domingo, 28 de janeiro de 2024

Para (tentar) perceber o fenómeno Nagrelha: O QUE EXPLICA A EXPLOSÃO DE MULTIDÃO NO FUNERAL DO CANTOR?

Isaquiel Cori



Nagrelha, o cantor de Kuduro, foi a enterrar na última terça-feira (22/11/2022) bem Luanda,  com o cortejo a ser seguido por multidões tão grandes como raramente se viu em Angola. A comoção e os ajuntamentos começaram a notar-se logo após a notícia da morte, dada em comunicado oficial, num outro acto inédito, pela instituição hospitalar onde o cantor estava internado - aliás, o “nunca antes ocorrido” já acontecera quando, no dia 25 de Junho, Nagrelha fora evacuado de urgência para o exterior acompanhado pelo director clínico da mesma instituição hospitalar. As multidões aos choros foram crescendo no Sambizanga, bairro onde o cantor nasceu e cresceu, e noutros bairros anteriormente chamados musseques e hoje commumente designados “periféricos” (serão periféricos não tanto pela localização geográfica, mas pela marginalização social). A noite do velório no estádio da Cidadela, com as bancadas abarrotadas de gente, lembrava o cenário de um jogo da selecção nacional de futebol nos seus tempos áureos. E, finalmente, no dia do funeral foi o que se viu. Vídeos e fotos que circularam amplamente nas redes sociais, e as imagens exibidas na TV, mostraram multidões em transe a acompanhar o cortejo fúnebre e grupos de oportunistas a vandalizarem património alheio.

Membros da elite bem pensante, quando não se mostraram perplexos e paralisados diante do fenómeno que se desenrolava a seus olhos, invectivaram a horda de anónimos que se levantou dos bairros periféricos, mas não só, para chorar e acompanhar à última morada o cidadão-cantor Nagrelha, cultor de um género musical considerado, por essa elite,  “tão menor” como o Kuduro. Agora que as emoções parecem serenar, é tempo de pôr racionalidade na análise do fenómeno Nagrelha. Para tal o Jornal de Angola interpelou, por escrito, os sociólogos Elisabete Ceita Vera Cruz e Cláudio Tomás e o crítico musical Jomo Fortunato. E do Facebook trouxemos o texto da jornalista Maria Luísa Rogério, um dos mais brilhantes produzidos naqueles dias, naquela rede social. A ver se nos ajudam a perceber os acontecimentos desencadeados pela morte e o funeral do maior ícone do estilo musical Kuduro.




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ELISABETE CEITA VERA CRUZ*

“A sua morte representa o fim de uma era”

                                                                 Elisabete Ceita Vera Cruz

 O que explica uma comoção tão generalizada nos bairros da periferia pela morte do cantor Nagrelha?

Bem, as manifestações de comoção também são organizáveis... Poderia dizer-lhe também que se terá tratado de um espaço-tempo para alguns oportunistas, mas sobretudo que permitiu o extravasar de frustações de milhares de jovens desesperados e sem voz. Terá sido um misto de emoção, dor e força. E diz bem, da periferia. Mas, respondendo directamente à pergunta, Nagrelha representa uma juventude, a da periferia, dos chamados bairros, juventude desvalida que entretanto consegue driblar o “destino”. E se por um lado se torna um jovem de sucesso, por outro ele não enjeita o seu bairro, o seu passado... Para quem é que Nagrelha é um ícone? Pensar-se-ia que seriam milhares, mas parece serem milhões os jovens fãs de Nagrelha, sobretudo os que trabalham no sector informal, para aqueles que são considerados marginais por usarem estupefacientes, para aqueles que vivem à margem da lei. Mas também para os do espaço urbano porque, afinal, “não é só no bairro”, como cantam Yannick e Nagrelha. E, de repente, o Nagrelha torna-se um “case study” que faz com que se pergunte como é que um “ninguém” – pergunta feita por aqueles que desconhecem a Angola real – consegue fazer com que dele se faça um “case study”? Quer dizer que o fenómeno Nagrelha estava aí, conhecido por muitos, e penso também que a morte de Nagrelha representa, também, o fim de um ciclo, de uma era em Angola – na verdade é o próprio Nagrelha quem diz que “não existe depois de mim”. Porquê o fim de um ciclo, de uma era? O que é que isso significa? Para além de outras possíveis leituras, destacaria o fim do ciclo da indiferença, da cultura vista somente como entretenimento e pouco ou nada como conhecimento, e a emergência de um novo olhar e abordagem para com as pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, para com a  pobreza... O facto de Nagrelha ter sido o único que, sem pejo, terá defendido o ex-presidente José Eduardo dos Santos (a entrevista que acabou por não acontecer porque começou e terminou com Nagrelha a perguntar ao entrevistador o que poderia ele dizer sobre JES, é elucidativa e por isso muito interessante), porventura pelo que este último lhe terá agraciado, uma mensagem do género “não cuspas no prato em que comeste”, fará dele um indivíduo honrado, com princípios, com valores, independentemente dos juízos que se possa fazer da governação de José Eduardo dos Santos. Sem esquecer, é claro, a generosidade e a solidariedade que dizem ter sido uma das suas grandes marcas.   

O Kuduro às tantas vai muito além de um estilo musical? O kuduro acaba por expressar as frustrações e os sentimentos mais profundos dos grupos sociais dos bairros periféricos?

Sei que existem artigos, ensaios, trabalhos sobre o kuduro - estou desejosa de ler todos... Importa saber e compreender não somente quando surge, e isto sabemos, mas sobretudo a sua evolução e da sociedade angolana. Mais uma vez a arte a mapear a nossa sociedade, desta vez, a música, mas poderia ser a literatura, as artes cénicas, enfim...

Diria que mais do que um género musical ou uma dança, o kuduro é um estilo e um modo de vida. E uma forma de protesto. Terá começado como dança e música, mas rapidamente foi apropriado e metamorfoseando-se para ser o que é hoje. Porque o kuduro é também, hoje, sinónimo de passe para a ansiada mobilidade social, para a inclusão. O/as kuduristas para além do dinheiro que ganham e, como consequência, verem melhoradas as suas vidas, vêem mudar o seu status social, passam a ter visibilidade, a ser respeitados, alguns passam a ter e a ser uma janela aberta para o mundo...  Hoje temos kuduristas licenciados ou na universidade, o que revela bem a evolução do género musical e as mudanças em Angola, nomeadamente em Luanda.

 

Nagrelha pode ser considerado um herói?

Um herói acidental. Diria antes que Nagrelha personifica o anti-herói. Podemos encontrá-los, os anti-heróis, em todas as geografias, e não são tão poucos assim. E o que é ou quem é o anti-herói? Tendo como referência o Nagrelha, é o indivíduo com uma infância – adolescência e juventude - difícil, complicada, com pouca escolaridade, que passou pela prisão, terá consumido droga, terá sido o que alguns chamarão arruaceiro, mas que deu a volta à sua vida e se tornou um ícone. Não sendo o melhor cantor nem dançarino, com um passado conturbado, como é que se torna um ícone? Pelas razões enunciadas e porque o anti-herói não é aquele que congrega opiniões positivas sobre ele; bem pelo contrário, é precisamente por a opinião que se tem dele não ser unânime, por ser imperfeito, pelos seus excessos, com alguns comportamentos que poderão ser condenáveis, causar alguma repulsa, mas com outros admiráveis como a humildade, o  facto de quebrar estereótipos -  imagens do Nagrelha com o filho nas costas, a limpar o chão com todo o à vontade - fazem com que inconsciente e rapidamente passe de vilão a herói. Aqueles que, como ele, vivem ou viveram situações adversas, se encontram no limbo, acabam por vê-lo e tê-lo como uma referência, como líder. Um jovem vendedor de sonhos, de pequena estatura, de aspecto frágil (fazendo jus ao adágio “os homens não se medem aos palmos”), mas que se apresenta carismático, sem medo de se mostrar, de ser quem é, de cair no ridículo (e não cai!)... E assim nascem os mitos, com a carga de controvérsia e romantismo que lhes estão associados. E as sociedades, os jovens, precisam de se ver representados, precisam de ídolos. E o facto de ter morrido cedo, com 36 anos, é um elemento mais que não pode ser descurado.

 

O que se pode ou deve fazer para que fenómenos como Nagrelha deixem de ser considerados periféricos ou marginais, independentemente de onde tenham surgido, para serem assimilados ou integrados como parte legítima do todo nacional?

A emergência de sub-culturas, nas suas diferentes roupagens, não é sinónimo de exclusão; poderá, sim, ser sinónimo de criatividade. E o importante é saber reconhecer e abrir espaço a essa criatividade, desde logo com a construção de escolas regulares, mas também de artes, para todos.   

A arte, as culturas, têm muito de marginal; de tal forma que se fala da existência de culturas marginais. E têm poder, o poder de o deixarem de ser. O kuduro enquadra-se no fenómeno geral da street dance, break dance e afins e o Tony Amado, considerado pai deste género, dá o mote, segue-se-lhe o Sebem com nova roupagem (entre tantos outros) e o Nagrelha, Naná, Estado-Maior e outros tantos nomes que teve e com que se terá auto-denominado, que faz a ruptura com os citados pioneiros. Ele diz, numa entrevista, que antes dele - Tony Amado e o Sebem - não havia narrativa, não havia letra, o mesmo que dizer que não havia kuduro. Logo, o kuduro, tal como o conhecemos hoje, terá começado com ele... O fenómeno Nagrelha é criado pelo próprio e, claro, pelo seu grupo, Os Lambas - atente-se no simbólico nome “Estado-Maior do Kuduro”, na indumentária do Nagrelha que nos remete para o papel e lugar das forças armadas, dos generais em Angola -, pela comunidade do Sambizanga, por Luanda, e pelos fãs que se foram multiplicando um pouco por todo o país.

Durante muito tempo disse-se que o kuduro cedo desapareceria, mas ele está bem presente... vai-se reinventado, novas batidas, sonoridades, novos intérpretes, e o kuduro continua. Hoje, pode até ser considerada música de intervenção. A sua importância está aí e o sistema que o diga, porque foram destinados lotes de construção para os kuduristas, o funeral do Nagrelha penso ter ficado a expensas do Estado... Claro que se tratará do reconhecimento artístico, cultural, social e sociológico do artista, mas não se pode ignorar os possíveis aproveitamentos políticos, muito frequentes nestes casos.

Até quando o kuduro se manterá, não sei, mas muito provavelmente enquanto se for reinventado (parece que os “bifes” estão a cair em desuso), continuaremos a ter kuduro, que entretanto já atravessa gerações.

 

E como explicar o sucedido no funeral do Nagrelha?

A “Nação Kuduro” esteve em peso. Foi a periferia, a força dos bairros, do gueto, dos desempregados, dos trabalhadores informais, dos gangues, dos jovens, a ocuparem o espaço urbano (sem esquecer os curiosos). E que força! O poder do kuduro, da periferia e da juventude desvalida, como já referi. Sem grandes lucubrações, diria que Nagrelha morreu (o seu funeral) como viveu, ou terá sido parte da sua vida: entre o caos e a ordem.

*PhD em Sociologia. Especialista em estudos sobre a juventude em Angola

 

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CLÁUDIO TOMÁS*

“Uma forma de vida ou um amplo

movimento popular artístico”

 

                                                                         Cláudio Tomás

“Penso que a compreensão sobre o que está a ocorrer com a comoção generalizada pela morte do Nagrelha deve passar pela relação de vários elementos. O primeiro deles é, sem sombra de duvidas, o sentimento de comoção pela morte prematura. Ninguém está preparado para ver partir pessoas tão jovens. Principalmente quando estas possuem recursos suficientes para acederem a cuidados de saúde adequados.

O segundo deles, e aqui começo a introduzir as minhas hipóteses, é o de Nagrelha ser aquilo que a Sociologia designa como um carismático. Encontramos na pessoa a mística própria de alguém que apela ao sentido de identificação de uma imensa multidão de jovens espalhados pelo País. Muito se deve, certamente,  ao  que ele sugere como ideal de realização social: um jovem nascido pobre, com poucas oportunidades, sem possibilidades de frequentar a escola, com uma experiência de vida marcada pela exclusão social, violência e criminalidade, e mesmo assim, e apesar disso, conseguir atingir os palcos da fama mundial através da música.

E há ainda outro aspecto importante a considerar (ainda como hipótese) na personagem carismática do Nagrelha: mesmo depois da consagração, da fama, e de tudo o que isso poderia trazer-lhe como benefícios, nunca o vimos em viagens a Miami, Portugal, ou a Dubai, a exibir sinais de riqueza. Nagrelha continuou igual a si mesmo. Não se deixou corromper pelo dinheiro e se transfigurar pela fama. Continuou próximo do seus, continuou a ser do Sambizanga, o Naná. E essa ideia de pureza e de fidelidade aos seus e às suas origens é uma marca distintiva que apela à simpatia, ao apreço e à identificação de muitos.

E, por fim, um último elemento: o Kuduro. A morte do Nagrelha é aquele evento que nos vem mostrar que o Kuduro não é apenas um estilo musical. De algum tempo a esta parte, o Kuduro vem sendo qualquer coisa que se pode situar entre uma forma de vida, um amplo movimento popular artístico, e um estado de espírito. A morte do Nagrelha, para além de ser o momento de expressão da comoção pelos seus fãs, é também um momento de celebração da afirmação do Kuduro como o produto final de todos aqueles elementos. O Kuduro é hoje representado como um veículo de promoção social por uma imensidão de jovens que vive na marginalidade, exclusão, no desemprego, e sem esperanças de realização pessoal através dos meios socialmente convencionais. Estes jovens têm todo interesse em que o Kuduro, com todos os seus defeitos, se afirme e seja reconhecido como veículo alternativo de realização social. Portanto, o que vimos no funeral do Nagrelha pode também ter sido, por um lado, uma vigorosa declaração de intenções de afirmação do Kuduro como a pátria dos excluídos e, por outro, pode também ter sido aquilo que os americanos designariam por “backlash”, traduzindo, a “desforra”. Ou seja, e no final das contas, o Kuduro como um sentimento de “desforra” conduzido por estes jovens contra uma elite política e económica que os abandonou e os deixou entregues à sua sorte. Daí também, como movimento artístico, o Kuduro trazer sub-repticiamente uma proposta de transgressão dos códigos sociais convencionais. Não apenas em termos da linguagem, mas até na resignificacão dos sentidos que se atribuem aos lugares de exclusão e de marginalização. É aqui que  nos poderá também dizer alguma coisas sobre a sinalização da existência cada vez mais notória do drama actual do País: a separação entre a ‘elite’ e o ‘povo’”. 

*Ph.D em Sociologia. Professor Auxiliar do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto

 

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JOMO FORTUNATO *

Quem sabe surja no futuro o Kuduro sinfónico?

                                                                             Jomo Fortunato

 

O que explica o surgimento e a ascensão do kuduro?

Um aspecto a reter: as manifestações culturais e artísticas, acompanham sempre as transformações sociais e políticas em qualquer sociedade.  Há uma tipologia musical característica do tempo colonial e outra do pós-independência. O kuduro, tal como o conhecemos nas suas variantes, seria impensável nos anos quarenta, data dos primórdios da formação da Música Popular Angolana. Liceu Vieira Dias fala em meados dos anos quarenta, no filme “Ritmo do Ngola Ritmos” do realizador António Ole, como sendo a data da formação do “Ngola Ritmos”.

O kuduro, enquanto género musical, é resultado do aumento exponencial da pobreza e da desestruturação do sistema de ensino, o que resultou em arte, uma performance artística que inclui a dança e suas coreografias acrobáticas.

O cantor e compositor, Nagrelha, se estudasse os clássicos da literatura angolana e portuguesa, estamos certos que produziria outra génese de textos, a menos que a ruptura com o português europeu, fosse intencional como ocorre nos textos literários de Luandino Vieira. 

A sociologia da arte  poderá explicar a ascensão do Nagrelha, contextualizada por factores de índole geracional. Nagrelha comunica, fundamentalmente, com os seus. Estamos em presença de um artista que dialoga com o seu público, através de um sistema semiótico muito próprio, consubstanciado no calão e numa visão do mundo muito própria das periferias.   

A pesquisa sobre a origem, formação e contextualização social do Kuduro, passa pela investigação da sua pré-história, ou seja, o conjunto  de eventos anteriores à sua formação, enquanto género musical estruturado. 

No período que vai de 1982 a 1983,  houve um conjunto de ocorrências no domínio da dança, protagonizado pelos dançarinos de “break dance”, Paulo Kumba, Elvis, João Dikson e Pataca no terraço do prédio Hitachi, Bairro Alvalade, Cine Atlântico, campo de jogos dos Leões de Luanda, e nos ginásios das escolas, Mutu ya Kevela, Ngola Kanini e Ngola Kiluanji.  

Teve igualmente influência na configuração actual do Kuduro, enquanto dança, o movimento da cabetula, com os “Originais da Cabelula”, Beto Kiala e Pedruce, e o movimento da vaiola com Cifoxi e Zé Vaiola.  Estamos numa época em que os concursos de dança nas escolas eram apresentados pelo radialistas Adão Filipe e Octávio Kapapa, da Rádio Nacional de Angola, Balduíno Carlos, Ernesto Bartolomeu e Cláudia Marília da Televisão Pública de Angola, sendo justo incluir na análise da pré-história, os programas,  “Explosão” e “Horizonte”,  da Televisão Pública de Angola.

À época, a dança era mais importante que a música, e as primeiras batidas de Kuduro não tinham letra, fenómeno que surgiu depois com o surgimento do Tony Amado. Nagrelha distanciou-se da pré-história do kuduro, criando  um estilo e uma linguagem muito próprios.  

 

O que estará por detrás do kuduro e que justificará a sua força entre os jovens das periferias?

A força é geracional de uma juventude sem rumo, crescida num contexto de corrupção e de desvalorização dos quadros angolanos, que poderiam dar continuidade ou substituir a fuga de cérebros na época colonial. Estamos perante uma juventude brutalizada, distante da academia, mas que possui uma arte, à medida das circunstâncias sociais das periferias, com todas as assimetrias adjacentes e sobejamente conhecidas.

 

Por que será que o kuduro e os kuduristas atraem tanta hostilidade, ao mesmo tempo que (o kuduro), paradoxalmente, atrai muita gente às rodas de dança nas festas?

A hostilidade advém dos sectores que fazem uma leitura aparente, ou melhor, superficial e  impressionista das origens sociais e estéticas do kuduro.  As propostas do kuduro, só muito dificilmente são absorvidas pela visão do belo da velha geração.

Os gostos são subjectivos mas importa lembrar que a música ocorre quando há harmonia, ritmo e melodia. No entanto, há músicas mais harmoniosas, melodiosas e ritmadas que outras. O kuduro investe, tão-somente,  no ritmo.  Importa reter,  sem desvalorizar, os esquemas rimáticos e a dimensão satírica dos textos do kuduro.

 

É o kuduro o género musical dos sofredores?

Repare que o Nagrelha comunica com o seu público, ele não dialoga com as elites. Pergunta se é uma música dos sofredores? Talvez… o certo é que é uma vertente musical que se popularizou nas camadas sociais mais desfavorecidas, embora a sua origem do ponto de vista da estratificação social, seja híbrida.  Neste capítulo,  importa estudar com a acuidade recomendável a pré-história do kuduro. 

 

Além de estilo musical e cultural o kuduro é também um fenómeno político?

Enquanto fenómeno de massas, o kuduro é matéria-prima apetecível a qualquer político. Neste aspecto, interessa analisar os textos satíricos do kuduro. Um exemplo, dentre outros não menores, é o tema “Arroz com feijão” do “Elenco da Paz”, reparemos na letra: Só mexeram no meu prato / só picaram no meu prato / afinal é só feijão / pensaram que tinha carne / o bocado que era meu / afinal é só feijão / Meu prato do dia a dia (...), um tema interessante para uma reflexão profunda sobre a fome e a miséria.

 

O que é que Nagrelha tinha de especial e que justifica tamanha legião de seguidores e/ou admiradores?

Nagrelha é um fenómeno explosivo da cultura popular não académica. Na verdade, sempre valorizei a cultura de emanação popular, distante dos circuitos formais da academia, aliás como parte substancial das origens da Música Popular Angolana, quer a nível do canto como ao nível instrumental.

O carisma era resultado de uma conjugação de vários factores: a linguagem e a mística da comunicação do Nagrelha com o seu público, a propensão para a liderança, a assimilação de comportamentos pouco recomendáveis e a integração dos seus seguidores nas franjas marginais do Sambizanga e da periferia em geral.

 

Acredita que vai surgir um “novo” nagrelha?

Na história da arte e das sociedades, existem ocorrências previsíveis e outras não. O surgimento de uma personalidade carismática, igual ao Nagrelha, é naturalmente impossível, por uma simples razão, não existem pessoas repetíveis.

Pode ser que surja um ícone com as mesmas características, caso permaneçam as causas que estão na origem da formação do kuduro, ou seja,  as assimetrias sociais e a ausência de um sistema de ensino estruturado.  Contudo, o kuduro, enquanto género, pode evoluir para outras vertentes. Pode ser que surja no futuro, o kuduro sinfónico, quem sabe?

Sempre pensando na evolução e na refundação do género, seria interessante integrar a história do kuduro nos estudos culturais universitários, tal como já existe no Brasil com os estudos da Adriana Fancina e Hermano Vianna, em relação ao funk brasileiro, um género vizinho ao kuduro.

Julgamos ser possível estabelecer nexos periodológicos, sem preconceitos, e elevar à categoria de ensino superior, conteúdos sobre o kuduro, género musical contemporâneo de expressão internacional.

Os estudiosos da contemporaneidade musical angolana estão em condições de reunir material disperso, incluindo depoimentos de artistas e protagonistas de reconhecido mérito, sobre a história e discografia do kuduro, visando a sua sistematização e integração no âmbito dos Estudos Culturais Angolanos, de nível universitário.

A proposta de sistematização da história do Kuduro, que pressupõe um debate alargado entre investigadores e artistas, poderá analisar e dar a conhecer o estado actual deste género musical com o objectivo de encontrar consensos possíveis para a sua estabilidade periodológica, conhecer as diferentes fases do Kuduro no feminino, reflectir sobre a génese das letras das canções, aconselhar a reutilização das conquistas de Angola, ao nível da educação, saúde, construção de infra-estruturas, educação cívica, e preservação dos bens públicos nas composições musicais, numa perspectiva de associar a arte à educação patriótica.

Atenção: pelas características estéticas, rítmico peculiar e propósitos textuais,   a análise comparativa do Kuduro deve ser empreendida no interior deste género musical, pelo que se nos afigura descabido aproximar o kuduro às correntes musicais mais preocupadas com arranjos e construções elaboradas, do ponto de vista  harmónico e melódico. É urgente acabar com os preconceitos da investigação universitária no domínio da “Cultura popular”, na sua relação com as indústrias culturais.

*Investigador especializado em música popular urbana angolana

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MARIA LUÍSA ROGÉRIO*

“A voz que emergiu dos ghetos”

                                                                           Luísa Rogério

Compreendo que Nagrelha signifique pouco ou nada para algumas pessoas. Eu própria, talvez influenciada por um pseudo-elitismo barroco como diria o Raimundo Salvador, também tinha um certo olhar preconceituoso sobre o Kuduro até ao dia em que entrevistei Euclides da Lomba, salvo erro no ano de 2000.

A minha ignorância não me impediu de perceber que tinha duas opções: gostar ou ignorar! Paradoxalmente, gostava de dar uns valentes toques na roda, lá onde a intelectualidade se esvai, as estéticas etc. e tal perdem rede. Kuduro não é o tipo de música que eu coloque para ouvir em casa ou no carro, mas é o tipo de música que não me deixa indiferente.

Quando danço ao som do Kuduro, esqueço as malambas, as dores do corpo e da alma. Kuduro, como ensinou Da Lomba naquela entrevista, é mais do que ritmo dançante para o qual correntes elitistas olham com preconceito, quase com desdém. Kuduro é um fenómeno social. Por detrás da forte batida, das rimas irreverentes e muitas vezes ofensivas, do “baixo calão” e dos movimentos insinuantes, encontramos uma cultura popular. Não a cultura das definições acadêmicas nem a que nos coloca bem na fotografia do politicamente correcto. Falo da cultura que manifesta razões, formas de ser e de estar na vida.

Nagrelha é a voz que emergiu dos ghetos, rompendo a “fronteira do asfalto”, como tão bem descreveu Luandino Vieira. Obviamente, isso incomoda! Um “mussequeiro” sem maneiras a invadir-nos a casa adentro com o seu “pretuguês”? Onde é que já se viu “liambeiros delinquentes” do musseque armados em gente só porque já aparecem na televisão? Pois, é esse mesmo! Nagrelha é a voz do povo.

Se quiserem entender o que isso significa, nem que seja para criticarem com mais fundamentos, visitem o Sambizanga, o Rangel, o Cazenga e todas periferias. Depois, podem estender o caso de estudo ao asfalto. Talvez descubram a dimensão do “Comboio”. Ninguém é obrigado a gostar de Kuduro. Ou do Nagrelha. Mantenham-se à vontade na redoma do etnocentrismo cultural euro-ocidental. Isso não me incomoda, cada um com a sua identidade. Exercitar a liberdade de expressão é um direito. Respeitar a dor alheia é sinal de civilidade. Isso também é democracia!

Descansa em paz Nagrelha”

*Jornalista

 

 

 

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