segunda-feira, 11 de setembro de 2017

CHEGAR AOS 50 ANOS DE IDADE

Isaquiel Cori│


Quando, na semana passada, num convívio restrito, disse que há 16 anos a ideia de vir a completar 50 anos de idade era de todo improvável e fora das minhas cogitações mais optimistas, tive de “aguentar” um coro de firme reprovação e de quase revolta dos circunstantes, diante de tão “flagrante concessão ao pessimismo”. Compreendi logo a reacção.
Todas as pessoas a minha volta estavam abaixo da minha geração, ostentando idades entre os 18 e os 25 anos. São jovens que pertencem a essa geração combativa, ciente dos seus direitos e plenamente informada das realidades do mundo, muitos dos quais votam hoje pela primeira vez. A esses jovens, e muito bem, a menção à ideia de morte é completamente extemporânea, pois vivem envoltos sob uma aura de quase imortalidade, potenciada pelas perspectivas actuais de uma vida cada vez mais longa. Essa “aura”   cresceu exponencialmente nestes anos de paz e estende-se, com mais ou menos incidência, a todos os angolanos de todas as gerações. É assim que se explica a comoção geral diante de notícias de mortes: a vida é hoje um bem tão precioso e inestimável que só a ideia de a perder causa extremo desagrado e até mesmo revolta.
Infelizmente, no nosso país as coisas nem sempre foram assim. E mesmo até há pouco tempo!
Falo por mim. Estamos em 1985. Então tinha a idade de alguns dos jovens mencionados acima. Ano memorável: os Kassav vêem a Angola pela primeira vez; realiza-se em Luanda uma Conferência Ministerial dos Países Não Alinhados; o auge das rusgas: jovens como eu eram procurados debaixo da cama, nos tectos das casas, em todo lado, para ir à tropa; a guerra para nós em Luanda, no Kassequel, não eram tiros mas eram óbitos, gritos e choros que rompiam a madrugada: o fulano que morreu no Sautar, o outro no Mussende, o outro ainda em Cazombo. E os de que não se tinha notícia, os desaparecidos, as famílias em luto interminável.
E mesmo assim as festas, as festas, as festas! E os dancings, com as pessoas ilhadas até ao princípio da manhã, por causa do recolher obrigatório! Ainda hoje eu me pergunto: porquê que naqueles anos se festejava tão intensamente o agora e já, como se a vida toda fosse hoje e o amanhã completamente entregue ao Deus dará? E isso, repare-se, mesmo havendo tão pouco, quase nada, para comer…
Era isso: a morte não só estava em nosso redor como dentro de nós e ao dançar e festejar sem limites alicerçávamos a ilusão de que não éramos fantasmas mas sobreviventes de uma morte quase certa, que ainda nos poupara.
Pois é, então, no limite, a solução para desanuviar o ambiente alucinante e deprimente,  para muitos da minha geração, era fugir para a frente, ir à tropa, fazer a recruta militar, enfrentar a guerra de verdade, fosse o que Deus quisesse. É nessa tomada de decisão, não se importando já se a vida podia ser curtíssima, que muitos jovens da minha geração realmente se libertaram: conheceram localidades distantes, tomaram contacto com várias línguas nacionais e, se não as aprenderam, pelo menos se familiarizaram com o seu ritmo e entonação; alargaram as amizades íntimas a pessoas de outras etnias, outros substractos culturais; enfim, descobriram, por experiência própria, no convívio diário, ombro a ombro, uma Angola mais vasta e diversa. Mas a morte continuava presente nos amigos que morriam e no medo de que a qualquer momento fosse a nossa vez.
1990/1992. A Guerra Fria fica para trás, acontece Bicesse, é a paz. Raramente os jovens foram tão felizes e cheios de vontade de resolverem a sua vida. Milhares emigram das cidades em duas direcções: para Portugal, nas pedreiras, e para o garimpo de diamantes nas Lundas. Em ambos os casos, a busca era pelo sonhado El Dorado. Mais uma vez, sobretudo para os que estavam nas Lundas, o recomeço da guerra significou a volta da morte física, do vazio espiritual, da preponderância da escuridão sobre a luz.

Quando, no outro dia, vi nas redes sociais o clamor de riso diante das palavras de Luvualu de Carvalho, que comparou a paz ao oxigénio, eu não ri, não podia rir, talvez ele falasse sem compreender inteiramente o que dizia, mas eu sabia o que as suas palavras significavam.

LEMBRAR OU ESQUECER A GUERRA

Isaquiel Cori│

Ouvi com insistência, nos últimos dias, apelos no sentido de se esquecer o passado, de passar uma borracha sobre as lembranças da guerra. Isso supostamente em nome da reconciliação nacional e para não ferir susceptibilidades. Tomados ao extremo, tais apelos levar-nos-iam ao mundo orwelliano patente no romance distópico “1984”, onde é narrada uma sociedade em que, entre outras aberrações, existe toda uma burocracia especializada em alterar,   adaptar, “actualizar” os registos históricos em função da ideologia vigente no momento.
A memória colectiva da guerra, aqui entendida como o somatório das memórias individuais resultantes das experiências pessoais vivenciadas em situação de guerra, é um património nacional. No plano individual, se fosse possível, imaginemos obrigar um ex-militar das ex-FAPLA ou das ex-FALA a esquecer completamente todo o seu passado de militar, as peripécias boas ou más por que passou… além da desumanidade que tal gesto implicaria, estaríamos a empobrecer, mais do que já estão, tais pessoas, na medida que as lembranças, as recordações, em suma a memória, é o seu património, em muitos casos a única verdadeira riqueza que possuem. E no caso da mãe que perdeu o filho (ou os filhos), da mulher que perdeu o marido, do jovem que ficou sem os pais e os irmãos, a memória é o único elo com os seus entes queridos. Ora, para mim, o direito à memória, a lembrar o passado, é um direito humano inalienável, tal como o emergente conceito, muito associado à internet e às redes sociais, do direito ao esquecimento. E é preciso não dar como adquirido que tudo que aconteceu ontem será lembrado da mesma maneira amanhã. Hoje a memória da guerra é viva, é uma ferida por cicatrizar, mas se as pessoas não escreverem as suas experiências, as suas frustrações decorrentes da guerra, o que viram e o que sentiram, e até sobre o que fizeram ou deixaram de fazer, daqui a uma centena de anos, se tanto, a guerra,  não havendo já mais ninguém para se lembrar dela, não terá acontecido. E, sem memória dela, estaremos mais disponíveis para a repetir. Por outro lado, a memória, não sendo estática, retroalimenta-se com a visão do presente e propicia narrativas que podem ser completamente diferentes e até contrárias ao que realmente aconteceu.
Um dos papéis da escrita é fixar a memória colectiva, obrigar-nos a não esquecer. Tenho acompanhado com muito interesse o esforço de alguns historiadores militares, com Miguel Júnior à cabeça, de reconstituição de alguns episódios da guerra a partir de uma visão historiográfica angolana, contrapondo-se, esclarecendo ou complementando a visão de narradores cubanos e sul-africanos. Destacar aqui os títulos “O Fracasso da Operação Savannah”, compilação organizada por Miguel Júnior, de textos assinados, entre outros, pelos cabos de guerra Luís Faceira e Peregrino Chindondo; “História Militar de Angola”, outra compilação de textos organizada por Miguel Júnior e Manuel Difuila; e “A Batalha de Kifangondo (1975) – Factos e Documentos”, de vários autores, incluindo Miguel Júnior.  No exterior ano sim ano não, são publicados livros sobre a nossa guerra civil, um dos mais destacáveis dos quais é “A Guerra Civil em Angola (1975-2002)”, de Justin Pearce. A leitura do último capítulo da “História de Angola” de Douglas Wheeler e René Pélissier, intitulado “Uma breve história de Angola entre 1971 e 2008”, é absolutamente recomendável.
Há ainda o surgimento de uma bibliografia de memórias de protagonistas ou testemunhas civis e militares, de ambos os lados da antiga barricada, também muito interessantes. Recomendo a leitura dos livros “A Segunda Revolução”, de Jardo Muekalia, “Caminho para Paz e Reconciliação Nacional – De Gbadolite a Bicesse (1989-1992)”, de Jorge Valentim, “Huambo, 56 Dias de Terror e Morte”, de Jorge Ntyamba, e o recentíssimo “Luena, 45 Dias de Batalha – Cerco à Cidade e Negociações em Bicesse”, de Esmael Silva. Leia-se também “Prisioneiros da UNITA nas Terras do Fim do Mundo”, do  cubano Manuel Rojas Garcia, e “Cuito Cuanavale – Crónica de uma Batalha”, do também cubano Ruben Jimenez Gomez.
Tudo isso ainda é pouco. Os sociólogos, os antropólogos, os economistas, e outros pesquisadores, têm de entrar em campo para estudar, enquanto as marcas ainda estão bem visíveis, que Angola é esta que emergiu da guerra e o quanto esta nos transformou naquilo que somos hoje. E se há retorno e se esse retorno realmente é possível e desejável.



UMA HISTÓRIA IGUAL A MUITAS

Isaquiel Cori │


Joana Munguay é uma mulher dos seus 70 anos que gosta de ver a tarde passar sentada na rua, à porta do quintal da casa do filho que é meu vizinho. De um dos seus oito filhos. A vizinhança passa distraída por ela, com uns a atirarem-lhe umas palavras de saudação e outros ignorando-a completamente. As crianças brincam perto, aos ruídos,  despertando-a por vezes do estado de aparente sonolência.  
Ela desaparece por longos dias, na ronda que faz habitualmente a casa de cada um dos filhos, mas é na do meu vizinho que passa mais tempo e gosta de estar mais, talvez por dispor de um quintal grande onde ela consegue dar vazão aos enraizados instintos de camponesa, cultivando umas quantas hortaliças e ervas cheirosas como a salsa e a hortelã.
Pensei na velha senhora na última semana, em que, muito mais do que em anos anteriores, recebi convites pessoais para ir a cerimónias de outorga de diplomas universitários e participar nas consequentes festas.  Humanamente não era possível satisfazer a todos.
Joana Munguay, que chegou robusta e lúcida à idade que ostenta, tem todos os seus oito filhos formados. Duas são médicas, um é economista, outra jurista. Um é engenheiro informático, outro é psicólogo – e oficial superior das Forças Armadas - e os últimos são engenheiro de construção civil e professora.
Ela não esconde, nos círculos que frequenta, cada vez mais restrictos à sociedade de senhoras da igreja, que os filhos são a sua vaidade. Infelizmente, não tenho a certeza se ela é a vaidade dos filhos.
O percurso de Joana Munguay, camponesa que nasceu em Mazozo, a pouco mais de sessenta quilómetros de Luanda, e para aqui veio muito nova para tornar-se lavadeira, quitandeira, novamente lavadeira, costureira, cozinheira e outras profissões bem na base da escadaria social urbana da época colonial, mal sabendo ler e escrever, e que quase 42 anos depois da independência tem os seus oito filhos, como soe dizer-se, doutores, espanta por não ser um caso excepcional mas que se multiplica por esta Angola a dentro.
E a distância dos anos acumulados desde que ela veio para Luanda onde casou-se e teve os filhos, esconde a distância enorme que ela percorreu e venceu do ponto de vista social, histórico, cultural e humano.
Social porque, entendendo que ela prolongou a sua vida na vida dos filhos, Joana Mungway, a camponesa, a lavadeira, saltou para a classe média (ou para aquela que deveria ser a classe média); histórico, porque ela representa a ascensão, como sujeitos da história - com dignidade e plena consciência - de um estracto da população cujos ancestrais viveram sob a escravatura e foram sujeitos aos rigores do colonialismo; cultural, porque Joana Mungway, através e com os filhos, deixou para trás algumas crenças obscurantistas e assimilou os valores da modernidade, que amalgamou a todo o conjunto difuso da ancestralidade. Por fim, o ponto de vista humano.
As estatísticas que o país já vai produzindo, com alguma consistência, apontam os inegáveis progressos ocorridos no sector do ensino superior, que foi estendido a todas as províncias. Os jovens têm muito mais possibilidades de fazer a formação superior e os papás e as mamãs de Cabinda ao Cunene podem acalentar mais o sonho de ver os filhos doutores e com potencial de terem bons empregos, numa estratégia legítima de “adiantamento” social da família, pois é sabido que filhos de pais com formação superior tendencialmente também terão esse nível de formação. Ora, muitos criticam o facto da extensão do sistema universitário ter nivelado por baixo a qualidade do ensino, e que a  sua massificação não é compatível com a excelência. Além das respostas institucionais que devem obrigatoriamente ser dadas, cabe aos estudantes tomarem essas críticas como pessoais e estudarem mais e melhor para mais tarde “darem cartas” no mercado de trabalho.

***
Sempre que vejo Joana Munguay sentada à porta do filho aproximo-me com cuidado, porque ela assusta-se facilmente com os gestos e os sons bruscos. Quando está realmente a dormitar não a incomodo mas fico a olhar demoradamente para ela, velha senhora de pele grossa e cheia de rugas que dizem dos muitos sóis que a queimaram e dos ventos que a curtiram. Sinto-lhe, com os olhos, o coração a bater ritmadamente debaixo do quimono que mal esconde um fio de ouro antigo, oferta do falecido marido.  Desejo sinceramente que os filhos não sejam ingratos e que a amem tanto como ela os ama. Que ela seja a vaidade e o orgulho deles. E pergunto-me então se ela estará mesmo a dormir ou mergulhada em pensamentos tão profundos como a história da sua vida.


UM VÓRTICE NA ALMA



Isaquiel Cori│

Uma pessoa que muito estimo e que há vários anos não via, perguntou-me um dia desses: “Cori, o teu último livro está esgotado e já lá vão uns bons anos que não publicas outro, o que se passa?” Referia-se ao romance “O último recuo”.
Na altura, dei uma resposta de ocasião, até porque raramente me disponho a falar sobre o que estou a escrever: tudo o que eu possa dizer a respeito é provisório, pois só dou como acabado um livro a partir do momento em que o mesmo está publicado. Mais tarde, lembrei-me do amigo, com quem me encontrava tão sazonalmente. E voltei a pensar na sua pergunta.
Na verdade, a minha não presença nos escaparates das livrarias resultava do facto de ter ficado paralisado diante das transformações que ocorriam aos nossos olhos, logo depois do alcance da paz. Mais do que o betão e o asfalto, o país foi envolvido por um vórtice na alma. Houve um renovar da fé nas próprias forças, na possibilidade de pessoalmente fazermos as coisas acontecerem. A escuridão de morte que ofuscava o futuro e nos fazia sobrevalorizar o dia-a-dia, o instante, e transformava, de modo ambíguo, as festas e as danças numa espécie de celebração da vida e ao mesmo tempo da morte por ora adiada, afastou-se e deixou a luz fluir, como uma janela que se abre ao dia ensolarado. O país fervilhava de optimismo e acalentava sonhos de grandeza como o de vir a ser a maior potência africana.
Nunca os angolanos viajaram tanto! Nunca os angolanos se deslocaram tanto no interior do seu território!
Embaladíssimos pela alta dos preços do petróleo e com a entrada maciça de dólares, acreditávamos genuinamente que era chegada a nossa vez, que tínhamos a oportunidade histórica de “descolar” do atraso. Mais do que sermos nós a caminharmos para o futuro, era mais do que nítida a sensação de que o futuro é que corria em nossa direcção e que a nós bastava estarmos preparados para o acolher. Todos os deuses de todos os credos pareciam conspirar a nosso favor e muitos de nós chegaram mesmo a julgar que, afinal, éramos nós, divinal e providencialmente redescobertos, o “povo escolhido”.  
Tudo isso criava uma tensão espiritual e existencial, o tal vórtice na alma, que ia muito além do tumulto mensurável, palpável, das obras de construção civil. Pois então, era preciso assimilar o que se passava, nas dimensões visíveis e invisíveis, e só então avançar para a escrita. Isso, no entendimento de que a escrita é uma forma de pôr ordem no caos, de racionalizar a confusão,  de ordenar a desordem e pôr luz na escuridão.

***

Muito admiro os que conseguem tirar de objectos materiais vozes, sons, ais, gemidos e até gargalhadas. Fazem chorar a madeira e as cordas da viola, suscitam gritos de alegria das peles esticadas dos tambores e com isso desbravam caminhos insuspeitados nas almas solitárias, sedentas de amor. Aos naturalmente já propensos à felicidade, fazem-lhes transbordar de alegria. E quando à música instrumental se acrescenta a voz do cantor, que verbaliza ou não, que conta uma estória ou se auto-recreia em solfejos a modos de imitação do que vaga e incertamente supomos ser a voz dos anjos, fica composto o “cenário” que faz da música um dos fenómenos mais poderosos da existência humana.


PRÉ-PUBLICAÇÃO: ROMANCE "DIAS DA NOSSA VIDA", de ISAQUIEL CORI

Pois é, caros internautas, aqui vai, em jeito de pré-publicação, o capítulo inicial do meu romance inédito "Dias da Nossa Vida". Se tudo correr bem, o livro sai a público no primeiro trimestre de 2018. Creiam, amigos: nunca foi tão difícil publicar um livro em Angola! As editoras, descapitalizadas, propõem aos autores que batam as portas das empresas em busca de patrocínio; e as empresas, a funcionar num ambiente de imensas dificuldades, não têm como atender positivamente aos pedidos de patrocínio. Aos autores, aqueles em que o acto de escrever significa um sopro de vida, um gesto de liberdade e de afirmação do ser criativo, só resta a opção de escrever para a gaveta. Amanhã talvez as coisas melhorem. Amanhã as coisas sempre melhoram.


                                                           
CAPÍTULO 1




         Reinaldo Bartolomeu vestiu o fato olímpico de sua eleição, o azul de listas vermelhas, calçou as sapatilhas e pôs-se a aquecer aos saltos no quintal. Parecia um coelho dos bonecos animados.
        - Filha, vou dar a minha corridinha matinal.
        - Está bem, querido - gritou a esposa, Rebeca, da cozinha.
        Com o corpo quente e já a transpirar, Reinaldo abriu o portão metálico do quintal e a rua atirou-lhe, imediatamente, à cara a luz clara da manhã. Viu-se obrigado a fechar os olhos. Era uma manhã potente, que prometia um sol abrasador, ao contrário dos últimos dias, em que as manhãs cinzentas e a atmosfera pesada envolviam tudo e todos num abraço deprimente. Deu uns passos às cegas e quando voltou a abrir os olhos foi brindado com uma visão digna de um quadro surrealista: dois cães estavam colados pelo sexo e cada um puxava para o seu lado, na tentativa de se desprender. Eram cães rafeiros, bonitos e limpos. “Mas que porra!”, gritou para si mesmo. “Logo dois cães a se foderem mal um gajo sai para a rua?”
        Uma sensação de mau presságio, misturada com um medo repentino e visceral, obscureceu a mente de Reinaldo e arrepiou-o todo. “Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?”
        Ameaçou pontapear o casal de canídeos e estes, assustados, acabaram por se descolar e se afastar, visivelmente exaustos e envergonhados. “Será que estes animais gozam o sexo como nós, humanos? Mas que raio, assim, sem privacidade nenhuma, na rua, à luz do dia, não acredito que tenham prazer no sexo. São cães! Por isso e por outras é que são cães!”
        Lá Reinaldo Bartolomeu deu as duas voltas habituais pela rua, numa corrida rápida, cheio de genica. Quando finalmente entrou em casa e se colocou nu debaixo do chuveiro, o corpo todo molhado de suor, ainda voltou a ter uma visão mental dos cães em pleno sexo. Mas acabou por entregar-se  à água fria. O choque térmico despertou-lhe todo, pôs-lhe a mente e os sentidos em disparada, com os pensamentos a direccionarem-se logo para o trabalho. Lembrou-se das palavras marteladas e cem vezes repetidas do chefe Admirável Redondo: “Muito há a fazer!”.
        Ao contrário de outros sectores do funcionalismo público, em que os detentores de cargos de chefia preferem não fazer ondas, deixando-se estar absolutamente quietos para não desagradarem o superior hierárquico e porem assim, eventualmente, em causa o próprio cargo, nos Serviço de Informação exigia-se que se fizesse sempre alguma coisa. Era impossível ter o conhecimento e o controlo da situação, de qualquer situação, ficando apenas parado. Apenas parado porque, efectivamente, por vezes, e não poucas vezes, apreendia-se melhor as várias nuances da situação ficando mesmo parado, imóvel, na mais completa passividade. Mas agora Admirável Redondo sinalizava que não bastava ter conhecimento do que se passava à superfície dos dias. “É preciso provocar os factos e colocar os adversários na defensiva ou a denunciarem-se a todo o momento. É assim: como num jogo de xadrez, é quase impossível o jogador aplicar na plenitude a estratégia previamente adoptada; os seus movimentos ofensivos confrontam-se com os defensivos e contra-ofensivos do adversário, obrigando-o a adaptar-se permanentemente, a ser criativo”, dizia ele. Reinaldo enxugou-se, vestiu um velho fato escuro e juntou-se à mulher na cozinha. O cheiro a café atraiu-o imediatamente para a cafeteira no fogão.
        - Come primeiro, toma o café depois, querido.
        - Está bem.
        Sentou-se à mesa e fez um esforço para comer. Era um hábito, ou melhor, uma falta de hábito antiga. No tempo da guerra chegara a dispensar completamente o matabicho, limitando-se a tomar um café amargo logo de manhã, para voltar a meter algo no estômago só ao almoço. Pagou caro por isso. Nos últimos anos foi sendo apoquentado por dores de estômago que chegavam a deixá-lo quase inanimado. Teve de viajar a Cuba, onde um médico impôs-lhe uma dieta centrada no pequeno almoço. Desde então as dores diminuíram. A mulher tomou a si a responsabilidade de garantir que tomasse sempre o matabicho. Era como ela dizia: “para o bem de toda a família”.
        - Está aqui o jornal de hoje. O motorista passou enquanto te banhavas.
        Há dois anos o principal jornal do país chegava à província todas as manhãs, no primeiro voo da companhia de bandeira. E Reinaldo era das primeiras pessoas a ter acesso ao mesmo. Agarrou o jornal e foi passando os olhos página a página. Ler os jornais, sobretudo o jornal oficial, era uma obrigação profissional. Os jornais privados, quase todos semanários, foram impedidos de circular na província, na sequência de uma novela caluniosa a respeito da vida particular de Sua Excelência o Senhor Governador. Verificara-se depois que a campanha fora montada e financiada a partir de Luanda por um velho inimigo de estimação do Governador, colocado em posições cimeiras das estruturas partidárias e governamentais. A questão de se saber da verdade, do mérito ou não das acusações, fora habilmente desviada para a deslealdade do dirigente em causa. Antes que ambos se autodestruíssem, arrastando consigo, aos pedaços, a boa imagem do sistema político, representantes do núcleo duro do poder no país chamaram-nos e obrigaram-nos a fazer as pazes: em nome dos “superiores interesses do Partido, da Nação e da Paz”. Um círculo muito restrito da província, em que se situava Reinaldo, por dever de ofício, continuava a receber os principais semanários da capital do país.
        Mais do que as notícias em si Reinaldo procurava extrair do diário oficial os sinais, as tendências. Era-lhe importante sondar a linguagem, descodificar o grafismo, ler as fotos e as legendas. As páginas de publicidade, muitas vezes, acabavam por ser mais significativas que as notícias, diziam mais das dinâmicas políticas, sociais e económicas e tornavam mesmo o jornal indispensável para todo e qualquer funcionário público. 
        Não menos importantes para Reinaldo eram as páginas de necrologia. Ele que conhecia muito bem a elite social, económica e cultural da capital do país, onde se movera ao longo de quase toda a vida, deparava-se frequentemente, naquelas páginas, com o rosto de alguém que partira para o outro mundo. Não tendo medo da morte, respeitava-a, porque punha todos de sentido e tudo em perspectiva: estamos todos de passagem, não importa a riqueza ou o poder que se tenha. Por isso valorizava imenso a vida, essa carruagem colorida e cheia de sonoridades que ninguém sabe quando e onde vai parar. 
        Enquanto lia, Reinaldo Bartolomeu esticava mecanicamente o braço para alcançar um pedaço de pão, uma fruta ou outro alimento qualquer. Mastigava devagar, completamente entregue às escolhas nutricionais da mulher.
        - Algo de novo? Como está o país?
        - Tudo velho, filha. Pelo menos, de momento.
        - Como assim, de momento?
        - O importante é absorver as notícias. No momento certo a mente devolve-nos o que absorvemos na forma de sínteses informativas, saberes intuitivos.
        - É o teu trabalho, sei, mas…
        - Papá, papá, quando eu crescer também quero ser bufo!
        Vindo do quarto a correr, portador de uma energia inusitada para quem acabava de saltar da cama depois do sono nocturno, Andrezinho, o filho caçula, irrompeu na cozinha com a soberania imperial das crianças mimadas.
        - Eh, pá! – Reinaldo esticou-se todo, como uma cobra ao ataque, deixou o jornal escorregar para o chão, as folhas soltas espalhadas. – Anda cá, Andrezinho, o que foi que você disse?
        - Quando eu crescer quero ser bufo, papá! – reafirmou.
        - Você sabe o que é isso?
        - Sim, quero ser assim como o papá e o avô. E também como o vizinho Manecas e a mulher dele. E como o tio Caldeira e a mana Domingas. Ah, e a prima Deizi e o marido dela…
        Reinaldo respirou fundo. Outra maka mais! Andrezinho tinha sete anos. Era muito espevitado mas acabava de ultrapassar todas as marcas. 
        - Quem anda a te dizer essas coisas? Vá, diga!
        - Ninguém, papá, eu sei mesmo sozinho. Ninguém me disse.
        Nunca se sabia. Tinha de ficar mais atento, abrir uma nova frente de vigilância, agora tendo como alvo o próprio filho. Era uma tarefa a não delegar a ninguém. Ele próprio a levaria a cabo. O inimigo estava em todo o lado, infiltrava-se em todos os lugares.
        - Trata mas é de estudar. Estudar é o teu trabalho. E vais ter de me dizer com quem andas a conversar.
        - O que é isso, Reinaldo, deixa o miúdo em paz. Ele é inocente.
        - Até pode ser inocente, mulher. Os inocentes são, precisamente, o maior risco. Podem ser utilizados sem sequer perceberem.
        - Ora, o Andrezinho acompanha as conversas aqui em casa e nos lugares onde vamos. Ele é apenas uma criança. Não o ponhas nesse mundo sombrio em que te moves.
        - Ai é? Vamos ver. Se cheguei até onde estou é porque nunca deixei uma ponta solta.
        - Vai para o quarto de banho, já.
        Andrezinho foi para o quarto de banho, todo contrariado. Reinaldo pensou seriamente na família, nas amizades e na vizinhança. Na sua ascendência e nas suas relações passadas e actuais, era bem verdade, tudo tresandava a bufaria. Na família havia uma verdadeira dinastia de bufos. Até onde ia o seu conhecimento um antepassado seu fizera parte do círculo de confiança da rainha Njinga Mbande, encarregando-se da sua segurança pessoal. A informação fora-lhe dada, inadvertidamente, por um velho tio na noite triste e festiva de um óbito em Malange. Quisera aprofundar os detalhes, saber mais de tão ilustre antepassado, mas tanto o excesso de trabalho como a morte do velho cortaram tal possibilidade. Foi aos arquivos, aos livros de História disponíveis, mas não encontrara rastos do parente. O que era compreensível, pois a narrativa da história de Angola pré-colonial é, fundamentalmente, a gesta de reis, rainhas e grandes chefes tribais.  
        As informações a respeito do tempo colonial eram mais profusas e claras. Durante a luta anti-colonial teve parentes seus a operarem, ao mesmo tempo, como agentes da PIDE e das forças clandestinas do MPLA. Essa condição dúbia, de prestadores de serviços valiosos tanto a um como ao outro lado da barricada, colocou alguns desses parentes em posição privilegiada por altura da eclosão da independência nacional. Não por acaso, um dos mais altos dirigentes da antiga DISA era um tio seu, primo da mãe. Igualmente não por acaso, um outro tio, irmão da mãe, também da DISA, estava entre os mortos do 27 de Maio de 1977. Era mesmo como o Andrezinho dissera: os seus parentes mais notáveis faziam parte das várias estruturas dos serviços secretos. Alguns sobrinhos já estavam a trilhar o mesmo caminho: além de um bom emprego, era uma questão cultural incrustada no sangue.
        - Precisamos ficar atentos ao Andrezinho.
        - Vai, deixa o miúdo ser criança. Não o metas nas tuas obsessões.
        - Vamos ver no que é que isso vai dar, filha. Estou muito preocupado.