quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Escritor Henrique Guerra: "A inveja é um sinal de fraqueza"



Isaquiel Cori

Henrique Guerra é um dos últimos sobreviventes da chamada geração da "Cultura". A sua obra literária, que se estende pelo conto, a poesia e o ensaio, apesar de, como ele próprio diz, ser "curta em volume", é uma das mais representativas da literatura angolana. Alvo de homenagem em Janeiro de 2014 pelo Ministério da Cultura, voltou a sê-lo a 26 de Fevereiro do mesmo ano pela União dos Escritores Angolanos. Henrique Guerra, que também é artista plástico, voltou aos escaparates das livrarias em 2014 com o livro de contos "O Tocador de Quissanje".  

Escritor Henrique Guerra, entrevistado na biblioteca da associação Chá de Caxinde, em Luanda (foto de Paulino Damião)

Pergunta - Tem uma longa carreira literária, iniciada na adolescência. O que o levou a escrever?
Henrique Guerra - A minha carreira literária é longa no tempo, mas em volume é curta. As obras que publiquei já são de há bastante tempo, desde a minha juventude. Sou um pouco aquilo que Manuel Bandeira chamava de escritores bissextos. Não escrevo com muita regularidade. A minha actividade literária começou praticamente nos finais do meu ensino secundário, no Liceu Salvador Correia. Havia as minhas leituras, que eram praticamente a literatura portuguesa. O que me motivou a escrever foi uma vez ter lido no jornal "A Província de Angola", lá para o ano de 1952 ou 1953, um poema do Aires de Almeida Santos, "A Mulemba secou". Fiquei tão fortemente impressionado que tentei fazer uma música à volta desse poema. Verifiquei que para além daquilo que dávamos através dos compêndios escolares, na disciplina de Literatura Portuguesa, havia uma realidade angolana, um quotidiano que estava arredado da literatura oficial. Isso despertou-me a debruçar-me sobre a realidade que não era objecto da cultura oficial e comecei a escrever algumas coisas.
P - Começou pelo conto?
HG - Comecei pelo conto e também pela poesia. Nessa altura havia o movimento "Vamos Descobrir Angola", fundado pelo Viriato Cruz, que tinha vários centros onde se reunia a juventude e eram promovidos concursos de poesia. Resolvi concorrer e ganhei o primeiro prémio.
P - Qual era o título desse poema?
HG - Não tinha título, foi publicado no "Brado Africano". Dizia: "Eu quero fugir de mim / porque quero estar dentro de mim"... Dizia das inquietações da adolescência, da identificação contra si próprio, etc. O facto de ter ganhado o primeiro prémio daquele concurso entusiasmou-me para a escrita.
P - Que circunstâncias terão levado dois irmãos, Mário e Henrique Guerra, separados por dois anos de idade, a enveredarem pela escrita?
HG - Terão sido circunstâncias do meio estudantil. Frequentamos juntos a chamada "Turma do Barulho", que era um dos sectores do "Vamos Descobrir Angola", que de certo nos animou e despertou para a actividade literária.
P - Por que razão é um escritor bissexto? Por que fica tanto tempo, não diria sem escrever, mas sem publicar?
HG - Talvez porque dediquei-me mais à actividade profissional. As necessidades da vida levaram-me a ter uma profissão. Fui para a topografia e depois para a engenharia e isso absorveu-me mais, talvez também pelo lado técnico típico dessas profissões.
P - Os seus contos denotam que viajava bastante pelo interior de Angola. Continua a viajar pelo país?
HG - Agora, por razões de saúde, não viajo. Viajava muito enquanto topógrafo.
P - Há nos seus contos um narrador que observa e "pinta" os cenários com cores fortes, quentes. Nota que há uma interferência do pintor, que existe em si, na sua sua escrita?
HG - Sim. Quem observou primeiro esse aspecto foi o Abreu Paxe. Quando era topógrafo também pintei muito, sobretudo as paisagens dos sítios por onde passava. A pintura e a literatura eram actividades que corriam paralelas e certamente acabaram por influenciar uma à outra.
P - Continua a pintar? Quando teremos uma exposição sua de artes plásticas?
HG - É possível que tenhamos, mas não tenho um projecto.
P - O que faz, concretamente: desenha, pinta a óleo, faz guaches?...
HG - Mais desenho a preto e branco, tipo namquim, e guaches. Um dos meus defeitos é não guardar aquilo que produzo. Descuido-me, ofereço ou levam-me as obras para fazerem publicidade nos jornais.
P - Foi um dos colaboradores do jornal "Cultura", da Sociedade Cultural de Angola. Na sua opinião, qual é o legado dessa publicação para o jornalismo cultural hoje?
HG - Isso é polémico. Há uma tendência, uma corrente juvenil actual, que diz que o "Cultura" pertence ao passado, preocupava-se muito com a luta de libertação, já se fez a independência, agora os temas são outros. Mas acho que há um legado a ter em conta, que tem a ver com uma postura de hombridade e verticalidade moral, de defesa da justiça, da dignidade e igualdade entre os homens.
P - Além de poeta e ficcionista também é um grande ensaísta. Nessa última qualidade o que tem a dizer sobre a literatura angolana que se produz hoje?
HG - Existe uma busca saudável por novos caminhos e novas formas de expressão. Na minha juventude havia uma propensão dominante, que era a oposição à dominação colonial e às suas injustiças. Isso já direccionava e balizava a literatura. Hoje os problemas são muito mais abertos. Têm aparecido escritores novos que procuram debruçar-se sobre novas vertentes, buscando novos caminhos. Há, por outro lado, uma tendência, não muito salutar, de procurar uma maneira um tanto ou quanto individual e arbitrária de tratar os assuntos.
P - Como "uma maneira individual e arbitrária"?
HC - Acho que a literatura não deve ser explicada, a arte não deve ser explicada, ela deve explicar-se por si. Algumas obras são tão obtusas e tortuosas que depois o autor tem de explicar o que quis exprimir, quando a própria obra é que devia explicar-se.
P - Uma característica sua é a discrição e a aversão aos holofotes. Que lição tem a dizer a esse respeito?
HG - É um pouco imodesto a pessoa falar de si própria, apresentar justificações desta ou daquela maneira de ser. Os outros estão em melhores condições de observar e tirar conclusões. Mas talvez seja uma questão de idiossincrasia.
P - Foi preso pela PIDE entre 1964 e 1973, acusado de pertencer ao MPLA. Quais foram as circunstâncias exactas dessa prisão?
HG - Foi no auge da repressão colonial. Na altura o presidente Agostinho Neto lançou a palavra de ordem "Iniciativas e mais iniciativas", para estendermos a luta o mais longe possível, em todos os campos, com propaganda nas cidades. O meu grupo tentou fazer isso e não foi bem sucedido. Como consequência apanhei oito anos e meio de prisão, uma pena excessiva em relação aos actos em si, dependente também da forma como a defesa foi conduzida.
P - No princípio deste ano foi homenageado pelo Ministério da Cultura. Sente-se plenamente reconhecido?
HG - A homenagem sempre deixa o homenageado   recompensado e sentir que os seus actos não foram totalmente em vão.
P - No conto "Mulengue", que faz parte do livro "O Tocador de Quissange", há o desaparecimento dos fatos que os rapazes deviam vestir na festa do Liceu. Mas o clímax do conto acaba por ser a destruição das panelas de barro que a mãe Chica enterrara para se contrapor ao mau olhado. É como se o autor tivesse desistido de encaminhar a estória para descoberta dos culpados do roubo. Isso foi propositado?
HG - A preocupação principal não é repressiva ou policial, mas o fenómeno em si do mau olhado e da inveja. O que está em causa são esses sentimentos e não quem realiza o roubo. Quem realiza o roubo está dentro de um clima que o transcende, e esse clima é o que está em causa.
P - "A inveja, essa maldição que se infiltra no seio da sociedade africana". É um extracto do conto "Mulengue". Extrapolando, pode-se considerar a inveja como um mal latente na sociedade angolana actual?
HG - A inveja é um sinal de fraqueza, é o reconhecimento de uma inferioridade que alguém tem em relação a outro, por causa de uma situação que quer superar, mas não consegue e cai na frustração. Hoje em dia as transformações sociais são tão rápidas e profundas que existem extractos que se sentem fragilizados e frustrados em relação a outros que estão a avançar. E surge a inveja, que aliás, não é um apanágio restrito à sociedade angolana.
P - Alguns dos seus contos possuem tanta informação que dá a impressão que a trama bem poderia desenrolar-se mais lentamente, de modo a transformar-se numa novela ou romance. Porquê que até agora não se aventurou pelo romance?
HG - Na prisão tentei fazer um romance, quase o completei, baseado num conto cokwe. Uma vez o Luandino Vieira tentou animar-me a publicá-lo, mas achei que não estava muito bem conseguido e não o terminei.
P - Tem outros textos para publicar?
HG - Tenho coisas antigas. Eu pensava que depois da aposentação teria a minha vida mais livre e arrumada, mas até agora ainda não consegui isso.

(Nota: Entrevista publicada em Março de 2014 no jornal Cultura, Luanda.)



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Professor Francisco Noa fala da literatura de Moçambique e da língua portuguesa no espaço africano: "Temos estudos que podem legitimar as nossas variantes"

(NOTA: A entrevista que a seguir transcrevo foi produzida e publicada em 2014, quando estava profissionalmente vinculado ao jornal Cultura, na qualidade de editor de Letras. Publico-a neste lugar por causa da sua notória actualidade.)

                                                                       
    
Francisco Noa com o Presidente da República de Moçambique Filipe Nyusi, em 2015 (Foto de Ferhat Momade)

Francisco Noa, doutor em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, docente das Universidades Eduardo Mondlane, de Moçambique, e Agostinho Neto, de Angola, ensaísta e crítico literário, foi um dos ilustres convidados ao III Congresso Internacional da Língua Portuguesa da Universidade Jean Piaget de Luanda, realizado nos dias 16, 17 e 18 de Setembro de 2014. Apresentou a comunicação “A Contribuição da Literatura no Desenvolvimento da Língua Portuguesa”. Gentilmente concedeu ao jornal Cultura a entrevista que a seguir se transcreve.

Jornal Cultura – Um aspecto que ficou marcado no congresso da UniPiaget é o facto de nos países africanos a escola tender a impor uma norma da língua portuguesa afastada do uso corrente da língua. Porque não elevar à norma aquela variante que afinal é a língua dos cidadãos?
Francisco Noa – É muito fácil imputarmos as culpas aos políticos mas é uma situação extremamente delicada que vai levar, infelizmente, muito tempo a ser resolvida. Podemos olhar para o exemplo do Brasil, que tem hoje uma norma surgida da variante brasileira. Isso foi o reflexo de muita discussão. O Brasil ficou independente em 1822 e houve a preocupação de criar uma literatura e toda uma mundividência que reflectisse aquilo que o Brasil era culturalmente. Houve, durante décadas, um grande debate entre aqueles que defendiam a variante que tinha a ver com a especificidade, estou a pensar num José de Alencar, e aqueles que defendiam o registo clássico, digamos, culto, da língua, caso de Machado Assis. Só durante o século XX é que a variante se transformou em norma. Os nossos países estão com quarenta anos de independência e se formos às Universidades Agostinho Neto e Eduardo Mondlane, entre outras, vamos encontrar já muitos estudos de especialistas em linguística, com muita qualidade, que serviriam para validar, legitimar, a adopção das nossas variantes do português como normas. Penso que o impasse que existe neste momento é o que Jean-François Lyotard dizia no seu livro famoso, “A Condição Pós-Moderna”, entre aqueles que têm que decidir o que saber, que são os da academia, e os que têm que saber o que decidir, que são os políticos. O que eu quero dizer é que esse impasse de alguma forma tem de ser quebrado, sendo necessária também coragem política.

JC – A discussão tem de sair da academia para a sociedade.
FN –E sobretudo para a política. Isso tem de ser um processo. Há muitos erros ortográficos e de natureza morfo-sintáctica e não podemos ser paternalistas e nos escudarmos permanentemente nas questões das línguas africanas. É preciso que exista um equilíbrio entre aquilo que é a tendência global dos nossos países, do ponto de vista das falas que se vão cristalizando, e aquilo que deve ser a norma e que deve legitimar uma certa qualidade comunicativa. A minha grande preocupação é a nível da escrita. Por isso eu coloco a questão: quais são os limites que a própria escrita se deve impor no sentido de ela manter a sua integridade? A escrita foi e será sempre sagrada, será sempre um registo mais estável e nobre do uso da língua. Significa que na adopção da norma é preciso que haja muitas precauções no sentido de evitarmos resvalar numa espécie de caos linguístico que obviamente vai gerar um caos comunicativo. Entendo que, sobretudo entre os jovens, há uma tendência cada vez maior de escreverem poesia e narrativas tal e qual como eles falam e o que eles falam tem a ver com a variante. É necessário haver todo um trabalho de concertação entre os poderes políticos e a academia. Isso parece-me irreversível.

JC –  A sua comunicação no congresso foi sobre a relação entre a literatura e a língua portuguesa. Pode fazer um resumo breve para os nossos leitores?
FN – Defendi, basicamente, que a literatura tem dado um grande contributo à estabilização e ao desenvolvimento da língua portuguesa. Dei o exemplo do Brasil, mas nós, quer em Moçambique como Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, vamos vendo que cada vez mais a literatura, além da relação com o quotidiano, tem uma relação muito profunda com a língua. Ela vai espelhando as tendências da língua dos pontos de vista lexical, semântico, morfo-sintáctico… Vai registando essas marcas e, de certo modo, legitimando o uso dessas marcas. No entanto, há uma situação no mínimo paradoxal. Apesar de a literatura ser um registo culto, ela vai inspirar-se nas falas populares, as falas das massas anónimas da população que reinventa a língua portuguesa todos os dias, atribuindo novos significados às palavras, acrescentando novas palavras ao universo da língua portuguesa, aportuguesando palavras das línguas bantu ou registando algumas das principais tendências das variantes, onde nós vemos claramente as interferências das línguas bantu. Sendo um espaço de possibilidades, a literatura mostra as enormes possibilidades plásticas que a língua portuguesa possui e explora isso ao limite. Temos os casos, entre outros, do brasileiro Guimarães Rosa, dos angolanos Luandino Vieira, Uanhenga Xitu, Ondjaki, de José Craveirinha, do Mia Couto, em que é manifesta a relação não só com um universo existencial mas sobretudo com a língua. Há claramente nesta relação com a língua portuguesa uma nativização e africanização da língua portuguesa.

JC – Pode traçar-nos um panorama sucinto do estado actual da literatura moçambicana?
FN – O que eu sinto em relação à literatura moçambicana é que há uma certa vitalidade, a nível da produção, e da reflexão sobre ela, que, entretanto, bem poderia ser maior. Sobretudo entre os jovens há uma grande vontade de produzir literatura, o que se vai reflectindo em algumas obras que manifestamente apresentam alguma qualidade, que nalguns casos é já assinalável. Como sabe, a literatura moçambicana passou por um momento menos bom, em que havia certamente alguma produção, mas sinto que hoje essa produção é acompanhada por alguma preocupação pela qualidade, quer a nível da poesia quer da prosa. Há um movimento dos jovens no sentido de discutirem a própria produção literária, sobretudo nos meios próximos às Universidades. Há sinais muito fortes e promissores no sentido de que a vocação e a marca de qualidade que vem dos anos 40 e que depois foi revitalizada nos anos 80 esteja de regresso. E com uma forte pujança. Alguns dos jovens autores têm um forte compromisso com uma certa tradição literária que existe em Moçambique.

JC – Em Angola temos algum conhecimento da literatura moçambicana que vai até à geração da Charrua, com nomes como Marcelo Panguana, Eduardo White, Ungulani Ba Ka Kossa. E há os casos particulares de Mia Couto e Paulina Chiziane. A antologia do conto moçambicano “As mãos dos pretos”, organizada por Nelson Saúte e editada em Portugal, foi vendida em algumas livrarias de Luanda. Mas desconhecemos o quadro das novas gerações. Pode elucidar-nos?
FN – Esse desconhecimento está a tornar-se estrutural e circular. Não sabemos muito do que os outros países produzem. Se em relação à poesia houve uma espécie de continuidade, contudo com aspectos inovadores importantes sobretudo do ponto de vista de uma certa trans-nacionalidade, que eu percebo, sobretudo em relação à actual produção moçambicana há uma grande preocupação com a representação do quotidiano, o que é uma marca das literaturas africanas no geral, esse compromisso com o meio em que elas surgem. As realidades africanas têm uma dimensão épica, porque temos grandes transformações a acontecer e isto funciona como inspiração, não só para os jovens mas também para os mais velhos, já que há uma espécie de compulsão criativa no sentido de registar toda essa pulsação que acontece do ponto vista social, cultural, político e a outros níveis. E a nível da prosa, sobretudo do conto, que é uma das grandes marcas da literatura moçambicana – contrariamente ao que muitos pensam, o conto é um género muito difícil – vão aparecendo alguns jovens que mostram qualidade, mas faltará no nosso universo uma crítica jornalística que poderia dar maior visibilidade às obras produzidas. Há uma crítica universitária mas que fica confinada às paredes das Universidades. Não gostaria de ser injusto mas há uns jovens que se destacam: o Clemente Bata, que lançou, há uns anos, o livro de contos “Retratos do Instante” e é universitário. Não quero dizer que para ser bom escritor tem que se ser estudante universitário, mas que o contacto com textos teóricos e com alguma reflexão mais elaborada na Universidade vai permitindo que esses jovens tenham uma maior capacidade e amplitude na forma como produzem e sobretudo um maior domínio das técnicas narrativas. Um dos grandes exemplos é o Lucílio Manjate, que é professor assistente, produz regularmente e tirou recentemente uma novela, “A Legítima Dor de Dona Sebastião”, que é, de certo modo, uma novidade na literatura moçambicana, porque além da preocupação com o quotidiano é uma narrativa marcada por um ritmo policial, com um texto muito bem conseguido em termos do enredo e da técnica narrativa. O Alex Dau, em “Reclusos do Tempo” oscila entre a preocupação com as pequenas ocorrências do quotidiano e as emoções do universo tradicional. Muitos jovens têm uma ligação com o universo tradicional muito residual, mas eles devem desenvolver alguma pesquisa para recuperar esse universo. O Andes Chivengue, no seu livro de contos, “Febre dos Deuses” apresenta umas marcas obsessivas do ponto de vista temático mas sinto que é um escritor com enorme potencial e que se mantiver uma certa constância e alguma profundidade pode ser um autor de referência na nossa literatura. Temos o Hélder Faive, com “Contos de Fuga”, conjunto de contos premiados onde é notória a preocupação com os dramas individuais, familiares e sociais, com forte ironia e uma assinalável qualidade criativa. Esses jovens sentem que nós vivemos numa sociedade em transição e a literatura funciona como um mecanismo de registar os movimentos dessa mesma transição. As obras que eles apresentam mostram que já dominam um conjunto de leituras que lhes permite um certo desembaraço do ponto de vista da técnica, da criatividade e da representação de uma determinada realidade.

JC – Tem chegado até nós, até recentemente com alguma regularidade, a revista electrónica Literatas, do movimento Kuphaluxa. Fale-nos desse movimento e da sua inserção na vida cultural de Moçambique.
FN – Esse movimento, para mim, além de funcionar como um sintoma, no sentido de que há uma ânsia desses jovens em estarem sintonizados com aquilo que é a produção cultural e literária, também é uma iniciativa extremamente meritória e válida. Penso no Nelson Lineu, no Arijuane Japone, no Eduardo Quive, entre outros… São jovens que estão a deixar uma marca, sobretudo porque não estão só a produzir literatura, sendo a poesia o seu registo mais importante, organizam palestras e encontros com convidados que já têm algum percurso criativo ou académico. Eles estão a ser, de facto, uma referência importante na nossa literatura. Claro que há alguns excessos, em alguns deles, o que é apanágio e natural nos jovens, com algum exibicionismo à mistura. O mérito está naquilo que está por detrás desse tipo de iniciativas, que acaba por ter um grande impacto junto dos outros jovens. Como sabe, nós vivemos tempos muito difíceis, em que os jovens vivem uma grande desorientação e uma grande lacuna do ponto de vista daquilo que seriam as referências nobres e estáveis para sua vida. Com a preocupação de se aglutinarem a volta de uma revista e de fazerem tertúlias, tal como aconteceu com a geração da Noémia de Sousa, do José Craveirinha e do Rui Knopfli à volta do “Itinerário”, e com a geração do Ungulani Ba Ka Kossa, o Eduardo White, o Suleimane Cassamo, o Armando Artur, e outros, à volta da Charrua, esses jovens vão certamente deixar uma marca na literatura moçambicana.

…………………….


FRANCISCO NOA é Doutor em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Ensaísta e professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique, é também investigador associado na Universidade de Coimbra, em Portugal. Foi professor na Universidade Agostinho Neto, em Angola.
A sua área de pesquisa actual abarca os temas da colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, a literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico, a partir da literatura. 
Actualmente é Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), em Moçambique.

PUBLICAÇÕES:
- Literatura Moçambicana: Memória e Conflito, Imprensa Universitária, 1997.
- A Escrita infinita, Imprensa Universitária, 1998/2003.
- Império, mito e miopia. Moçambique como Invenção Literária, Caminho, 1998/2002.
- A letra, a sombra e água. Ensaios & Dispersões, Texto, 2008.
- Perto do Fragmento, a Totalidade. Olhares sobre a literatura e o mundo, Ndjira, 2014.


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Com o romance "A Trança" autor assume nova fase criativa: O regresso de Manuel Rui aos leitores comuns

                                                                         

Isaquiel Cori

O escritor Manuel Rui (MR), um dos mais prolíferos do país, entregou ao público leitor, no dia 15 de Janeiro de 2014, na UEA, o romance "A Trança", editado pela Mayamba com uma tiragem de 2 mil exemplares.  
Como o autor sinalizou no acto de lançamento, o novo livro representa uma mudança de estilo e de abordagem da sua própria escrita. "Talvez 'A Trança' possa ser encarada como uma mudança de estilo, uma mudança de ideias. Mudar não é triste, nem é triste mudar de ideias. Triste é não ter ideias para mudar".
Escrito numa altura em que se debatia com problemas de saúde, MR decidiu que o seu novo romance "não deveria ser longo nem triste, e trataria da espiritualidade africana, também como metáfora da força do pensamento".
"A Trança", efectivamente, garante uma leitura leve, com uma trama inicialmente simples, aparentemente linear, mas que depois se complexifica quando, no contexto rural do Huambo, a personagem principal se vai adentrando nas questões da espiritualidade das suas origens locais. Com o novo livro MR completa um movimento que começou em "Quitandeira e aviões", seu livro de contos publicado em 2013. Esse movimento consiste numa espécie de regresso ao chão dos seus leitores comuns, depois de, com os romances "Rioseco" e "Travessia por imagem", ter embarcado numa escrita densa, com forte pendor experimentalista e enredos e personagens complexos. Essa sua ambição demiúrgica de realizar uma espécie de romance total, que abarcasse a vida na maior amplitude possível, com recurso a uma linguagem laboratorialmente refinada, foi   aplaudida pela crítica académica no Brasil, Portugal e outros  países. Vários ensaios e dissertações de licenciatura, mestrado e doutoramento foram dedicados a ambos os livros.
Primeiro com "Quitandeiras e aviões" e mais ainda agora com "A Trança", reiteramos, MR regressa às origens, no que à comunicabilidade com o grande público leitor diz respeito. É sintomático que na mesma ocasião tenha sido lançada mais uma edição de "Quem me dera ser onda", (agora com uma tiragem de 10 mil exemplares) porventura o maior best-seller da história da literatura angolana, fazendo parte indelével do imaginário de várias gerações que o leram na infância ou na adolescência. Abrimos aqui um parênteses para apelar à reedição da novela "Crónica de um mujimbo", do mesmo MR, que já não se encontra a venda em lado nenhum mas encerra aspectos de extrema actualidade.
"A Trança" mostra-nos um MR absolutamente senhor dos seus recursos estilísticos, que não se fecha no gozo da sua própria escrita mas entrega-se ao leitor com a maior vontade de o servir. Toda a maturidade artística e pessoal de MR está ao serviço do seu novo romance: no livro só está o que lá devia estar, está-se diante de uma narrativa enxuta, desengordurada, sem digressões desnecessárias, sóbria. Por um momento MR parece ter abandonado a ironia e o humor corrosivo característico da sua obra. O autor alcançou o objectivo de não escrever um livro triste, mas, é preciso que o digamos, "A Trança" é uma narrativa muito séria. Talvez a circunstância de o ter escrito doente explique essa faceta. Em termos da serena maturidade patente na obra, este romance faz-nos lembrar "As palavras", de Jean-Paul Sarte e "O velho e o mar", de Ernest Hemingway.
Mestre em registar e recriar os modos de falar angolanos, MR dá a expressões que habitual e distraidamente usamos ou ouvimos na rua novos ecos, ressonâncias artísticas e estéticas até então insuspeitas. Atentemos ao diálogo de Maria com  o ardina Kasese, logo à saida do aeroporto: "Como te chamas?" / "Kasese" / Não tens um jornal antigo?" / "Antigo mais como então?"
O narrador gruda-se em Maria, conta a história por ela e através dela. Maria, "a dos olhos verdes e tranças de fogo", é uma mulher cosmopolita, viajada, portadora de "várias origens e que regressa à sua origem angolana". Passou a infância e a adolescência na Alemanha, indo viver mais tarde na Holanda. Em Angola pela primeira vez, passa rapidamente por Luanda e vai de autocarro ao Bimbe, no Huambo. Lá, a avó atribui-lhe um novo nome: Citula.
A partir daí MR transporta o leitor para a nova Angola, do pós guerra; não a nova Angola urbana, de asfalto e enormes vultos de cimento armado e vidros reluzentes. É uma Angola bucólica, pacata, que vive em comunhão com o espírito da terra e dos ancestrais. Maria, agora Citula, é iniciada na tradição e na espiritualidade ovimbundu, redescobrindo ela própria, também, as memórias dessa origem, que lhe foram inculcadas na infância. Através do olhar de Citula o narrador oferece ao leitor uma soberba descrição do mundo rural angolano, que alimentarmente se basta a si mesmo, até com fartura, e onde se vive em comunhão com os espíritos.
O final do romance é um hino ao fantástico, à magia e à tradição ancestral. É um mergulhar profundo de MR, e com ele do leitor, naquilo que um dia Henrique Abranches chamou de "realismo animista", referindo-se a uma manifestação literária especificamente angolana, em que se celebra o encontro da modernidade com a ancestralidade e em que os espíritos da terra e dos mortos vêm ao convívio dos vivos, em contraposição ao chamado "realismo fantástico", típico da literatura latino-americana e que tem no colombiano Gabriel Garcia Marquez, com o celebrado romance "Cem anos de solidão", o seu maior epítome.
"A Trança" é, no fundo, o país que Manuel Rui tanto ama e que é um melting pot de saberes, de sabores, de ideias, pensamentos e criação póprias", sintetizou Amélia Mingas, ao fazer a apresentação do livro. "Até que ponto esta obra não tem alguma ligação mais directa ao próprio autor? Ou se o avô que Citula queria ver renascer não seria o país que ela amava e aprendeu a amar através do pai?".
Leia aqui www.isaquielcori.blogspot.com/2016/03/escritor-manuel-rui-escrevo-sobre-o.html entrevista ao escritor, a propósito.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Entrevista a Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua: O país sob o crivo de dois jovens escritores



Isaquiel Cori


Na sequência da leitura dos respectivos livros, “Fátussengóla, o homem do rádio que lançava dúvidas” e “Humanus”, fomos à conversa com Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua. Ambos falam das suas origens enquanto autores e da assumpção ou não da identidade benguelense. Entre eles é consensual a ideia do peso marcante que a guerra teve nas suas vidas e, de certo modo, partilham um olhar optimista a respeito do futuro do país.

Pergunta - Que circunstâncias, ou pessoas, os despertaram para a escrita?
Gociante Patissa - A literatura é apenas a extensão de uma herança transmitida no convívio familiar, quase sempre alargada, como permite a proximidade africana. Apesar de ter deixado o meio rural aos sete anos, trouxe dali uma riqueza enorme, quer aquela mais proseada, ouvida de contos, fábulas e canções vividas no campo de que fomos arrancados, quer aquela mais fragmentada, vestida de parábolas e provérbios, o que de resto conseguimos resgatar e irrigar na cidade.
M´Bangula Katúmua - O meu envolvimento com a escrita confunde-se muito com a minha socialização política. Comecei, na verdade, de forma não intencional. Apenas declamava os poemas de Agostinho Neto nas actividades do INAC e OPA. Na altura tinha cerca de 14 anos. Depois continuei na JMPLA e quando fui para a Brigada Jovem de Literatura é que, aos poucos, comecei a ter a real noção do mundo literário. Porém a não intencionalidade do meu envolvimento com a literatura viria a manter-se nos anos seguintes. Ao longo deste meu breve percurso tive a sorte de cruzar com Nuno de Menezes, Raul David. Eles ensinaram-me coisas, cada um a seu jeito. Tenho dificuldade de identificar, com precisão, as circunstâncias que me despertaram para a escrita, porém a minha passagem por estas organizações sociais, particularmente a JMPLA e a Brigada Jovem de Literatura foram fundamentais para a minha forja. Lemos muito dos autores da BJLA, nos livros que Armindo Sardinha, Fernando Andrade, Nando Jordão, Paula Russa, Victor João, Nelo Santos nos davam. Lemos John Bella, Kudijimbi, Limpinho, Frederico Ningi, Costa Andrade, Aires de Almeida Santos, Alda Lara, Agostinho Neto. Seminalmente falando, é daí que viemos …. 
P - Identitariamente vocês assumem-se como escritores de Benguela, com tudo o que de simbólico ou positivo isso implica, ou consideram-se mais escritores voltados para o universal, sem um grande apegamento local?
GP - Benguela como tal para mim nada significa. E sinto que não tem o meu papel significado algum para Benguela, no seu conceito mais territorial e administrativo. Na verdade, a literatura, pelo seu lado formal, pouco me diz, se não for um veículo de contributo para o diálogo intercultural. Eu sou um ocimbundu que tem a missão de contribuir para que (parafraseando o escritor espanhol António Colina) não desapareçamos enquanto entes culturais. A universalidade só me interessa se ela me puder ouvir, se ela se reivindicar como encontro de identidades.
MK - Entendo que a literatura deve ser sempre universal mas, como todo o produto social, deve estar histórica e territorialmente localizada. Esforço-me para estar em linha com este entendimento. Não sou um poeta benguelense. Sou um poeta de Benguela. Não nego as minhas origens e influências, apenas acho que a humanidade é rica demais para nós vivermos em redoma. A arte precisa elevar-se, precisa ser e estar além do espaço ou do lugar em que é criada. Não estou a fazer a apologia à desterritorialização do acto criativo, nem a falar de uma arte pela arte. Há sempre engajamento na minha escrita. Mas o meu grito é um grito daqui para o mundo. São sentimentos e pensamentos daqui que partilho com o mundo. Um excessivo apegamento ao local pode levar-nos para aquilo a que chamo de “autoctonismo artístico”. Que é algo muito perigoso, pois retira a vitalidade da arte à medida que lhe retira toda a capacidade de dialogar com outros povos e culturas. 
P -  O que é que de mais significativo vocês retêm da herança literário-cultural de Benguela?
GP - Acho o espaço do livro bastante redutor e reduzido, e seria bastante injusto achar que um escritor em particular representasse Benguela. Há muito mais para lá do asfalto e do mar, ao passo que a literatura, colhida pela bitola de Gutenberg, pouco desce do prédio. Eu sou o povo, é nele que me acho, na sua riqueza linguística, na sua tradição oral que tanta lassidão parece gerar para os holofotes. É esta a minha missão. O livro é um complemento.
MK - Esta é a pergunta a que nós, os escritores de Benguela, teremos de responder sempre? Parece que sim! E ainda bem. Porque demonstra que temos responsabilidades. Lembra-nos o legado recebido de Alda Lara, Aires de Almeida Santos, Pepetela, Raúl David e outros. Deste ponto de vista, penso que é a preocupação com as nossas gentes e os nossos lugares. Não só poetas mas, sobretudo estes, sempre tiveram esta preocupação de eternizar os lugares e pessoas. Isto está patente no famoso poema “Meu amor da rua onze”, de Aires de Almeida Santos.
P – Como foi que o Patissa compôs o “Fátussengóla…”: juntou todos os contos que tinha ou seleccionou-os previamente?
GP - É óbvio que um escritor está sempre a escrever. No meu caso, alguns contos evoluem das crónicas que componho para o blog Angodebates, outros nascem como tal. E quando noto que há uma quantidade razoável, intensifico o trabalho de laboratório, visando excluir os menos conseguidos e aprimorar os que ficam. Dois dos contos não puderam entrar no livro “A Última Ouvinte” (UEA, 2010), com o qual me estreei na prosa.
P – “Fátusséngola…” ganharia muito se não incluísse algumas peças, reduzindo-o à menor dimensão e à melhor excelência possível. Quer comentar?
GP - É difícil ter-se uma percepção a este nível quando nos colocamos no papel de criadores apenas, ainda mais por se tratar de colectânea de contos escritos entre 2001-2014. Na verdade, nunca sei como o trabalho será recebido, daí ser importante (mau grado ser escassa) a oportunidade de ser estudado e aprender com as sugestões que advierem.
P – As figuras que você retrata nas estórias são ou foram reais? Por exemplo, o Fátussengóla existiu mesmo?
GP - Fátussengóla existiu, mas o que descrevo é ficção. A verdadeira história é muito amarga, não sei contá-la. Foi um mágico de levantar pessoas com os dentes pelo guarda-cinto, a título de exemplo, juntando prestígio ao ganha-pão. Mas com o apertar da penúria alimentar, no início da década 1990, ele enveredaria para o assalto a residências, perdendo a vida apedrejado. Apesar de não ter participado na barbaridade, tendo em conta até que eu era muito pequeno, carreguei sempre uma espécie de culpa indirecta, sendo este conto e título do livro uma espécie de redimir o bairro Santa Cruz, no Lobito.
P – Vocês nasceram em plena guerra. A guerra terá moldado, de alguma forma, a vossa visão da vida?
MK - Sem dúvidas. A minha geração tem de carregar esse trauma e essa responsabilidade. Os horrores da guerra nos privaram de muitas coisas mas nos fizeram mais fortes e mais preparados para a vida prática. Temos responsabilidades acrescidas; precisamos denunciar a loucura que é a guerra. Hoje precisamos dialogar mais, religar laços, estabelecer pontes, humanizar…é para esse sentido que, em parte, aponta o título do meu livro, Humanus.
GP - Acho que ganhei desde muito cedo a certeza de que a guerra, qualquer que seja ela, é uma estupidez. Uma criança tem sete anos e já sabe que não se pode comportar mal com a tia porque é nas costas desta que se há-de acoitar quando surgirem os ataques da guerrilha, já que a mãe tem uma bebé para cuidar. Tinha pouco menos de cinco anos quando a minha mãe levou com uma bala da guerrilha na bochecha, comigo às costas, numa madrugada de frio orvalho de cacimbo, que bem se podia ter alojado na minha cabeça e vos poupar destes escritos, não fosse a péssima pontaria do atirador. Quem disparou? É da mesma etnia, da mesma região, quiçá do mesmo sangue. O fim da guerra dá-se comigo envolvido no sector da sociedade civil, que muito contribuiu para a consistência da consciência cidadã. A minha escrita tem inevitavelmente uma abordagem, não apenas de reivindicação identitária, mas também de algum activismo pela vertente do exercício da cidadania.
P – O M’Bangula já tinha os poemas todos prontos, juntando-os apenas, ou escreveu-os como projecto de livro? 
MK - Como disse antes, para mim o acto de escrever é sempre um acto involuntário. Os cinquenta poemas constantes do livro Humanus foram escritos, na sua maioria, entre 2012 e 2013. Estava a juntá-los para um projecto, a minha de trilogia poética Sexorcismo (2008); Sexonância (2011). Contava publicá-lo com o título de Sexonetos mas, quando o meu amigo Gociante Patissa falou-me do Projecto Ler Angola, nada mais fiz senão dar-lhe um título que não assustasse o júri.  
P - Porque razão optou pela forma tradicional do soneto, ademais com os versos rimados, quando praticamente nenhum dos seus coetâneos o faz?
MK -  Isto sim! Foi intencional. Foi um desafio que me impus para dar corpo à minha proposta filosófica. A trilogia poética, como referi, devia culminar com a publicação de sonetos. Pois cada um dos três livros tem uma mensagem própria. E essa particularidade estende-se à forma. A quantidade, cinquenta poemas, partiu de um amigo que me falou na ideia de “meia centena”, gostei e avancei.
P – Em algum momento lhe ocorreu que estava a sacrificar o conteúdo à forma?
MK - Sim, várias vezes. Mas fui encontrando sempre formas alternativas.
P – Como é que vocês encaram o país e o seu futuro?
GP - O recurso ao passado é feito de maneira selectiva, dada a responsabilidade que recai sobre os ombros de qualquer angolano. Por muito que ficcionemos, ficcionamos sobre uma realidade objectiva. Não perco de vista o equilíbrio necessário à manipulação das dimensões cultural, social e estética. No entanto, acredito que lidar com o passado, sem deixar de ser uma missão premente, é ao mesmo tempo passível de coarctar, ainda que inconscientemente, o devaneio criativo de qualquer iniciativa que tenha por base de trabalho o realismo a partir da década de 1960. Pessoalmente, no meio rural, onde vivi até aos sete anos, testemunhei actos da mais feroz barbárie. Já no centro urbano, viria a testemunhar outros. São memórias frescas, voláteis mesmo. O tempo saberá o que fazer. Quanto ao futuro do país, já tive mais certezas.

MK - Seguramente. Vejo o país com os olhos de quem já chorou, passou fome e viu pessoas a morrer. Amo mais o meu país, amo mais a paz. Sei quanto valem os nossos bens públicos. Sinto-me mais militante dessa nova Angola. Temos tudo para dar certo. Aprendemos com a guerra, estamos a corrigir os nossos erros do passado. Acredito que é necessário apenas continuar com o trabalho em curso de inclusão social, diminuição das desigualdades sociais. Promover a nossa auto sustentação alimentar, a industrialização do país. O resto vamos todos fazendo, com educação, disciplina e trabalho.

Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua: Dois projectos literários oriundos de Benguela




Isaquiel Cori


Os escritores Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua partilham, ao menos, três coisas: são naturais de Benguela, nasceram no período pós-colonial e a existência de ambos decorreu em grande parte nos dias e anos tumultuosos da guerra de má memória. Os livros “Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas”, do primeiro, e “Humanus”, do segundo, aparecem juntos na colecção Novos Autores, editada pelo Grecima, a par de nove de outros tantos autores.
“Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas” é uma colectânea de 14 contos ambientados em localidades diversas da província de Benguela, do interior ao litoral, que resgatam da memória da infância e adolescência do autor toda uma galeria de personagens e situações marcantes, seja pelo lado do insólito ou dos afectos.
Gociante Patissa na verdade não é um autor de primeira viagem. Publicou em 2008 “Consulado do vazio”, poesia, em 2010 “A última ouvinte”, contos, em 2013 “Não tem pernas o tempo”, novela, e em 2014 “Guardanapo de papel”, poesia.
                                                             

Trata-se de um autor empenhado em apurar a sua própria voz, notando-se na sua escrita a fuga à facilidade e o evitar dos trilhos há muito batidos. Atente-se ao modo de construção deste parágrafo do conto “Minha mãe é hortelã”, em que além das imagens profundamente originais o leitor pode à vontade inverter a ordem com que as frases se apresentam sem afectar, contudo, a coerência do discurso narrativo:
“Ele, que não era de andar por aí a distribuir socos e pontapés, abraçou tal via. Era homem já quase feito, de caroço no mamilo e uma barba que não se lhe podia confundir com simples pêlos de calor do funji. Mesmo a catinga do sovaco dele anunciava os ingredientes prontos para dar bebés. Quem lhe provasse o sabor da surra já não voltava a gozar.”
Retenha-se esta outra preciosidade, a abertura do conto “No reino dos rascunhos”: “O velho estava velho, muito velho, logo doente. Para ser confirmado inerte, só lhe faltava parar o fôlego. Vendo bem, aquilo até podia ter outro nome, respirar é que não era.”
Como não há bela sem senão, a escrita de Patissa às vezes denota um excessivo “cuidado” em conformar-se às normas, às regras estabelecidas do “bem falar português”, sacrificando a emergência daquilo que podia ser considerada a sua própria linguagem, escorada nos interstícios mais íntimos do seu substracto cultural benguelense. “Havia um cão no quintal em que em tempos fui morar…” in “A estrela que não voltei a ter”. “… só não tendo o dono do alheio sucedido graças ao gradeamento interior aplicado poucas semanas antes da investida”, in “Gestão de vazios”.
Patissa, note-se, neste mesmo livro demonstra um grande domínio da sócio-culturalidade umbundo, fazendo recurso a palavras e provérbios da região.
Autor de imenso potencial criativo, Patissa tem o dom do olhar, da captação das singularidades aparentemente invisíveis e insuspeitas das situações e das personalidades.
O seu conto mais significativo é o que dá título ao livro: “Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas”. É uma narrativa digna de figurar na mais selecta das antologias de literatura angolana. É a biografia de uma personagem tão singular na ficção como na vida. (Aliás, “… a profissão de biografista independente faliu, como hoje vemos”). Fátussengóla, de nome verdadeiro Virgulino Kaendangongo, “que na língua umbundo significa eterno sofredor”, é um personagem da estirpe de um Mestre Tamoda de Uanhenga Xitu, com o qual partilha o estatuto de orador, as poses e o gosto pela mais gratuita verborreia. Fátussengóla ganha imediatamente a simpatia e a compaixão do leitor pela forma soberba como o autor o apresenta, seja descritivamente, seja pelo desdobrar dos diálogos. E o final da estória encerra tanta preciosidade como o tesouro que nele é revelado.

Em causa o ser humano

Humanus, de Mbangula Katúmua, é um conjunto de cinquenta poemas sóbrios, reflexivos, escritos na forma de sonetos, essa maneira tão antiga e clássica de poemar (duas quadras seguidas de dois tercetos). E Katúmua vai tão longe no seu exercício de preciosismo formal que todos os seus poemas, rigorosamente, são rimados.
“Das velhas profecias que nos liam outrora / Agora veio um velho cancioneiro hegeliano / Uma espécie de novo cardápio do contra / Que encerra teorias de combate miliciano // O inimigo agora é outro / São os potes de luz / O nosso mastro / É a nossa própria voz // Eis que vos apelo / Gritemos bem alto / Até que nos solte o pêlo // Sobre estas laudas ninguém dança / Nem mesmo no dia em que comemorarmos / A nossa morte sobre a ponta de uma lança”, in “15”.
Os poemas de “Humanus” não devem ser lidos uma única vez. Nem, necessariamente, na ordem proposta pelo autor. A uma primeira leitura o formalismo preciosista e até mesmo academicista dos poemas ressoa a algo decadente, perfeitamente démodé. Mas tão logo nos concentramos mais na leitura damo-nos conta que, afinal, a fórmula rígida adoptada pelo autor contém autênticos vulcões de emoções e sentimentos a respeito do mundo e da vida.
                                                                 

“A noite não chega a tempo / De contar os sonhos das gentes / Enquanto isso, ouvem-se vozes do topo / Para anestesiar os fétidos corpos delirantes // Vozes cansadas, sinfonias de morte / Ruas estreitas, passos apressados / Na paisagem agreste / Sonhos condenados // Na desnuda avenida daqui / Que ferozmente colapsa / Como os discursos do Maquis // Mas, quem ouviu não esqueceu / Os caminhos, a dor que perpassa / As entranhas da pátria, e o dia que nasceu”, in “28”.
O sujeito poético em vários poemas de “Humanus” parece desapegado da vida, situando-se numa colina qualquer a partir da qual observa a cena humana. E se fala de coisas que já viveu, recorda outras que poderia ter vivido. No limbo entre o sonho e a realidade, entre o celeste e o terrestre, ele confessa-se: “Suspendo-me nos píncaros dos sonhos / Donde me chega homofóbica melodia / E vejo no meu irmão um marciano”.
Ao contrário do seu coetâneo Gociante Patissa, em que as marcas da sua “benguelensidade” estão em todos os quadrantes dos seus textos (na geografia, na linguagem e na filosofia proverbial e até na temporalidade), o poeta de “Humanus” é um ser dilacerado na sua subjectividade que se dirige ao homem comum, desarvorado do seu lugar e até do seu tempo.
“Ainda que farto de ti, ó ser distante / És o caminho que busco e que sigo / Longe da consumição do inimigo / Contemplo de perto luz reluzente // Nos pés fartos de caminhar / Tenho feridas e bolhas de água / Para de todos saciar essa inócua / Sede de infinito clarear // Caminhantes de uma terra longínqua / Somos todos o húmus desta terra / De ventre esviscerado // Ninguém sabe se quando enterra / Uma sôfrega lágrima inócua / Constrói um destino obliterado”.

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M’Bangula Katúmua (pseudónimo literário de Martinho Bangula Katúmua) nasceu em Benguela em 1985. É licenciado e mestre em sociologia. Actualmente é secretário provincial da Brigada Jovem de Literatura de Benguela e docente universitário.
Daniel Gociante Patissa nasceu na comuna de Monte Belo, município do Bocoio, provincia de Benguela, em Dezembro de 1978. É licenciado em linguística, especialidade de inglês, pela Universidade Katiavala Bwila.







quinta-feira, 5 de maio de 2016

"MESU MAJIKUKA": OS REFORÇOS E OS PESOS MORTOS NAS ORGANIZAÇÕES

"MESU MAJIKUKA": OS REFORÇOS E OS PESOS MORTOS NAS ORGANIZAÇÕES: Numa dada formação que frequentei sobre Gestão de Capital Humano nas Organizações, o mestre falava, a dado momento, sobre os "pesos mo...

segunda-feira, 2 de maio de 2016

ESCRITOR LUANDINO VIEIRA: "ESTÁ A PASSAR UM ELEFANTE E VOCÊ OLHA PARA AS PULGAS?"

ISAQUIEL CORI


O escritor Luandino Vieira foi alvo, em Novembro de 2014, de várias homenagens, que culminaram com o colóquio “De Luuanda (1964) a Luandino (2014): Veredas”, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 2015 publicou, pela Editorial Caminho "Papéis da Prisão: apontamentos, diário, correspondência (1962-1971)", que ele considerou uma súmula dos doze anos que passou confinado pelo regime colonial português no Campo Prisional do Tarrafal, em Cabo Verde. Tudo isso, e uma detalhadíssima infografia sobre a sua obra publicada no Rede Angola, trouxe à tona da minha memória o papel determinante que o Luandino Vieira teve na auto-assumpção da minha condição de escritor. Efectivamente em 1990, salvo lapso de memória, encontrei-o na Ler & Escrever, uma pequena livraria e editora que funcionava ao lado do Hotel Globo, em Luanda. Dei-lhe a ler o manuscrito do romance "Sacudidos pelo Vento", que ele elogiou rasgadamente, mas pedindo que o reescrevesse. Assim o fiz e levei-o ao concurso Sonangol de Literatura de 1994, onde obteve Menção Honrosa. Muito mais tarde, em 2004, do lugar recôndito de Portugal para onde se retirara, recebi um postal seu, onde dizia: "Mão amiga fez-me chegar o teu livro e vejo que ganhaste asas para voar e fazer coisas para o engrandecimento da nossa terra". Referia-se ao meu livro de contos "O Último Feiticeiro".
Em 2006 Luandino Vieira ganha o Prémio Camões mas recusa-se a recebê-lo. Nesse mesmo ano vem a Luanda e fiz tudo para o encontrar e o entrevistar, numa altura em que estava ligado à preparação da primeira edição dos Cadernos ÉME, do Secretariado do Bureau Político do MPLA para Informação, sob direcção editorial executiva do jornalista Fernando Tati. O encontro e a entrevista consumaram-se em Novembro de 2006, em casa do escritor Arnaldo Santos, num ambiente descontraído. A entrevista alargou-se a Arnaldo Santos, um velho compadre de Luandino Vieira, e rendeu umas três horas de gravação, com temas centrados na vida e obra de LV mas também de Arnaldo Santos. Transcrevi às pressas as falas do LV, com a intenção de mais tarde fazer o mesmo com as do Arnaldo Santos. Infelizmente, viria a perder o registo magnético da entrevista numa mudança de casa. Até hoje essa lembrança dói-me.
Comecei a ler Luandino Vieira na adolescência. Livros como "A Vida Verdadeira de Domingos Xavier", "Luuanda", "João Vêncio. Os seus Amores", "Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu", li-os fechado no meu quarto, no Kassequel, ainda rapaz imberbe, muitas vezes à noite, à luz do candeeiro a petróleo. Eram livros do meu irmão mais velho, Borges António Cristóvão, de grata e saudosa memória. A entrevista ao mestre Luandino Vieira, publicada originariamente nos Cadernos ÉME, em 2006, está também algures neste blogue, com o título "Alguém passeia em mim". Abaixo, decidi retomar o título da primeira publicação, além de caprichar mais na edição.




Luandino Vieira (n. 1935) é considerado pela crítica como um dos mais importantes ficcionistas angolanos, do espaço de língua portuguesa, e não só. Ausente do país desde 1992, “por razões pessoais e familiares”, regressou a Angola para o lançamento do seu mais recente romance, “O Livro dos Rios” – primeiro título da trilogia “De Rios Velhos e Guerrilheiros”. Na entrevista que segue, presenciada e participada pelo seu amigo e colega Arnaldo Santos, Luandino Vieira fala não só da sua obra literária mas também da sua participação na luta anti-colonial (chegou a passar 12 anos  confinado ao centro prisional do Tarrafal de Santiago, em Cabo Verde). “Nós tivémos a sorte histórica de poder participar num momento absolutamente ímpar da nossa história, que foi a luta de libertação nacional, que deu lugar à independência política”, diz. E cita Mendes de Carvalho: “O MPLA é um rio de muitas águas”.

PERGUNTA – Depois de catorze anos de ausência de Luanda, como é que vê a evolução da cidade de Luanda?
LUANDINO VIEIRA – Nota-se, obviamente, que se passaram catorze anos entre aquilo que eu deixei e aquilo que eu encontro. Acho que a cidade está em frenesim. Eu não posso dizer que seja um movimento desusado, mas para mim é um movimento surpreendente. Posso estar também a confundir, porque só dei duas ou três voltas na cidade, praticamente no centro histórico, na Baixa, na Marginal.

PERGUNTA – Já esteve no Kinaxixi?
LV – Ainda não fui ao Kinaxixi. Tenho isso programado. Quero ir a Viana porque falando com amigos que moram já fora do centro, soube que Luanda está a chegar, calmamente, às margens do Kwanza. Isso dá uma ideia da expansão nesses últimos anos. Encontrei uma cidade que, estranhamente, eu pensava que ia ser mais diferente. E depois dei-me conta que afinal é a minha cidade. Fisicamente, olhando, a gente nota que houve muitas mudanças. Há prédios que não havia, nos sítios que não havia.
Mas o que permanece é muito mais forte, em termos de identidade do território e do espaço, do que as marcas visíveis do que se está a fazer agora em termos de desenvolvimento da cidade: as novas soluções para o trânsito, as novas soluções urbanísticas…
Portanto, é um sentimento ainda um bocado difícil para mim ao fim de uma semana. Vejo que é diferente mas ao mesmo tempo é igual. É como quando a gente mete a chave na porta, entra em casa e reconhece que está em casa mas algumas coisas foram mexidas. Agora… é um movimento e penso que não foi só um acréscimo de movimento, ou o que se chama de crescimento, vamos mesmo dizer talvez, de desenvolvimento. Mas imagino que tenha sido um aumento enorme de problemas de gestão do território, de controlo do território… Não é tarefa fácil para ninguém gerir este espaço de Luanda, um espaço carregado de valor simbólico que vem de muitos séculos. O que é Luanda? Há uma parte de Luanda que já é mítica, simbólica.

PERGUNTA – O próprio Luandino Vieira, com os seus livros, contribuiu para um certo paradigma mítico de Luanda.
LV – Os escritores funcionam tanto no plano da realidade como no plano dos sonhos. Às vezes confundem as duas coisas, felizmente, para projectar alguns sonhos. Essa cidade que nós, eu e o Arnaldo Santos, pusemos nas nossas obras, por exemplo aí a área do Maculusso e do Kinaxixi, o tempo é que vai dizer se eram valores simbólicos que tinham a sua verdade real ou que têm a sua vigência para a definição da identidade da cidade. Para a nossa geração e para a geração seguinte e pelo facto dos livros terem sido publicados… isso tem uma certa premência. Esse espaço foi que nos inventou a nós. Enquanto crianças ele definiu uma parte da nossa identidade. O que fizemos foi talvez passar isso para a letra escrita, para a literatura e tentar transmitir sonho, que afinal, se calhar, não se adequava à realidade.

PERGUNTA – É certo que essa visão, esse sonho, se quisermos, foi adoptado por gerações posteriores. Há quem não viveu nos musseques de Luanda naquele tempo (antes da independência) e a ideia que tem dos musseques é a que é descrita nos livros do Luandino e de outros escritores da sua geração.
LV – Por isso tenho o cuidado de dizer que nem sempre transmitimos o real; transmitimos às vezes o que sonhámos que era e o sonho do que deveria ser. Portanto, os jovens devem fazer essa leitura com a devida cautela. A literatuta tanto se alimenta do que é real como do que é fictício, da sua própria ficção, do sonho dos escritores. Olhando para trás, não há que renegar esse traço, essas notas que estão no meu trabalho literário. Continua a haver esse passado do modo como o escrevi há muitos anos.

PERGUNTA – O Luandino está cá em Angola já para ficar?
LV – Ainda não estou para ficar porque estive fora estes anos todos por motivos rigorosamente familiares e particulares e que não têm nada a ver com outra coisa que não seja isso. Como deve calcular, nós acumulámos muita coisa. Sobretudo os escritores acumulam papéis à mais, memórias à mais... Esta oportunidade de vir foi ditada por compromissos de lançar os livros ao mesmo tempo, eu e o meu compadre Arnaldo Santos; Kinaxixi e Makulusu... E, claro, para aproveitar a ocasião para ver como é que devo arrumar, o que é que devo arrumar para trazer. Se não podemos escolher o sítio onde nascemos podemos escolher, ao menos algumas vezes, o sítio aonde queremos morrer.

PERGUNTA – Acaba de dizer que esteve fora de Angola estes anos todos por razões estrictamente familiares e particulares. Será então escusado perguntar-lhe das circunstâncias que o levaram a sair de Angola em 1992?
LV – Em 1992, quando recomeçou a guerra civil, naqueles termos, eu já não tinha nenhum cargo, nenhum compromisso; e foi-me dada uma bolsa para criação literária, de dois anos. Recebi a bolsa e fui para Portugal para pesquisar e para tentar escrever. Não consegui escrever naquele tempo e entretanto comprometi-me com a minha mãe a ficar com ela até aos seus últimos dias. E foi o que sucedeu.

PERGUNTA – Constou-me que chegou a rasgar (ou a queimar) um romance que já tinha pronto.
LV – Eu ainda trabalho à moda antiga. Não tenho computador e escrevo à mão. Não sei guardar arquivos e, portanto, só a minha memória é o meu arquivo. Depois de escrever achei que o melhor era queimar; às vezes é melhor começar tudo de novo do que tentar emendar. Às vezes o pano onde a gente quer pôr o remendo já não aguenta o remendo.

PERGUNTA – Tem dito repetidamente, quando perguntado, que negou o Prémio Camões por razões pessoais e íntimas. Será descabido supôr que essa negação terá também alguma coisa a ver com o escândalo que resultou da atribuição, em 1965, do "Grande Prémio de Novelística" da Sociedade Portuguesa de Autores, com a intervenção das autoridades fascistas, que dissolveram aquela sociedade?
LV – Não tem nenhuma relação com os prémios anteriores, nem com o modo como existe o Prémio Camões.

PERGUNTA – A sua recusa não significa então uma negação do Prémio Camões enquanto instituição?
LV – O Prémio Camões é uma boa instituição. Eu não conheço em pormenores os regulamentos e a filosofia do prémio mas sei que é um prémio para os escritores que enaltecem ou desenvolvem a língua portuguesa, para escritores de todos os países que utilizam a língua portuguesa. Neguei-o por razões pessoais e íntimas. A última vez que escrevi e publiquei, não quer dizer que seja a última vez que escrevi, foi em 1972. De 1972 a 2006 quantos anos se passaram? Se se meditar um pouco sobre isso, os leitores actualizados da literatura, os que lêem e vão seguindo o movimento editorial, os que conhecem outros escritores, outras obras dos antigos escritores, novas obras dos novos escritores, o surgimento de novos talentos, de novas correntes literárias, haveriam por exemplo de perguntar (não quero dizer que seja essa a razão, mas eu se fosse leitor perguntava) como é que não sendo o prémio de carreira, porquê que atribuem um prémio a um escritor que está morto? O Prémio Camões não é um prémio póstumo. E um escritor que fica tanto tempo sem publicar... Poucas pessoas sabiam que eu estava vivo, mesmo fisicamente. Estou convencido que muita gente dizia: “Ele deve ter morrido, nunca mais o vimos, nunca mais o ouvimos”. Isto é apenas um exemplo.
As minhas razões foram rigorosamente íntimas e pessoais. Não têm nada a ver com a instituição do prémio, nem como o prémio é atribuído ou não atribuído. Têm a ver com o modo como eu vejo a minha situação de escritor dentro do sistema literário em língua portuguesa, o meu papel e o meu lugar nesse sistema literário.

ARNALDO SANTOS – Contra a vontade do entrevistador eu atrevo-me a dizer que não há escritores mortos como o Luandino estava aqui a defender. Porque os escritores, como Agostinho Neto, Viriato Cruz, etc., que até fisicamente estão mortos, continuam muito vivos. É um argumento que eu tenho contra o meu compadre.

LV – Até podemos entrar em polémica. A polémica seria sobre se aquilo que se chama um escritor e que é definido por um nome se refere à pessoa ou às obras. É evidente que essas obras foram produzidas por alguém. Mas no trabalho literário o próprio escritor, depois, às vezes pergunta “quem é que em mim escreveu isto?”

PERGUNTA – Defende uma perspectiva mística do acto de escrever?
LV – Não é mística, porque sucede. A gente escreve e mais tarde lê e diz assim, “mas eu escrevi isto? Fui eu? Alguém em mim escreveu isto?”

PERGUNTA – Ou: “Terei sido possuído por...”
LV – Não, não é isso. Penso que não é a possessão, nesse sentido. Mas a nossa identidade pessoal é uma coisa muito complexa e é feita de muitos dados. O nosso ADN literário, digamos assim, inclui tudo quanto a gente leu e tudo quanto a gente sonhou e quanto a gente ouviu. Nenhum de nós sabe o que é que está arquivado aqui nessas pastas do nosso cérebro. E muitas vezes nós não temos a mínima percepção de que isto estava lá guardado e damo-nos conta de que estava porque apareceu na escrita. O Arnaldo está aqui e sabe que se começamos um texto da maneira errada, isto é, se conduzir é com o volante à esquerda e a gente começa a conduzir com o volante à direita, temos que parar e mudar de trânsito. Isto é, rasgar e começar de novo; por aquele caminho não vamos lá. Quem é que nos diz que por aquele caminho não vamos lá?
A nossa identidade literária determina muitas vezes muitos textos dos quais não tínhamos sequer a percepção de que existia essa capacidade em nós. Ou essa incapacidade, quando falhamos: “porquê que falhei se tinha tudo tão bem pensado na minha cabeça?”

PERGUNTA – Dirijo-me ao Arnaldo Santos. Concorda com o Luandino?
AS – Você já notou que nós não temos as mesmas ideias sobre este assunto. Porque eu não considerava, de forma nenhuma, o Luandino um escritor morto. E mais ainda: eu tinha boas razões para admitir que o júri, que era formado por gente, à partida, inteligente, sabedora, etc., quando pegou na obra dele, não estava por estas considerações, com as quais eu concordo plenamente, para avaliar a obra do escritor Luandino Vieira, para lhe atribuir o Prémio Camões. O júri foi mesmo buscar essa obra, independentemente do autor se ter arquivado lá no convento de Sampaio.  
Eu não considerava de forma nenhuma o Luandino um escritor morto. Eu sabia que o escritor continuava vivo, movia-se ou vivia como escritor, portava-se como escritor, eu convivia com ele como escritor, falava e inclusivamente mandava os meus textos a ele como escritor. Logo, o escritor estava aí. Ele só precisava era sacudir aquela preguiça que normalmente os escritores costumam passar. Ele sacudiu e temos aí um escritor vivo para mais livros, muitos mais livros.

PERGUNTA – Luandino: é verdade que durante os anos todos em que ficou sem publicar fez como que uma longa viagem interior e vivia como um eremita? Fez um auto-exílio, na tentativa de, se calhar,  recuperar motivação para a escrita?
LV – Não, não foi na tentativa de recuperar motivação para a escrita. Ao longo destes anos fui sempre escrevendo. Pelo menos guardando na minha memória temas e mesmo frases e palavras. Passei a meditar sobre a literatura, sobre o meu trabalho anterior, sobre a realidade que tinha dado origem ao meu trabalho anterior, sobre a minha participação modesta nessa realidade e sobre os elementos fundamentais dessa realidade; portanto, era uma meditação mais sobre a minha identidade.
De modo que ao longo destes anos todos o isolamento físico ajudou... O isolamento físico é devido também ao meu modo de estar no mundo. Não sou pessoa de muita confusão. Mas isso permitiu-me ver uma parte do meu relacionamento com a nossa realidade que eu não tinha aprofundado muito mas que em todos os livros já estava.
Eu voltei ao Domingos Xavier [“A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, 1974] e obviamente o aspecto militante do livro... li e segui o aspecto humano dos personagens, sendo personagens que foram criados sobre figuras que eu conheci e passaram aqueles dramas... Por exemplo, num capítulo, um dos personagens, já não me lembro quem, olha para o rio Kwanza... eu me dei conta de que logo ali, num romance que não tinha nenhuma intenção de tocar na nossa natureza, que é afinal o nosso grande aquário onde todos nós angolanos nos movemos, já estava lá essa preocupação com a natureza, com o rio Kwanza. No Domingos Xavier já estava lá o Kwanza!... E fui descobrir que aos oito/nove anos eu tinha feito uma viagem pelo kwanza acima, num daqueles barcos que faziam  cabotagem para Calumbo... coisa que no meu subconsciente estava adormecida, tal e qual como andei na escola ou ia, pela mão do meu pai, ao centro espírita, como ia aos Coqueiros, ao Clube Atlético de Luanda... coisas que não tendo sido valorizadas estavam na génese dos quadros em que se movia o meu trabalho literário, a minha ficção literária. Isso fez-me compreender que a presença da terra angolana (rios, montanhas, pássaros) – agora aqui com o meu compadre, aqui na casa dele, a primeira coisa que a gente faz é identificar quem está a cantar na mulembeira; aí um “dikole” farta-se de cantar, um “mbolo quinhentos” canta, canta, canta; os “plim-plau” não saem daqui...  – então isso fez-me reflectir: ... “Afinal eu tenho   reduzido a minha maneira de ver a nossa realidade, porque a presença avassaladora da terra  não tem sido reflectida”.
Agora, isso que chamam exílio, auto-exílio, não existe. Eu já disse isto e posso repetir: há uma certa tendência da comunicação social para emoldurar as atitudes das pessoas. E então em relação aos escritores, aos artistas, aos músicos, essa moldura passa também por alguns preconceitos. Vamos ser claros.

PERGUNTA – O auto-exílio pode acontecer em qualquer lado, não implica necessariamente uma viagem de um lado para o outro.
LV – Sim. E podia estar aqui muito mais exilado do que eu estava lá, em Portugal. Eu nunca deixei de estar em Angola. Devo fazer esta precisão: têm que nos dar, a nós também escritores e artistas, a possibilidade, este privilégio de sermos também humanos e de podermos ficar num sítio qualquer só porque procuramos trabalho, porque há o emprego, porque gostamos de viver ali, porque a nossa família nos pede para estar... O escritor, o músico, o artista, se não está é porque exilou-se, auto-exilou-se... Exílio político? Não está de acordo? Não é nada disso. Eu sinto necessidade de ir fazendo algumas introspecções porque até os combóios que andam em duas linhas paralelas, em certa altura tem que ter agulheiros, tem agulhas para desviar... Se queremos viver conscientemente temos que ir de vez em quando, não digo permanentemente, ir aferindo a nossa própria actividade, a ver se está de acordo com aquilo que nós somos e sentimos sinceramente ou se nos estamos a desviar dessa nossa matriz que é a nossa força interior. Pode soar a desculpa, mas não é.

PERGUNTA – “O Livro dos Rios” é assim a redescoberta do tema da Natureza...
LV – É a assumpção. Assumir inteiramente que do nosso real a Natureza tem tanta força como a acção dos homens. Mais: porque os homens reflectem no seio dessa Natureza. Só que nós, os humanos, somos muito vaidosos e não estamos atentos. Passamos por uma árvore e é uma árvore... metemos a moto-serra e a cortamos. Chegamos a um sítio qualquer e não vemos que sem este sítio nós não teríamos a nossa identidade. Sobretudo nós, os urbanos, os citadinos. 
Eu gosto de estar aqui, na casa do meu compadre, porque a mulembeira está ali, e o sape-sapeiro... Hoje vamos tentar podar um pau de maçã da Índia que está com uma doença, a ver se ainda a salvamos. Isto faz parte da nossa identidade. E “O Livro dos Rios” e os outros dois que se seguem, tratam fundamentalmente disto: a relação do homem angolano com a terra angolana, naquilo que a terra define e ajuda a definir, naquilo em que o homem tem consciência. Isso traz um grande orgulho. Penso que se alguma coisa de novo eu pude introduzir nesse primeiro livro já não é só o orgulho de sermos angolanos, de termos as conquistas que fizémos em 40 anos de luta... É também esse orgulho da terra, dos rios... A angolanidade é um todo.
Ontem, falando com alguém que me estava a tentar dar umas indicações sobre a questão dos diamantes no nosso país, quando é que aparecem referidos como riqueza, ele me relatou um facto relativo ao século XVII. E falámos de Santa Maria da Matamba, da igreja onde se passaram as exéquias de Njinga Mbande ou do momento em que se lançou a primeira pedra dessa igreja... A palavra Matamba, que desperta logo o nosso imaginário histórico, lá onde a Njinga ficou os últimos anos da sua longa e combatente vida, desperta-nos também para aquela região. E aí a gente caminha e vê Kalandula, caminha e vê o Lucala... e não pode deixar de pensar nas Pedras de Pungu-a-Ndongo... Portanto, toda a história angolana é a relação, também, dos homens angolanos com a sua terra e a sua constante luta com as forças de conquista e ocupação. É também uma história de lugares. E eu sou muito sensível a isso. Esse quadro da natureza passou a ser muito mais importante do que, inconscientemente, já era...
E uma história como a da mafumeira do Kinaxixi, que nós vimos em criança, presenciámos o derrube, o corte daquela árvore... a história do corte daquela árvore pode ser vista do ponto vista simbólico, mitológico, religioso, no quadro das religiões tradicionais, dos espíritos que aí moravam. E pode ser vista como um choque entre a modernidade e o passado que não queria que se mexesse ali... mas era preciso rasgar aquilo, asfaltar, criar a urbe, avançar... o famoso progresso, não é, o crescimento ou o desenvolvimento. Tudo pode ser narrado sem esse facto, sem a lagoa do Kinaxixi, sem a mafumeira, sem os espíritos... mas acho que será um relato mais pobre do que se relatarmos com todas aquelas nuances.
Mas sobre o Kinaxixi este senhor [referindo-se ao escritor Arnaldo Santos] pode me corrigir, ele gosta de me corrigir, ele que também foi “apanhado” pela mafumeira. Eu fui apanhado pelo galho da mafumeira, na chuva. Se era um sinal, se não era um sinal, não sei.

PERGUNTA – No início desta conversa perguntei-lhe se podia tratá-lo por “Camarada”...
LV – Com certeza.

PERGUNTA – Mesmo em Portugal, nesses últimos 14 anos, foi acompanhando a evolução política do país? Ou reactualizou-se agora, no seu regresso?
LV – Eu acompanho sempre. Claro que não é no pormenor. A questão política do nosso país já não se vê só nas questões de pormenor, nem nas questões tácticas ou circunstanciais. Obviamente que estando longe, não podendo ver o dia-a-dia, eu vou tendo conhecimento do que foram as opções estratégicas; e também não tenho formação política nem conhecimentos para dizer se foram certas ou erradas, naquele momento. Só posso ver é o resultado, como cidadão e como “camarada”. Porque isto de ser do MPLA, primeiro não é o cartão. Primeiro é o coração, depois é que é o cartão. O cartão a gente perde; rasgam-nos ou caçumbulam-nos. Mas o coração, este, ninguém nos tira.
A questão estratégica deve ser medida por resultados. E quando, agora, no dia 11 [de Novembro] eu fui posto perante o resultado... Se houvesse um só resultado já era muito bom para uma geração.
Nós tivémos a sorte histórica de poder participar num momento absolutamente ímpar da nossa história, que foi a luta de libertação nacional, que deu lugar à independência política. A independência política está aí. Nunca esteve em causa. Outra coisa: a integridade teritorial. Quando agora nós percebemos que todos os planos, desde há muito anos, era que se para nos dominarem, se fosse preciso, partiam-nos aos bocados...
Ninguém conseguiu partir a nossa Nação, o nosso território. Estão aí as nossas fronteiras... E a despeito, e sobretudo devido a multiplicidade cultural e sociológica do nosso país, a unidade nacional está aí. Ao fim de 31 anos de independência, diga-me um outro país que se pode gabar desses três factos que são estruturantes e estratégicos? Não são muitos.
Os quatro anos de paz traduzem-se neste vertiginoso crescer desta cidade. E eu espero que quando visitar Benguela,  Lubango, Cabinda e outros lugares, encontre esse mesmo fervilhar. É certo que há muitos defeitos... Mas eu me lembro dum mais velho que me ensinou, no campo de concentração, uma coisa: quando passa um elefante, o caçador não pode estar a olhar para as pulgas. Porque o elefante leva lama, leva pulgas, tem a pele rasgada, carrega porcaria... você vai dizer “ai, o elefante está cheio de porcaria!”... Está a passar um elefante e você está a olhar para as pulgas?

PERGUNTA – Foi propositado fazer coincidir o lançamento do seu livro com o dia da Independência do país? 
LV – Quando me perguntaram qual era a data que queria para o lançamento, eu não pensei duas vezes. Se tivesse pensado teria percebido que no dia 11 há coisas muito, muito mais importantes do que o lançamento de dois livros de dois velhos escritores. Mas era uma parte daquele orgulho. E sobretudo porque eu pedi apenas para que no lançamento estivessem meus restados camaradas do campo de concentração do Tarrafal, a quem o livro é dedicado. Foi só o entusiasmo. Depois a realidade obrigou a corrigir. [Inicialmente previsto para o dia 11 de Novembro, o acto formal de lançamento acabou por acontecer no dia 14].

PERGUNTA - Recuemos no tempo. Pode falar-nos das circunstâncias que o levaram ao campo de concentração do Tarrafal?
LV – Eu acho que isso individualmente não tem importância, porque nós tivémos o privilégio histórico, a nossa geração, de estar naquele momento histórico em que as condições se reuniram para que a luta pela libertação nacional, pela independência política, tivesse sucesso.

PERGUNTA – A questão do mérito coloca-se porque apesar das condições históricas, as pessoas tiveram que agir em determinado sentido... 
LV – Pois, mas houve sempre resistência popular ao invasor, houve a partir do momento em que começou a haver intelectualidade, a introdução da imprensa... isso você sabe melhor do que eu. Houve vários surtos. O nacionalismo angolano não começou no pós-segunda guerra mundial, tem raízes pelos séculos fora, isto se não quisermos ver o nacionalismo duma maneira estreita, como uma ideologia. Não. Esse sentimento, esse movimento que resultava do choque e das contradições das forças, entre invasores e invadidos, ocupados e ocupantes, os que colaboravam e os que não colaboravam, os reinos e os que vinham... isso foi formando, foi caldeando o nosso país.
Então, nós tivémos o privilégio de estar naquele momento histórico e participámos. Participações individuais? Foram sempre participações de grupos, de tal maneira que, por exemplo em 1959 (para pôrmos a coisa já naquele período em que a polícia política portuguesa, a PIDE, já estava instalada e começou a actuar organizadamente sobre as ideias e os movimentos nacionalistas...) todos os dias saíam panfletos e não eram assinados pela mesma organização. Uma pessoa podia às vezes copiar a ideia que saía num panfleto, voltar a glosar esta ideia, que já era assinada por outro dos movimentos que proliferavam: MINA, MIA, ELA, PLUA, PCA... que sei eu?
Foi essa a época, da luta pela difusão das ideias nacionalistas, pela organização e contra a repressão, que depois deu, como resultado, uma maior eficácia e a possibilidade do MPLA dirigir essas forças todas que actuavam em seu nome, com o seu programa (muitas vezes não lido, só de ouvido: sabia-se que o programa mínimo era este, o programa maior era aquele...).
Para resumir, o camarada Mendes de Carvalho foi o que até hoje, como é o nosso mais velho e o nosso mestre em muita coisa, em quase tudo, sintetizou melhor o MPLA. Ele disse que o MPLA é um rio de muitas águas. Isso é o que faz a força do MPLA. Nós tivémos a sorte de estar ou num ribeiro, ou num afluente da margem esquerda ou num afluente da margem direita, às vezes estávamos só no muije, outros estavam numa pequena lagoa... todas essas águas quando se juntaram foram imparáveis. Hoje parece que isso é reconhecido.

PERGUNTA – O Luandino continua modesto. Na verdade ficou preso quantos anos?
LV – Da primeira vez que fui preso, no Processo dos 50, tiraram-me porque eu era muito miúdo e, (penso eu que o juiz interpretou, para o despacho de pronúncia final, orientações superiores) não convinha misturar sobretudo os brancos que tinham uma boa situação... como é que uma pessoa que é gerente de uma empresa, tem dinheiro, tem privilégios... “se mete nisto?”, como eles diziam. Depois, em 1961, fui condenado a 14 anos e cumpri 12 em prisão; depois pegaram em mim e puseram-me em Lisboa com residência vigiada. Tinha uma caderneta e cada vez que queria me deslocar tinha de ir à PIDE, eles punham lá um carimbo... “segue para Santarém”... Ia lá visitar o meu pai... quando lá chegava a primeira coisa a fazer, antes de ver o meu pai, era me apresentar à PIDE para carimbarem a caderneta... Só depois é que, vigiado obviamente, podia visitar a família.
Temos que render homenagem é à memória dos milhares e milhares de angolanos que morreram, que deram o seu sangue, a sua vida, para a conquista da independência política. Nós que passamos estes anos todos de cativeiro, temos o direito a dizer isso com a modéstia e ao mesmo tempo o orgulho que temos nisso. Mas o nosso sofrimento (pelo menos falo pessoalmente) comparado com o das grandes massas... não, não tem comparação possível. Não é ser modesto... Trinta e um anos depois a gente já pode ver qual é realmente o nosso lugar. É um pequeno lugar, está ali, não é mais do que isso.

PERGUNTA – Escreveu “Nós, os do Makulusu” em 15 dias. Continua com este ritmo frenético de escrita?
LV – Não. Em relação a “Nós, os do Makulusu” até hoje não compreendo... Eu não sou uma pessoa muito mística, ao contrário aqui do meu compadre, que tem a abertura de espírito suficiente para enquadrar desde o misticismo ao realismo mais científico só comprovado por experiência... É verdade que o ambiente cultural da nossa terra e o ambiente natural, também um bocado mágico, dá-nos essa percepção de que nem tudo na realidade é perceptível apenas com os instrumentos científicos, da razão. Há coisas que é melhor desconfiar. Desconfiar é uma atitude correcta. Enquanto não tivermos a certeza, desconfiámos. Alguém passeia em nós…
Nós atravessávamos no campo de concentração um período muito, muito difícil. As notícias que nos chegavam... Não sei como é que nos chegou a notícia da morte do Hoji-ya-Henda... e também d’alguns problemas que houve na Checoslováquia... a morte do Che Guevara... Mas sobretudo internamente nós passávamos um período de muito mais repressão, muitas limitações... E foi também um período muito difícil para mim, pessoalmente, estive muitos meses sem notícias da família... Então sucedeu que este livro [“Nós, os do Makulusu” ] foi escrito em 7 dias.
Nós saíamos da caserna para dar umas voltas, para lavar a roupa, para apanhar sol... o chamado recreio... Eu sentava-me no chão, debaixo de uma grande acácia, no meio do campo, e fui escrevendo. O romance foi escrito assim, como se eu estivesse, e agora vou arriscar mesmo, possuído por um espírito.
Alguém me diz que sim, que é assim, porque foi nessa mesma árvore onde o Mendes de Carvalho gravou à canivete uma frase, que eu já não lembro e que ficou lá. E ambos sofremos muito, anos depois, no dia em que  visitámos de novo aquele campo e vimos que uma moto-serra tinha cortado aquela árvore. Outras árvores ficaram, mas aquela tinha sido cortada. Fazendo ficção, estou a ler sinais que não existem. Mas a verdade é que estas coisas se passaram. Como é que nós, por exemplo um mais velho como o Mendes de Carvalho ou eu que também já vou a caminho de ser um kota, como é que nós vamos ler isso? Porquê que cortaram precisamente aquela árvore? Ah, é o acaso... Outros dizem, ah, isso é um milagre... Há muitas coisas na vida para as quais a curta vida humana, quer individual quer às vezes grandes colectivos, ainda não pode encontrar resposta. A resposta é mais estratégica, precisa às vezes de séculos. Ainda há pouco tempo na Europa toda a gente defendia que a terra estava quieta e que o sol é que girava à volta da terra. Hoje sabe-se, cientificamente, que é o contrário.

PERGUNTA – No quadro global da sua obra, qual é o livro que mais aprecia? Incluindo “O Livro dos Rios”.
LV – É difícil dizer. Não é a velha e estafada imagem de que todos são nossos filhos e que todo o pai ama a todos por igual. Todos eles,  quando os publiquei, publiquei conscientemente. Tenho a noção do que cada um deles representa ou pode ter de valimento. Mas se me disserem assim: só podemos editar um livro... Em homenagem a esse espírito que naquele momento deve ter habitado em mim (e tenho pena que se tenha ido embora depois) eu escolheria mesmo o “Nós, os do Makulusu”.

PERGUNTA – Acredito que tenha uma ideia geral daquilo que é a literatura angolana hoje. O que acha dela?
LV – Nenhum de nós pode fazer futurologia. O hoje da literatura angolana conheço mal, porque em Portugal não chegam algumas obras, pelos motivos que todos sabemos. Conhecendo mal era muito atrevimento estar a fazer um balanço. A única coisa que eu posso dizer, é tentando também ver as coisas em termos estratégicos, fazendo a leitura do passado, tentando tirar ilações. E se no fim do século XIX nos debruçássemos ou estivéssemos a ver a literatura que era produzida naquele tempo, nomeadamente a que era publicada nos jornais, se se pusesse essa questão aos homens do fim do século XIX e princípios do século XX, àquela geração, será que eles poderiam por exemplo prever a geração dos Novos Intelectuais de Angola, o movimento da Mensagem... seguramente que não. Retrospectivamente, nós podemos agora encontrar uma ligação entre a literatura feita em nome de ideias proto-nacionalistas, vamos utilizar o termo, e a que depois apareceu já com ideias mais definidas, mais nacionalistas claras. Mas é lendo, fazendo a leitura para trás. E quando o movimento da Mensagem produziu a [revista] Mensagem ou quando o Mário [de Andrade] e o Francisco José Tenreiro publicaram o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa podia prever-se, por exemplo, o que foi a actividade de 1975 a 1980, aquelas tiragens de 15 mil, 25 mil exemplares, os livros a circularem a preço de maço de tabaco, as FAPLA a distribuir livros quase com um carregador [de munições]... Podia-se prever? Era muito difícil.
O que une isso tudo é que há uma linha de continuidade no modo como se vê a relação do homem angolano com a terra e os seus deveres para com a realidade. Em todos os escritos há uma linha de continuidade que pode ser simplesmente reduzida a isto: no meu entendimento o escritor angolano sempre foi comprometido civicamente. Teve sempre uma noção de que a sua arte é a literatura, que é a expressão dum sistema um pouco autônomo, mas o cidadão nunca fica de parte; há um mínimo de participação que resulta dessa consciência cívica.

PERGUNTA – Essa participação cívica tem necessariamente uma expressão política?
LV – Às vezes tem expressão política e até militar. Houve escritores que foram para a guerrilha... A participação cívica, como cidadãos, ficou na maneira como os escritores angolanos vêem a sua literatura. E penso que esse traço também define o nosso sistema literário nacional. Há críticos que dizem “ah, estes são poemas militantes”. Está bem. Muitas vezes a qualidade literária é aferida por isso mas outras vezes é essa característica que dá a grande qualidade literária. A gente pode dizer que o poema do António Jacinto, “O grande desafio”, é um poema absolutamente político; é radicalmente político... E é, em simultâneo, radicamente literário.
Estas coisas não são muito simples, nem se pode lançar o anátema de que “ah, é militante, está a fazer poesia militante, logo, não presta”. Ou ao contrário, “ah, não é militante, logo, é bom”. Em última instância a obra publicada é que responde, não é o homem, sendo ou não militante. Agora, o homem que faz a obra está lá na obra, quer seja como presença quer seja como ausência. E o responsável último é ele.

PERGUNTA – Nós estamos num mundo cada vez mais globalizado. Como é que se vê, a si e à sua obra, neste mundo globalizado?
LV – Eu vejo a globalização como esse grande movimento de aproximação das actividades económicas em todo o mundo, o que, por arrasto, leva também a aspectos sociais e culturais. Penso que me está a dirigir a pergunta no sentido de eu, talvez, estabelecer a minha relação com as novas formas de informação e comunicação.
Eu confesso que quando começou esse grande movimento, fiz uma má avaliação. Não do alcance, porque se percebeu logo que essa revolução tecnológica ia trazer uma nova revolução no modo de entender e de nos relacionarmos com o mundo. Fiz uma má avaliação do tempo. Pensei para comigo, “bom, quando isso chegar a ser um dado fundamental no relacionamento entre as pessoas e, no nosso caso, no relacionamento das pessoas que vivem no campo da criação ou das ideias ou da troca de ideias ou do conhecimento ou da informação... quando isso chegar eu já cá não estou”. Pensava que levaria algum tempo mais, mas afinal sou surpreendido, por exemplo em 2005, com essa realidade de ser um excluído, um info-excluído.

PERGUNTA – Pode remediar isso...
LV – Pode ser remediado. As tecnologias são humanas e o modo de as utilizar. Portanto, não é nada que qualquer cidadão, desde que queira, não possa adquirir as competências mínimas para também meter o seu fiozinho na rede e ficar ligado a todos os outros cidadãos, individual ou colectivamente. Disso eu tenho a perfeita noção. Eu fiz uma avaliação do tempo e então fiquei descansado com o meu método de trabalho da canetinha e apontamento e confiando na minha memória. Agora dou-me conta que isso é insuficiente como modo de estar ligado, de estar informado e de estar a participar tanto quanto mais não seja tendo conhecimento do que se passa. Ainda não tomei a decisão de me “incluir”, por preguiça. É que um infeliz traço do meu carácter é ser muito preguiçoso; isso é capaz de dar muito trabalho.

PERGUNTA – Querendo ou não, a informação sobre o Luandino e a sua obra está muito presente na Internet.
LV – O meu neto e o meu filho e outras pessoas ficam muito irritados quando eu digo “printa e mete no correio”, quando afinal é só fazer um clique para enviar ou reenviar [Risos].

PERGUNTA – Como é que tem sido a sua relação com as outras artes angolanas? Essa fruição, essa apreciação das outras artes acrescenta alguma coisa à sua criação literária?
LV – Até 1992 eu tive uma relação muito intensa com as outras áreas da criação artística. Eu era inclusive membro da UNAP   [União Nacional dos Artistas Plásticos]. Desde criança que eu gosto da boa música.

PERGUNTA – O que é que considera “boa música”?
LV – Bom... Música que é feita com algum conhecimento técnico e com sinceridade. Por exemplo, oiço sempre com muita atenção a música tradicional, a música popular, sobretudo o cancioneiro urbano. Com a pintura... sou um desenhador e pintor frustrado.   Houve uma altura em que na UNAP me incluíram nos “pioneiros da gravura”... Fiz uns linóleos no tempo em que nos multiplicávamos com muitos pseudónimos para ocupar o lugar nos jornais, para dar a ideia de que éramos muitos, para a PIDE ficar baralhada... eu era o Luandino, o José Muimbo, o Zé Graça... A gente ia multiplicando também as expressões, para baralhar a polícia.
Sou apreciador, pouco crítico, de jazz. O Gegê Belo não gosta que eu diga isto, mas eu gosto de todo o jazz, sobretudo dos priomórdios, do período da formação, das influências, quando vêem as canções de trabalho mais os blues...
Mantive sempre ligações, por exemplo, com o Ole, o Kidá e os jovens que estavam, em pintura, a estudar em Portugal, o Vitó (o filho do Viteix)... Pude me dar conta de que para além da manutenção de uma linha que se vê em quase todos, de expressão artística baseada não só em temas mas também em figurações populares e uma coisa interessante que era uma certa expressão surrealista, sobretudo em alguns pintores dos anos ’90, já não me lembro de nomes… acho que se fez um bom caminho nas artes plásticas.
Na música houve uma multiplicidade de estilos e a entrada do conceito de fusão e a tal globalização, que faz com que se façam descargas de tudo na Net e se misture... Mas não há dúvida que a música sempre foi um sector de grande vitalidade. Quanto ao teatro não tenho absolutamente nada a dizer, já que não tenho acompanhado o seu movimento.
No cômputo geral, a actividade artística e criativa acompanha o desenvolvimento do país. Umas vezes com uma certa perplexidade, à procura de caminhos; outras já com a consciência de qual é o caminho da afirmação. Acho que as artes também vão neste movimento de crescimento e de irrupção das forças que estavam contidas pela guerra.