segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

O RISCO DE SER HUMANO



ISAQUIEL CORI

Estamos cá. Conseguimos. Atravessamos o Rubicão (“Alea jacta est”, diria Júlio César), orgulhosos de coleccionar mais um ano nas nossas vidas. O que passou, passou.
Em muitos casos ficamos apenas com as cicatrizes grosseiras, rudes, para um dia, num encontro de evocação ao passado, desabotoarmos a camisa e as mostrarmos silenciosamente, sem necessidade de usar palavras, como prova dos perigos que enfrentamos e superamos.
O início de um novo ano carrega um enorme simbolismo. Antecedido pelo Natal, quadra propícia ao perdão, ao reencontro de famílias, ao apaziguamento entre adversários e à celebração da amizade, tudo envolto pelo simbolismo maior que é o nascimento de Jesus Cristo, o início de um novo ano é por excelência o período do reavivamento espiritual, do renovar dos sonhos, do lavrar de declarações de intenções em prol de uma vida melhor. Os mais pragmáticos e escrupulosos puxam as agendas e os blocos de apontamentos e desenham planos concretos, com contas de somar e multiplicar.
A ver se desta é de vez. Se este é o ano do salto. (Está mais que provado que a vender ovos ninguém chega lá!).
Mas, enfim… Temos de fazer figas.  Neste início de 2020 alimento também a esperança que venha para o entendimento geral a importância do imaterial, dos sonhos, das ideias, da inovação, da criatividade e da livre iniciativa para o enriquecimento e a transformação do mundo à nossa volta. E que as boas ideias, que podem resultar em boas práticas, sejam devidamente canalizadas, acarinhadas, recebidas, assimiladas.
No que ao mais diz respeito, confiemos nos nossos instintos. Não nascemos hoje e se muito ainda temos a aprender, já temos uma base de conhecimento que nos permite ir caminhando. Se a escuridão for mesmo total, recorramos ao acalento da poesia e invoquemos os versos magistrais do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino / se hace camino al andar.”
E mais, que se parta sempre do princípio que outrem é alguém bem intencionado, que nos quer bem, até prova em contrário. É um risco? É. O risco de ser humano.

domingo, 19 de janeiro de 2020

PARA TI: EU, TU E AS PALAVRAS


ISAQUIEL CORI

No outro dia disseste: “chega, não aturo mais, vamos cortar aqui esse nosso percurso atribulado que não me dá paz, que só me faz sentir mal e me torna naquilo que não sou, que jamais quis ser.”
Disseste mais: “é hora de viver os meus sonhos, ainda vou a tempo de ser a pessoa que tanto quis ser, agarrar-me à vida como nos dias da minha adolescência, transformar os desejos em realidade e recuperar a convicção e a fé de que a palavra pensada e dita pode acontecer.”
O silêncio desabou então sobre mim. Incapaz de assimilar devidamente as consequências das tuas palavras, apreendi entretanto a sua gravidade e o seu longo alcance. Mais uma vez, sem fugir aos meus hábitos antigos em circunstâncias similares, saí de casa e fui caminhando pelo interior da noite no bairro que não dorme ao fim de semana. Sentei-me numa esplanada junto à rua principal e destaquei-me logo, por contraste, no ambiente que me rodeava: rapazes e raparigas barulhentos na sua alegria alcoolizada bebiam cerveja e dançavam kuduro ao som dumas colunas enormes no outro lado da rua; uns motoqueiros, adolescentes que àquela hora, com pais conscienciosos, já deviam estar na cama no seu terceiro sono, desafiavam os quebra-molas elevando a parte dianteira das motos e dançando kuduro, pondo em risco a sua vida e a dos circunstantes; as pessoas que chegavam de carro, casais ou grupos de amigos atraídos pelo cabrité e o franguité, mal punham os pés no chão esboçavam logo uns toques de kuduro; os que caminhavam, rapazes com as calças a cair ou moças com saias e vestidos curtíssimos ou calças apertadíssimas, moviam-se lentamente ou rapidamente consoante o som do kuduro…
Ignorado na mesa mais lateral, absorvi completamente o kuduro, esse ritmo da nossa vida, incorporei-o no meu mundo interior de lembranças e cogitações. Voltei às tuas palavras e recuperei a forma como as disseste, aquele teu jeito firme e autoritário de dizer as coisas. Até voltei a sentir o teu respirar entrecortado de fúria e nesse rememorar sou capaz de jurar que mais do que as ouvir eu vi as tuas palavras.
Ocorre-me agora a velha constatação, de que te cheguei a falar um dia, lembras-te? segundo a qual o mundo, a vida, tudo, resume-se a palavras. Sobretudo o passado. Toda a história, os heróis de eras antigas, as sociedade e culturas gloriosas do passado, tudo, tudo, hoje, são palavras que repousam nos livros em depósito nas bibliotecas ou nos grandes servidores da tecnologia digital. O que resta dos grandes homens e mulheres de ontem são as palavras recordadas, escritas ou ditas pelos contemporâneos ou pelos que as ouviram ou leram dos contemporâneos. E tudo o que vemos e vivemos, as nossas memórias, os pensamentos, as brincadeiras, os sentimentos, os pequenos e os grandes gestos, tudo, tem de ser verbalizado, transformado em palavras escritas, sob pena de não sobreviver ao tempo.
A palavra está no centro das grandes religiões como o princípio gerador das coisas, da vida, do mundo (“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” S. João 1; “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós…) S. João 1: 14. e “E disse Deus: haja luz. E houve luz” (Génesis, 1:3); “E disse Deus: Produza a terra alma vivente, conforme a sua espécie; gado e répteis, e bestas-feras da terra, conforme a sua espécie. E assim foi.” (Génesis, 1:24).
Os homens e mulheres de fé, os mágicos, os curandeiros, os feiticeiros, são essencialmente cultores da palavra, a que dão ou não um cunho secreto.
Lembras-te do que te disse no outro dia?: “nas palavras eu me alegro, encontro a felicidade, mas também me entristeço, pois elas podem igualmente encarnar o mal, a tristeza e a morte. As orações e as invocações a Deus são palavras carregadas de fé, mas também o são os sortilégios, os vitupérios, as pragas e as maldições dos maus e dos invejosos.”
Deixe passar um tempo, amor, deixe a vida correr um pouco mais, as coisas vão encaixar-se e encontraremos então as palavras adequadas que nos darão as forças para caminharmos mais unidos e firmes nessa vida incerta que se tece e entretece num labirinto de palavras sem fim.