quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Escutando o grande Vum Vum Kamusasadi

ISAQUIEL CORI




A musicalidade de Vum Vum Kamusasadi, artista angolano de regresso a Angola 45 depois, está muito bem espelhada no CD "Ode aos meus amores", já em circulação  no mercado luandense.
Muito presente no imaginário das gerações que atingiram a maioridade no tempo colonial, Vum Vum é pouco conhecido pelas novas gerações de músicos, compositores e apreciadores da música angolana.
Com onze faixas seleccionadas com rigor e executadas com os acordes melódicos ora nostálgicos - "Ah! quando eu era garoto", "Capricho-morena"; ora arrebatadoramente alegres - "Kibelebeletanxe", do violão que domina a cena do som, "Ode aos meus amores" é também um tributo à poesia, ou não constasse dele a canção "Testamento", com letra do poema homónimo da poetisa Alda Lara, com a inesquecível estrofe inicial: "À prostituta mais nova / Do bairro mais velho e escuro / Deixo os meus brincos lavrados / Em cristal, límpido e puro".
Com o propósito de se dar a conhecer a um público novo, além de reafirmar o seu valor junto dos da sua geração, Vum Vum, a começar já pelo título do CD, enfatiza o seu lado de cultor da palavra. A sonoridade é límpida e nela dominam o violão e a voz que canta e se transmuta em instrumentos musicais.
A infância é revisitada enquanto tempo e espaço de inocência e liberdade, em contraposição a um tempo "que não sabe que a vida é poesia para unificar".
A carreira musical de  Manuel Rosário das Neves, vulgo Vum-Vum Kamusasadi (nascido a 31 de Dezembro de 1943, no Dondo) remonta aos anos 1960, quando atingiu o auge da fama em Angola. Cabeça de cartaz na boate Tamar, à Ilha de Luanda, durante quase um ano (feito inédito para um negro num espaço tão segregado) em 1968 parte para Portugal, contratado para participar num teatro de revista, à época em voga.
Vum-Vum mal sabia que partia para um exílio de 45 anos, que o levaria a viver também na Suíça e Espanha e, finalmente, na Alemanha e a calcorrear meia Europa a divulgar a imagem de Angola em espectáculos em que quase invariavelmente se apresentava descalço e vestido de panos.
"A Alemanha me deu asas, lá fui recebido de braços abertos", refere, grato pelo ambiente que lhe permitiu dar livre curso à sua criatividade.
"Toda a minha criatividade artística assenta nos valores da minha cultura e tradição", diz Vum-Vum. "Eu não preciso inventar, a minha arte vem do dia-a-dia".
Empenhado numa cruzada de resgate da sua identidade, Vum-Vum viaja pelos lugares de e da memória e reconhece no Duo Ouro Negro os pioneiros da internacionalização da musicalidade popular angolana.
Com mente aberta gosta de mergulhar por outras sonoridades e confessa o fascínio que sente pelo jazz e a música erudita. Aliás, vestígios dessas sonoridades estão bem patentes no CD "Ode aos meus amores". Na mesinha de centro da sala em que recebeu a equipa do jornal Cultura eram bem visíveis os CD de música clássica e do jazzman Thelonius Monk.
A versatilidade artística de Vum-Vum estende-se para a literatura: publicou em 2011, com chancela da Chá de Caxinde, a novela "Simplesmente Maria", e tem pronto para publicação os livros "Kota Luanda" e "Memórias do meu Salalé". Uma peça dramática sua, "O processo", vai ser encenada ainda este mês de Novembro pelo grupo teatral Horizonte Nzinga Mbande.
Mas o sonho da sua vida é levar ao palco a opereta "Salalé! Luanda misoso". As démarches para tal, junto de instituições de direito, já vêm de longe e Vum-Vum ainda não perdeu a esperança.
Enquanto isso continua a compor e aonde quer que vá está quase invariavelmente acompanhado pela Marikota, o seu violão de ofício e estimação.
Quanto ao cenário musical actual no país o velho músico não é nada condescendente. Detesta o Kuduro e não o esconde: "O kuduro não tem pulsação melódica, são palavras atiradas e um ritmo que apenas serve para as pessoas bambolearem o corpo". Aposta que daqui a dez anos esse estilo musical "vai desaparecer ou deixará de ter a expressão que tem hoje, assente sobretudo numa formidável promoção".
"A minha rota é outra", diz, reafirmando o seu compromisso com os valores tradicionais da cultura angolana.