O médico urologista e cirugião (na reforma) Manuel Videira recebeu-nos na sua residência, em Luanda, numa manhã sem sol, a prenunciar chuva. “Vai um café? Com ou sem cafeína?”, convidou, mal nos sentámos num confortável sofá. Enquanto o café não vinha fomos directos à conversa que nos interessava. Manuel Videira revelou-se um homem tranquilo, com um discurso lúcido, ponderado mas que não foge às questões aparentemente difíceis. Quisemos saber pormenores do seu percurso como nacionalista activo, a sua convivência no seio do MPLA em Leópoldiville e depois no interior de Angola até ao momento da sua prisão em 1976 e o consequente abandono da vida política activa. O seu livro de memórias “Angola: Um Intelectual na Rebelião”, prefaciado pelo reputado historiador Jean-Michel Mabeko Tali, esteve no centro da conversa
Considera-se um dos fundadores do MPLA?
Não. Fui um dos militantes que “fundaram” o MPLA em Léopoldville (actual Kinshasa). Não me considero um fundador do MPLA.
Quando vai para
estudar em Portugal, em 1954, já se falava em movimentos nacionalistas
angolanos organizados?
Eu
só oiço falar do MPLA como tal apenas em 1961, depois do 4 de Fevereiro. Pelo
menos em Coimbra não sabíamos da existência do MPLA como “partido” organizado. Cerca
de cem estudantes do Ultramar fugiram de Portugal sobretudo por causa da
mobilização militar. Eu fui chamado para prestar serviço no exercito português
e deram-me um prazo de 15 dias para me apresentar no quartel. Nesses quinze
dias tive contacto com a organização clandestina que nós tínhamos em Coimbra e
fugi (em Junho de 1961) para Paris. Só em Paris é que realmente tivemos
contacto directo com Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Lúcio Lara e
tomamos conhecimento da existência real do MPLA.
A base desta nossa conversa é o seu livro. Como é que o escreveu? Baseou-se, além das suas memórias, em apontamentos feitos ao longo dos anos em cadernos e também em pesquisa documental?
Baseei-me
em tudo o que referiu. Principalmente em memórias mas também nos cadernos de
apontamentos que eu tinha e na literatura que já estava publicada. Claro que
fiz pesquisa. Sobretudo em livros da Fundação Tchiweka, de Lúcio Lara, que
publicou todos os comunicados que eram elaborados pelo Comité Director que
davam conhecimento aos militantes dos factos que iam passando. Isto para poder
me alinhar sobretudo em relação ao tempo, para não escrever fora do tempo.
Viriato Cruz defendia em 1962, em Léopoldiville, que devia haver um “recuo estratégico” dos mestiços nas estruturas dirigentes do Movimento. O que é que isso queria dizer excatamente? Qual era o contexto da afirmação de Viriato da Cruz?
Essa deriva do pensamento de Viriato Cruz resultou de uma grande pressão que era feita pela UPA de Holden Roberto contra a direcção do MPLA, dizendo aos seus militantes e fazendo espalhar que o MPLA se tratava de um movimento de brancos e de mulatos e portanto não tinha nenhum significado para a luta em Angola. Como chegou a haver actos de agressão a uma delegação de médicos do CVAAR que foram à fronteira, em Matadi, fazer um reconhecimento das populações para prestar assistência... essa atitude dos militantes da UPA provocou realmente um desencorajamento muito grande. Segundo me lembro, o primeiro responsável a falar nessa teoria não foi o Viriato mas o Dr. Eduardo Macedo dos Santos, que na altura era membro do Comité Director. Mas depois o Viriato achou que essa deveria ser uma estratégia a adoptar para proteger a própria organização em si.
Além dessa interferência da UPA, no seio da massa militante do MPLA havia também a percepção de que os brancos e os mulatos não deveriam participar na luta de libertação nacional e em particular na guerrilha?
Não,
não havia. Houve mais tarde, por parte de alguns membros. Nos períodos de
grande crise, como sabe, o que predominava era a fome, a luta pela
sobrevivência. Mas em 1962 não houve pressão da parte dos militantes do MPLA.
Houve pressão da parte da UPA, do governo congolês, de certas teorias do Frantz
Fanon, que era um dos conselheiros da luta dos argelinos, ele que escreveu o
livro “Os condenados da terra” e curiosamente era mestiço.
No livro fala da visita de Savimbi, em 1961, ao grupo de estudantes em França fugidos de Portugal. E refere que já na altura Savimbi “denotava uma clara preocupação em encarnar a personagem política de Patrice Lumumba”. Aquela influência, que ia até à forma de se vestir, foi momentânea ou perdurou no tempo?
Não
sei dizer durante quanto tempo durou, mas para mim foi marcante. Nós estávamos
na Cimade, que era um centro das igrejas protestantes especialmente dedicado a
prestar assistência aos refugiados políticos, sobretudo aos jovens refugiados
políticos. Quando lá estávamos fomos surpreendidos pelo pedido para visitar o
grupo feito pelo Jonas Savimbi, que alguns de nós conhecíamos de Lisboa e
outros de Angola. Mas ele foi especialmente para visitar o Dr. Lihauca, que acho
que tinha estudado na mesma missão em que ele tinha estudado. O Savimbi
apresentou-se vestido com o seu “abako”, igual ao de Lumumba, tal como os
óculos, o que era extremamente raro em França na altura, mesmo por parte de
africanos. Tanto é assim que nós dizíamos “olha está aí o irmão do Lumumba”.
No livro dedica
largos espaços, capítulos inteiros, a traçar o retrato de figuras com as quais
se cruzou e conviveu, algumas das quais constam da história da luta
anti-colonial. Sãos os casos de Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade,
Agostinho Neto, Gentil Viana, Deolinda Rodrigues, Eduardo Mondlane, Amílcar
Cabral, Sócrates Dáskalos, Comandante Benedito e outros. Foi sua preocupação
homenagear dessa forma aquelas personalidades?
Sim.
Pretendi sobretudo relembrar personalidades que foram muito importantes na vida
do Movimento e da luta de libertação de Angola. São figuras de que nunca se
fala nos tempos actuais e que na minha opinião devem merecer evocação de tempos
em tempos e até que sejam oficialmente reconhecidas com, por exemplo, a
aplicação dos seus nomes em ruas das cidades. Um comandante Benedito, por
exemplo, deveria o seu nome em ruas.
Mário Pinto de Andrade é um dos retratados. Refere-se a ele como figura central na organização da rede clandestina no exterior, na frente diplomática e como idealizador do CVAAR. Quais eram os pontos fortes e os fracos da personalidade e da liderança de MPA?
Dos
pontos fortes era sobretudo a sua grande cultura. Era um homem que frequentou
a Sorbonne (universidade), trabalhava na
Présence Africaine já há alguns anos, ele tinha um avanço de conhecimentos
culturais muito acentuado. E sobretudo conhecimento político e diplomático. Era
um homem, um cidadão totalmente urbanizado, como ele próprio reconhecia. Mas
tudo isso existia ou habitava numa pessoa de estrutura física débil, ele não
tinha fisicamente nenhuma condição de se deslocar nas matas onde alguns de nós
andamos a trilhar durante anos. Essa era a sua debilidade. Mas do ponto de
vista mental era brilhante, não só no MPLA mas em qualquer cenário africano.
Outro dos aspectos fascinantes do seu livro é a forma aberta, desassombrada, sem censura (ou auto-censura) como aborda questões durante muito tempo tabu no seio do MPLA, como por exemplo a questão do racismo, não só na fase inicial em Léopoldville mas também na fase que culminou mais tarde com a Revolta do Leste e depois a Revolta Activa. As contradições raciais no seio do MPLA e na sociedade angolana, na sua opinião, solucionaram-se com a Independência?
Acho que não. Isso é um fenómeno muito generalizado e não podemos esquecer que logo a seguir à guerra pela Independência veio a guerra civil. Uma guerra civil tende a ter um factor racial muito pesado. Foi isso que nos levou e talvez nos leva ainda hoje a ter alguns problemas. A Independência em si claro que não conseguiu resolver essas questões. E sobretudo porque infelizmente a UPA sempre primou a sua filosofia política com base no racismo e no tribalismo. A UPA não foi só racista, foi sobretudo tribalista. Eles não admitiam, por exempo, no seu comando, senão indivíduos de origem kikongo.
Isso tudo, claro, dificultou a criação de uma frente única anti-colonial?
Impediu completamente. A UPA de Holden Roberto, enquanto esteve no Congo e mesmo após o MPLA ter aberto a Frente Leste eles nunca aceitaram fazer uma frente unida, porque achavam que com as alianças que tinham com Mobutu iriam facilmente ganhar a Independência.
Em Junho de 1962 Agostinho Neto, então presidente de honra do MPLA, sai da prisão em Portugal e ainda nesse ano em Léopoldville assume as funções de presidente efectivo do MPLA, substituindo MPA. Essa substituição foi natural, esperada e absolutamente consensual?
Agostinho
Neto quando desce de Marrocos, passando pelo Gana e pela Guiné, e chega a Léopoldville já tinha sido eleito
presidente de honra do MPLA. Mário Pinto de Andrade, que como disse anteriormente,
era um militante especialmente devotado às actividades diplomáticas, reuniu o Comité
Director e disse “olha, vocês sabem que eu como presidente estou de passagem, o
verdadeiro presidente é o camarada Agostinho Neto”. No princípio não houve
problema nenhum. Não me lembro se na primeira reunião Viriato da Cruz estava ou
não. Infelizmente para o MPLA, Agostinho Neto chega justamente naquele período
em que o Viriato da Cruz perfilhava a estratégia do recuo dos mestiços e não participava
nas reuniões do Comité Director. É a partir daí que justamente se começam a
acumular os desentendimentos entre um e outro.
Como o senhor
mostra no livro, não tardou a haver os embates entre Viriato da Cruz e
Agostinho Neto...
O
Viriato da Cruz tinha uma mentalidade marxista e como secretário-geral, em
princípio, era o homem mais importante do Movimento, ele achava que ele é que
devia dominar a máquina, toda a actividade e sobretudo todo o pensamento
político da organização. Agostinho Neto tinha outra concepção, achava que o
presidente é que tinha de ser a personalidade mais importante.
Pelos
estatutos realmente o secretário-geral deveria ter mais poder. Viriato da Cruz
dizia que Agostinho Neto chegou a Léopoldville, tomou os cargos, começou logo
por organizar, em menos de uma semana, uma conferência de imprensa sem o
consultar, quando ele é que devia transmitir a Agostinho Neto qual era a
situação real do MPLA. Eu penso que Agostinho Neto não reuniu com Viriato
porque este praticamente tinha se afastado. Dizia-se, isto não está no livro,
que Viriato tinha uma entrevista com Neto e este deixou-o muito tempo a
espera... Começaram aí os desentendimentos. Por outro lado Agostinho Neto vinha
com muita “fúria” e muita pressa e convencido que iria convencer o Holden
Roberto a fazer uma plataforma qualquer de entendimento, tipo uma frente
unida...
Uma
das primeiras atitudes políticas do presidente Agostinho Neto em Léopoldiville
foi escrever uma carta ao Holden a pedir uma reunião para discutirem formas de
entendimento. Mas uma semana depois recebeu a resposta de Holden muito pouco
simpática a recusar esse encontro.
Por que teria Holden Roberto recusado?
Porque
achava que o MPLA não valia nada e nunca conseguiria implantação no interior de
Angola. Um outro pormenor: pouco depois de Agostinho Neto chegar a Léopoldville,
chegou também um antigo missionário, o bispo Dodge, que tinha sido professor de
Agostinho Neto. Dodge chegou, acho que secretamente, a Léopoldville, para
cumprimentar e falar com Agostinho Neto e
convidar-lhe para fazer uma tournée nos Estados Unidos. Infelizmente o
Viriato da Cruz fez espalhar a notícia desse convite, que devia permanecer
secreto, para provocar na embaixada da União Soviética uma reacção evidentemente
desfavorável. Ele espalhou que a ida de Agostinho Neto aos Estados Unidos seria
uma traição, de tal modo que Neto se viu obrigado a cancelar essa viagem. No
meu conhecimento esses são os principais factores que afastam Agostinho Neto de
Viriato da Cruz. Mas também houve aí conflito de personalidades, ambos eram
homens de poder e não gostavam de partilhar o poder.
A História não é feita de “se”, de situações hipotéticas, mas se, vamos lá fazer esse exercício, Agostinho Neto em 1963 tivesse ido em digressão pelos Estados Unidos, eventualmente o MPLA se teria afastado do universo socialista, teria sido uma força mais vinculada aos interesses ocidentais, nomeadamente norte-americanos?
É
como você diz, a História não se faz de “se”. Mas, dada a experiência anterior
que nós tivemos, por exemplo a fuga dos estudantes ultramarinos, que afinal, no
fundo, foi organizada pelas igrejas protestantes, como está no meu livro isso
veio a saber-se cinquenta anos mais tarde, é bem possível que o MPLA, pelo
menos, tivesse sido visto pela parte americana de uma outra maneira, porque a
UPA conseguiu criar na opinião pública americana a percepção de que o MPLA era
um movimento de comunistas. E colou-nos esse rótulo, de que o MPLA dificilmente
conseguiu libertar-se. Isso também porque a potência que efectivamente apoiava
os movimentos de libertação aqui em África era a União Soviética. E ainda porque
os estatutos que foram criados pelo Viriato da Cruz eram certamente inspirados
pelos princípios marxistas.
Jovens intelectuais actualmente perguntam: Agostinho Neto, durante o período da luta de libertação, era mesmo comunista?
O
presidente Agostinho Neto era pessoa de poucas falas. Eu nunca lhe ouvi a fazer
afirmações nesse sentido. Ele era um revolucionário de ideias de inspiração
marxista, daí a ser comunista acho que não. Agora, a revolução que houve aqui
em Angola, com a luta pela independência e depois com a participação de Cuba e
de cooperantes soviéticos, alemães (da ex-RDA), etc., etc., é que veio dar ao
MPLA esse cunho de partido comunista. Mas eu acho que o MPLA nunca foi um
partido comunista, nem sequer um partido de comunistas.
Retive da leitura do seu livro que em 1968 chegou a contactar Amílcar Cabral para ingressar nas fileiras do PAIGC. Quais foram os motivos que o levaram àquela tentativa?
O
primeiro motivo foi que eu conhecia pessoalmente Amílcar Cabral, éramos não
digo amigos mas conhecidos. Segundo é que nessa altura o PAIGC tinha organizado
na Guiné Conakry um hospital e tinha ido para lá um médico angolano que se
tinha refugiado no Congo e tinha sido meu colega em Coimbra. Tive conhecimento
disso em Argel e como na altura não tinha funções nenhumas ao nível do MPLA
achava que poderia ir dar a minha ajuda ao serviço de assistência do PAIGC
enquanto médico. Não seria como militante do PAIGC mas como angolano a
participar e a ajudar os serviços de assistência médica do PAIGC. Encontrei-me
com Cabral em Argel, pus-lhe a hipótese, ele admitiu imediatamente que sim mas
achava que eu deveria ter, na qualidade de angolano, a autorização do
presidente Agostinho Neto. Fiz um pedido escrito de autorização mas Agostinho
Neto recusou, disse que tinha funções para me atribuir, como realmente o fez
cerca de um ano e meio depois, enviando-me para a Frente Leste.
A perseguição que sofreu por ter participado na Revolta Activa e que culminou com a sua prisão logo depois da independência, em Março de 1976, deixou-o amargurado? Ainda tem mágoas por tudo o que passou e sofreu?
Já
passaram quase cinquenta anos, todos nós, angolanos, estamos em fase activa de
reconciliação e, portanto, não guardo mágoa. Já participei em várias
actividades do MPLA, de que sou portador de um cartão de militante, fui
contemplado com a medalha dos cinquenta anos do MPLA e como nunca tive funções
exclusivamente políticas nem ambições políticas, desde Kinshasa, estou
absolutamente satisfeito.
Passou à reforma com a patente de coronel, quando todos os nacionalistas do seu tempo são generais. O que é que se passou?
[Risos]
Passei à reforma como major e acho que por interferência superior fui designado
coronel. O que se passou é que eu pertenci à direcção da Revolta Activa, penso
eu.
Quando esteve preso não foi submetido a nenhum processo, não foi condenado...
Sim,
é verdade.
Porque é que
esteve preso, afinal?
Não
tive processo nem julgamento, é certo. A acusação era de traição à pátria
[Risos]. Fui preso a 12 ou 15 de Março de 1976, estava eu na Lunda como único
médico e director dos serviços de saúde da Diamang, quando fui abordado por um
camarada (na altura todos éramos camaradas) que levava uma ordem de prisão
assinada plo director máximo da Segurança, que na altura era o Ludy Kissassunda,
com a acusação de que estava a conspirar contra a segurança do Estado. Fiquei
dois anos, sete meses e mais uns dias na cadeia.
Como é que
passou o 27 de Maio de 1997, na cadeia?
Foi
dramático, assustador. Fomos acordados pela primeira bazucada que foi disparada
contra a cadeia do S. Paulo. A bazuca foi atirada justamente para o ângulo onde
se encontrava a camarata da Revolta Activa. Não sei se foi por acaso ou
intencional. Eram 6 horas e 25 minutos da manhã. A cela era colectiva mas não
muito grande. Lá estávamos seis ou sete, os considerados dirigentes da Revolta
Activa.
Quem eram os outros que estavam consigo na cela?
Estavam
o Gentil Viana, o Mário Paiva, os três irmãos Pinto de Andrade (o Justino, o
Vicente e o mais novo, já falecido), um jovem, o Lukamba, que agora está na
Inglaterra, o Jota Carmelino...
Na altura correram o especial risco de serem fuzilados?
Houve
dois incidentes que apontavam para esse desfecho. Um quando alguém andava à
nossa procura e depois de nos identificar disse “ai é, logo à noite vocês vão
parar o motor no Campo da Revolução”. E foi-se embora. Passada cerca de meia
hora o Sabata, penso que você já ouviu falar dele, com uma AK foi a procura dos
membros da Revolta Activa e começou a alinhá-los para iniciar o fuzilamento, aí
mesmo na cadeia. Felizmente para nós a comissária Virinhas, que fez parte do
assalto (alguns dizem que foi ela que comandou o assalto à cadeia do S.Paulo,
que durou horas) vinha a atravessar o pátio e veio a correr, chega ao pé do
Sabata e dá um grito: “Óh Sabata, quem é que te deu ordem de fazer isso?”. Ela,
mesmo grávida, tinha para aí uns cinco meses de gravidez, deu um golpe ao
Sabata e tira-lhe a arma. “Comissário aqui é que manda, quem te deu ordem?”,
ela foi ralhando com o Sabata, que, envergonhado por ser desarmado por uma
mulher, saiu pelo portão grande e nunca mais o vimos. Foi assim que a Virinhas nos
salvou.
O
que constou é que deixaram-lhe dar à luz o filho e depois foi executada. Ela
está enterrada no cemitério de Benguela.
Arrependimento
da minha actividade como nacionalista não. Fui lutar pela independência de
Angola, não pela independência do MPLA. Fui para o MPLA porque tinha de
participar numa organização. É dessa maneira que equaciono todo esse percurso que
eu tive na luta de libertação. O meu
partido é o MPLA e vou morrer no MPLA.
Sente que a sua biografia foi ou está a ser devidamente valorizada ao longo desses anos todos, não só no seio do MPLA, mas do país?
É
dificil de responder a essa pergunta. O MPLA tem uma longevidade tão grande,
teve uma participação tão volumosa na libertação deste país que é dificil poder
seguir a vida de todos os seus militantes. Eu escrevi o livro sobretudo para
lembrar alguns acontecimentos e algumas personalidades que não devem ser
esquecidas e também porque muita gente insiste que os mais-velhos têm que
escrever. E sou de opinião que sim, que devem escrever aquilo que podem e que
sabem para contribuir para o processo histórico deste país. O mais importante
para nós, os da minha geração, é escrever sobre a nossa participação no
processo da independência e da libertação do país. Depois disto há outras
gerações que devem escrever sobre o que fizeram para este país poder ter paz e
progresso.
O livro termina com a lembrança da sua prisão, de onde saiu há quase 45 anos. O que viveu de lá para cá não merece um segundo volume?
Esse
livro é de memórias mas não é uma auto-biografia. É um livro de memória em que
eu reflicto sobre o que aconteceu num tempo que eu achei essencial, fundamental,
que nunca mais se vai repetir em Angola, pois nunca mais ninguém vai lutar pela
independência de Angola.
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Biografia breve
Manuel Videira nasceu em Porto Amboim, em 1935. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1961, tendo sido dirigente eleito da Associação Académica, sócio da Casa dos Estudantes do Império e um dos organizadores da fuga de estudantes para França em 1961.
Em
Paris, filia-se no MPLA, tendo organizado nova fuga clandestina no mesmo ano,
desta vez para o Gana, de onde partiu para Léopoldville (actual Kinshasa). Foi
um dos fundadores do CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos
Refugiados), organismo que serviu de ponta-de-lança à penetração política do
MPLA no Congo.
Combateu
na guerrilha do MPLA e, mais tarde, fez parte da Revolta Activa. Com a
Independência, regressou a Angola, tendo sido preso durante 2 anos, 6 meses e
14 dias. De volta à vida civil, foi médico (cirurgião e urologista) e
director-geral do Hospital Universitário Américo Boavida.
Está
reformado com a patente de Coronel.
*Entrevista publicada na edição do dia 20/04/2022 do Jornal de Angola
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