoral

 
Isaquiel Cori

 
A eleição dos novos corpos sociais da União dos Escritores Angolanos (UEA) acontece a 20 de Abril, na sua sede, em Luanda, com a apresentação de duas listas. A lista A é liderada pelo actual secretário-geral, Carmo Neto, e a B por António Gonçalves.
Até ao dia 18 decorre a campanha eleitoral, com os candidatos a movimentarem-se e a divulgarem os respectivos programas.
Amélia Dalomba, presidente da Comissão Eleitoral, disse que todo o processo está a decorrer “com imensa tranquilidade”.
“O nosso trabalho é estabelecer consensos e equilíbrios e estamos a encontrar bastante colaboração entre os candidatos. Não temos nenhuma situação que lese os estatutos”, referiu.
A escritora garantiu que “os preceitos democráticos e estatutários estão presentes no processo e estarão presentes no pleito eleitoral”.
Disse esperar que a campanha eleitoral continue a decorrer com transparência e civismo e que cada um dos concorrentes “cuide do respeito pelo prestígio e a memória da instituição”.  
Deu a conhecer que está previsto pelo menos um debate entre os cabeça de lista, em data por acertar, na Rádio Nacional.
Fazem igualmente parte da Comissão Eleitoral os poetas António Panguila e Nok Nogueira e um representante de cada uma das listas concorrentes. O resultado da eleição é conhecido no dia 20 e os órgãos eleitos tomam posse no dia 28.
A UEA, fundada a 10 de Dezembro de 1975, congrega a grande maioria dos escritores angolanos. As suas acções estendem-se pelas vertentes associativa e editorial. O incentivo à escrita e a promoção do livro, da literatura e da leitura são as suas principais actividades.

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Programa da Lista A 
Trazer a público novos talentos literários
O programa da Lista A, onde pontificam Carmo Neto, candidato a secretário-geral, e Adriano Botelho de Vasconcelos, presidente da mesa da Assembleia Geral, manifesta a intenção de promover e divulgar cada vez mais a literatura angolana e trazer a público novos talentos no quadro do princípio da continuidade. Segundo os seus mentores, está voltado para a elevação da imagem dos escritores angolanos, o aumento das publicações e o reforço do papel da instituição como uma referência nacional e internacional na literatura, contribuindo na promoção, divulgação, construção e conservação da história de Angola no domínio cultural.
O programa prevê fortalecer as capacidades internas, para melhor responder e servir os seus membros e a sociedade.  Estabelece como linhas estratégicas para os próximos três anos o reforço da capacidade, imagem e relações institucionais; a promoção e divulgação da literatura angolana e a identificação e promoção de novos talentos.
O secretariado executivo, refere o documento, levará a cabo acções de capacitação dos quadros internos sobre estratégias de realização e produção de programas culturais e estabelecimento de protocolos de parceria com diversas instituições (internas e externas).  
É garantido que a comissão directiva procurará mobilizar e proporcionar espaços e meios para divulgação das obras dos membros dentro e fora do país e trabalhar-se-á na descoberta de novos talentos, tornando-os públicos com vista a incentivar a juventude ao gosto pela escrita e leitura.
A Lista A impõe-se como missão assegurar a promoção e divulgação da literatura angolana dentro e fora do país; defender os interesses dos membros da UEA e trazer a público os novos talentos da literatura angolana.
A meta é tornar cada vez mais a UEA uma referência incontornável na literatura angolana, contribuindo na promoção, divulgação e conservação da história angolana, sobretudo no domínio cultural. É igualmente fazer da UEA um espaço de partilha entre escritores, baseados nos princípios da solidariedade, transparência, unidade e responsabilidade social.
De modo específico, os candidatos da Lista A pretendem aumentar os níveis de produção e venda de títulos (livros) durante os próximos três anos; proporcionar  mais espaços de debate, troca de experiências e divulgação das obras dos membros da UEA dentro e fora do país; e reforçar e criar novas parcerias com instituições nacionais e internacionais, estabelecendo protocolos de parceria nos vários domínios da promoção e divulgação da literatura angolana.
Pretendem também incentivar o gosto pela leitura e a escrita no seio dos jovens e melhorar a capacidade de prestação de contas e as condições da UEA para prestar  serviços públicos.
O documento refere que, a ser eleita, a Lista A vai bater-se pela mobilização de meios para a produção de mais de 60 títulos dos membros da UEA a nível interno e externo, o estabelecimento de protocolos de parceria com Universidades e livrarias e por uma maior tradução da literatura angolana nas línguas estrangeiras mais influentes (inglês, francês, espanhol, italiano e alemão).
Vai realizar a Feira Internacional do Livro da UEA, com periodicidade anual, o Grande Prémio de Literatura da UEA, com carácter bianual, lançar o  Prémio António de Assis Júnior, revitalizar o Prémio Quem Me Dera Ser Onda e institucionalizar os prémios Alda Lara e Eugénio Ferreira, este especificamente no campo da crítica literária.
Com a Lista A, é prometido no seu programa, a literatura angolana passará a estar representada nos eventos literários internacionais, serão levadas “biblioteca e leitura” às principais unidades prisionais do país e publicitadas as obras literárias nos meios de transportes públicos e privados.
Serão feitas parcerias com a comunicação social para a promoção e divulgação da literatura angolana, realizados eventos culturais tais como a comemoração dos 50 anos de lançamento do livro “Luuanda”, do escritor Luandino Vieira, e a Semana Africana na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Do programa consta igualmente a realização de um Seminário Internacional de Literatura sobre Guerra e Paz, um encontro nacional de escritores, a participação em feiras internacionais do livro e encontros de confraternização durante os aniversários da UEA.
O projecto de liderança de Carmo Neto para os próximos três anos inclui a recolha e selecção de novos potenciais parceiros para apoiar a promoção e divulgação da literatura angolana, a promoção de bibliotecas junto dos estabelecimentos escolares, formação e debate sobre crítica literária e o estabelecimento de protocolos com o Ministério da Educação para que nas escolas, a todos os níveis, seja obrigatório o estudo da literatura angolana e a divulgação dos escritores angolanos.
É prometida a avaliação interna e externa das contas da UEA e garantido o apoio à assistência médica e medicamentosa dos membros da UEA e pessoal administrativo.
O lema da campanha da Lista A é: “Unidos na União”.
 
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Programa da Lista B
Influenciar linhas de pesquisa universitárias


O programa da Lista B, segundo os seus mentores liderados pelo escritor António Gonçalves, é “inspirado nos grandes ideais que nortearam o surgimento da Geração da Mensagem (1948) e dos intelectuais precedentes, imortalizados no livro ‘Voz de Angola clamando no deserto’ (1801), primeiros pensadores angolanos e fundadores da nossa Literatura nacional”. 

A intenção da Lista B, segundo o preâmbulo do seu programa, é “colmatar inúmeras lacunas existentes no funcionamento actual da maior e mais antiga associação de escritores em Angola”.
Noutra vertente, é referido que se pretende “reclamar a maior adaptação da UEA aos novos tempos, projectar um futuro rico em inovações, mas sem esquecer a história do Povo Angolano e dos seus Heróis”. É igualmente projectado “recuperar o protagonismo perdido pela UEA como elemento ‘chave’ da sociedade civil e restaurar o orgulho de ser escritor-membro desta prestigiada associação”.
Concretamente, o programa da Lista B consiste em negociar um seguro para todos os escritores necessitados, organizar, em 2014, um colóquio em homenagem ao 90º aniversário natalício de António Jacinto (28 de setembro de 1924 — 23 de Junho de 1991), membro fundador da UEA e um dos grandes da literatura nacional e apoiar, em 2014, a segunda Edição da Bienal Internacional de Poesia de Luanda.
É pleiteada a organização, em 2015, da segunda edição do Encontro Internacional sobre Literatura Angolana, a consolidação do projecto editorial da UEA e o fortalecimento, de forma contínua, da publicação e divulgação de livros.
É referida a intenção de retomar a divulgação do Concurso Primeiro Livro, para os novos autores em todo o território nacional, a criação do Prémio UEA para o conjunto da obra de um escritor angolano, a ser entregue no dia 10 de Dezembro, em conjunto com o Prémio Primeiro Livro.  
É proposta a criação de uma comissão para pesquisar e sugerir a instituição do Dia do Escritor Angolano, a publicação da gazeta Lavra & Oficina, com periodicidade mensal, e a promoção de encontros nacionais de escritores, com cada edição numa província e o apoio do executivo local.
A liderança de António Gonçalves propõe-se a organizar, em cada dois anos ou sempre que as condições permitirem, um festival internacional de poesia de Angola com a presença de poetas do mundo, “com destaque aos nossos irmãos africanos”,  revitalizar os acordos já assinados pela UEA e reforçar os laços privilegiados com as diferentes associações de escritores da CPLP e de países como África do Sul, Congos, Zâmbia, Namíbia e da América Latina.
A Lista B promete criar programas de Oficinas de Escrita Criativa dirigidos especialmente a jovens, com a colaboração de especialistas de Angola, Cuba, Portugal e Brasil, proporcionar condições para a construção da Casa do Escritor, que, com os devidos apetrechamentos, servirá também para albergar personalidades estrangeiras convidadas pela UEA.
No seu projecto de gestão António Gonçalves, que se faz acompanhar pelo poeta João Maimona, proposto a presidente da mesa da Assembleia Geral, inscreve a produção de um programa, em formato televisivo e adequado ao radiofónico, para a divulgação e discussão da literatura e suas implicações na sociedade e o desenvolvimento de um projecto que permita manter convénios com instituições do ensino superior vocacionadas para o ensino de literatura, estimulando e influenciando as suas linhas de pesquisa.
É também referida a ideia de revitalizar os concursos infanto-juvenis e a sua extensão a escolas em todas as províncias.
Nas províncias onde as condições o permitam deverão ser criados  núcleos provinciais da UEA, com o apoio do Executivo local através da direcção provincial da Cultura.
Serão organizados encontros de confraternização entre escritores, para estimular as tertúlias, tendo como convidadas personalidades de destaque da vida sócio-cultural do país, bem como visitas turísticas a locais históricos e culturais espalhados pelo país, em companhia de personalidades nacionais e estrangeiras.
Finalmente, o programa da Lista B promete redefinir os critérios de atribuição da bolsa de criação literária, estabelecer um acordo com a coordenação das Mediatecas, de modo a ter-se em conta a divulgação e promoção dos livros dos escritores angolanos e estabelecer acordos com instituições culturais sediadas no país e no exterior.
“Competência, Responsabilidade e Solidariedade. Por uma União ao Serviço dos Escritores, da Cultura e da Nação” é o lema adoptado pela campanha de António Gonçalves.
 
 
 

 

domingo, 31 de março de 2013

As nuances do 1 de Abril, o Dia das Mentiras

Onde se fala de mentiras “inocentes” e “sérias
 
 
Isaquiel Cori


Sim e não. Branco e preto. Grande e pequeno. Bom e mau. Alto e baixo. Verdade e mentira... É assim que, na generalidade, o senso comum tende a pintar o mundo, como se a vida fosse uma pobre moeda de duas faces. Pepetela, no seu celebrado romance, “Mayombe”, introduz, entre o sim e o não, a questão do talvez. E entre a verdade e a mentira?

Crescemos a ouvir, e agora dizemos aos nossos filhos, que mentir é muito feio. E que mais vale dizer a verdade, seja em que circunstância for. Mas, como na história bíblica, por analogia, diante da pecadora, quem nunca mentiu, que atire a primeira pedra.
“De quando em vez, uso umas mentirinhas. Por exemplo, às vezes digo aos meus filhos que vamos passear a um determinado lugar e acabamos por não ir”. Tratam-se de mentiras “inocentes”, “sem consequências de maior”, na óptica de Rosa Gracieth, 39 anos. Para lá desse tipo de mentira, ela distingue outro, “mais sério”: “Há aquela mentira que chega a ser um roubo. Por exemplo, alguém vende-te um produto por dois mil kwanzas, quando o seu preço verdadeiro é mil. Mais do que mentira, isso é um roubo”.
Leonilda Damião, 32 anos, é igualmente de opinião que existem mentiras “inocentes”, “toleráveis”: “De quando em vez, quando quero uma coisa do meu esposo, minto, e, ao fim e ao cabo, descubro certas verdades. Quando a mentira não é destrutiva mas saudável, ela contribui para uma boa relação”.
Mentiras afectivas?, interrogamo-nos nós.
Definitivamente, há gradações no mentir. Mentiras “inocentes”. Mentiras “sérias”. Se aquelas são parte íntima do jogo saudável das relações humanas (nesta acepção, podem ser expressas pelos verbos “estigar”, reinar, caçoar, brincar) já estas podem ter efeitos danosos. “Quando alguém me mente sinto-me muito zangada. É triste e frustrante. Perco logo a confiança nessa pessoa”, exclama Leonilda Damião.
“Sinto-me decepcionado, sobretudo se o mentiroso for alguém que convive comigo. Encaro essa mentira como um acto de traição”, acrescenta Adriano Makuéria, 38 anos.
“A mentira, para ser saudável, tem de ter limite. A pessoa que mente tem de saber que não vai prejudicar ninguém”, opina Gina Lopes (não quis dizer a idade), sub-directora pedagógica da escola primária 6.014. “Num desses 1 de Abril, alguém ligou-me a dizer que um amigo morreu. A notícia espalhou-se e até chegou a formar-se óbito, quando na verdade o tal amigo estava bem vivo e a dar as suas voltas. Senti-me muito transtornada e ofendida”, revela.
Gina Lopes acrescenta o fenómeno da mentira aos males que vêem sendo observados e recenseados na sociedade angolana. “Em Angola mente-se muito, tanto a nível das figuras públicas como das outras. Tendem a dizer que podem, quando na verdade não podem. Muitos jovens, quando querem conquistar uma rapariga, fruto da pobreza em que vivem, fazem-se passar por alguém que não são. E agora, com o uso generalizado dos telemóveis, as pessoas tornaram-se muito mais mentirosas”.
Porventura também mente-se por caridade? Por amor?
“Sim”, afirma Leonilda Damião. “Há quem, diante de um defeito do companheiro, para não magoá-lo, prefere mentir”.
Entre homens e mulheres, em Angola, quem mais tende a mentir? À falta de estatísticas, que nos dariam um quadro objectivo do problema, contentamo-nos a colher a opinião dos nossos interlocutores. “Acredito que haja um equilíbrio. Todo o ser humano está sujeito a mentir”, diz Gina Lopes.
Adriano Makuéria é mais contudente: “As mulheres mentem mais. Veja que raramente elas aceitam dizer a sua idade ou, se trabalham, o salário que auferem”.
“Os homens mentem muito mais. Vejo mais seriedade nas mulheres”, defende Casimiro Morais, 40 anos.
Na escala de graduação da mentira há que mencionar aquela que está associada ao maravilhoso, à fábula, ao sonho. Este é o mundo, por excelência, da literatura, da ficção. “O escritor mente para fazer passar a sua mensagem. Ele é um educador, já que tenta criar uma mentalidade nova. O escritor pode recorrer a personagens fictícias para, digamos assim, salvar a sociedade”, refere Timóteo Ulika (pseudónimo literário do historiador Cornélio Caley).

A perspectiva jurídica

Segundo Lazarino Poulson, advogado, não existe mentira legítima. “A mentira é sempre um engano”, afirma. “Eventualmente, a mentira pode ser admissível no âmbito do trato, da cortesia, mas nunca na esfera jurídica. Aliás, há crimes que têm na sua base a mentira. São os casos dos crimes de burla, de peculato, de abuso de confiança e de falsificação”.
Na óptica do advogado, nem mesmo o Dia das Mentiras pode servir de desculpa para mentiras danosas. “Imagine que no dia 1 de Abril alguém desperte um alarme de bomba num aeroporto. Isso pode provocar pânico e daí danos materiais e outros. A esse indivíduo deverão ser imputadas responsabilidades civis e criminais. Quando a mentira provoca danos ou afecta os nossos direitos, ela é muito perniciosa”.
A classe profissional que mais mente, na percepção de Lazarino Poulson, é a das secretárias. Seguem-se-lhe, por esta ordem, a dos políticos, dos advogados e dos jornalistas.
O jurista Noé Filho esclarece que, juridicamente, uma mentira pode redundar num falso testemunho, quando “um indivíduo faz um depoimento contrário à verdade por ele conhecida”. Noé Filho menciona também a figura da simulação, no âmbito do direito civil, “quando alguém pretende realizar um negócio mas age de forma diferente, como se o não quisesse realizar”.
O jurista elucida que, em Direito, a acção consiste em fazer ou em não fazer. “Logo, também pode-se mentir por omissão”.
Ele reconhece que, por razões profissionais, os advogados podem ser obrigados a mentir... por omissão. “Pelo sigilo profissional, os advogados não têm a obrigação de narrar certos factos concernentes à situação dos seus clientes. Eles não podem, no tribunal, dizer algo que possa prejudicar os seus clientes”.
Noé Filho admite que se possa mentir no dia 1 de Abril. “Há mentiras grosseiras, aquelas que, pelo modo como são ditas, não têm a possibilidade de encontrar qualquer crédito. Essas são as mentiras toleráveis no Dia das Mentiras. Já as mentiras mais refinadas, aquelas que são ditas no sentido de produzir um efeito contrário à realidade ou para conseguir um proveito ou para que as pessoas tenham um determinado comportamento, não são, de modo nenhum, toleráveis”.

 

NA – Este texto foi originariamente publicado aqui em 23 de Agosto de 2009. Republico-o por achá-lo perfeitamente actual.