terça-feira, 27 de abril de 2021

LUÍS KANDJIMBO Pela construção do cânone literário angolano




 “Alumbu – O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano - Para uma Hermenêutica Cultural”, o livro de ensaios de Luís Kandjimbo editado pela Mayamba e apresentado ao público na última quarta-feira, em Luanda, na sede da União dos Escritores Angolanos, é uma colectânea de textos que pretende inscrever-se, segundo o próprio autor, “na melhor tradição ensaística e tematizar problemáticas da cultura angolana no contexto mais geral das culturas africanas”

Isaquiel Cori

É no domínio da literatura, mais concretamente da formulação ou da interpretação das poéticas, e da Cultura em geral, onde se travam, em última instância, os grandes combates pela prevalência da ideia de identidade e de soberania dos povos. Porque na verdade tudo começa pelas ideias que nutrimos a nosso respeito, sobre o que nos rodeia, sobre donde vimos e para onde queremos ir. E é essa capacidade de geração de ideias próprias que a globalização, tendencialmente, destrói ou esmorece nas sociedades periféricas deste “vasto mundo”.

A crónica pobreza material, ao atirar as pessoas para um círculo de sobrevivência, tira-lhes a capacidade de valorizar ou priorizar o abstracto, que é a dimensão onde, afinal de contas, se estrutura o pensamento a respeito de nós mesmos, dos nosso passado e do nosso destino.

Luís Kandjimbo (LK) é um intelectual angolano que, de modo concreto, consistente e coerente, desde a década de 1980, vem publicando textos ensaísticos, em seminários, congressos ou conferências em Angola e no exterior, em publicações periódicas e em livros, onde o seu pensamento, que no princípio se circunscrevia à literatura e depois à filosofia e à Cultura, possui um leitmotiv: a perspectiva angolana e africana da análise. Para ser mais preciso, a perspectiva “endógena” da análise dos fenómenos literário e cultural angolano e africano. E para levar a cabo essa empreitada, LK, indivíduo metódico e auto-disciplinado, impôs-se a si mesmo um autodidactismo quase sem paralelo entre nós, ao mesmo tempo que foi alicerçando a sua formação académica.

A par do “endogenismo” filosófico, literário e cultural, LK, seja em palcos de debate no país ou no exterior, conforme está patente em toda a sua obra ensaística, vem travando um combate contra o “crioulismo” a que uma determinada corrente de intelectuais lusos e angolanos pretend(e)ia reduzir ou enquadrar toda a literatura e cultura angolanas.

 

Clarificar a posição

Neste livro que acaba de publicar, LK reactualiza o vários debates que travou a respeito e clarifica, mais uma vez, a sua posição: “Sendo a presença de alguns segmentos de origem europeia incontornável na sociedade angolana, o espectro da perspectiva naturalista do hibridismo ou da perspectiva multicultural de inspiração anglo-americana que pode daí derivar, influenciadas pelas soluções americanas da discriminação positiva ou affirmative action, não deve anular uma História feita de resistências contra a ocupação colonial portuguesa cujos sujeitos são as populações ou as comunidades étnicas autóctones de Angola. E os contributos de origem europeia, que não podem ser ignorados, hão-de obedecer a uma lógica endógena.”

A perspectiva endógena dos estudos de LK levou-o a propor um cânone literário angolano baseado numa definição de literatura angolana que vai muito para além do “crioulismo” e valoriza igualmente a memória ancestral africana. “(...) à angolanidade literária subjaz uma angolanidade – pressuposto que comporta uma experiência, um sistema de referências, uma memória colectiva, um sentido de passado ou história, sobre o qual assenta a estratégia dos escritores. O texto literário é assim a materialização de uma das várias modalidades possíveis da experiência angolana.”

Essa citação de LK, constante do seu livro “Apologia de Kalitangi”, é a prova da sua visão “ecumênica” do fenómeno literário angolano, ao contrário do rótulo de “fundamentalista negro” a que alguns críticos o pretendiam remeter. Evidencia esse “ecumenismo” a sua proposta de “Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”, contida em “Alumbu”, cuja introdução geral aponta precisamente para os saberes filosóficos angolanos, a geografia de Angola, a história de Angola e às línguas nacionais angolanas, passando pela discussão de “algumas questões teóricas como o conceito de angolanidade e de angolanidade literária versus crioulidade”, a problemática da língua portuguesa em Angola e a sua coexistência com as línguas nacionais, incluindo a construção do cânone literário angolano, a literatura moderna de Angola, a história da literatura angolana e a sua periodização.

Em suma, LK tira as consequências práticas dos seus estudos teóricos sobre a literatura e a cultura angolanas, propondo um programa de ensino da literatura angolana.   

Mas não se fica por aí. Um olhar ao índice do livro revela logo ao que o autor veio: “O Cânone no Campo Literário Angolano”; “O Endógeno e o Universal na Literatura Angolana”; “Outros Cânones e Novas Leituras para a Literatura Angolana”; “A Problemática do Ensino da Literatura Angolana e a Teorização Literária (...)” ; Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”; “A Literatura Angolana Perante a Formação de um Cânone Literário Mínimo de Língua Portuguesa e as Estratégias da sua Difusão e Ensino”, “Duas Gerações Literárias no Dealbar do século XX Angolano – Proposta para a História Literária”; “Angolanidade e Crioulidade: O Substantivo e a Falácia”, “A Incompletude no Processo de Disciplinarização das Literaturas Africanas”; “Kalitangi: Um Herói da Literatura Oral Umbundu”; “Para uma História do Etnónimo Ovimbundu” e “A Nação – Sujeito Colectivo, Representações do Território e Identidade Cultural”.

Quando, em 1984, em Paris, o grande Mário Pinto de Andrade foi ao encontro do jovem LK, ao fim de uma comunicação que este acabara de fazer numa conferência, felicitando-o e dizendo-lhe “Gostei da sua comunicação”, literal e “fisicamente” (se assim é possível dizer) estabeleceu-se uma linha de continuidade na definição do conceito de angolanidade que aquele intelectual ajudou a cunhar e defendeu ao longo de toda a sua vida contra a “crioulidade” redutora, e que LK se propôs a aprofundar num contexto global de erosão das identidades e dos apelos à “multiculturalidade”.

Luís Domingos Francisco, o próprio Luís Kandjimbo, nasceu na cidade de Benguela em 1960. Ensaísta e crítico literário, é membro da UEA - de que é actualmente presidente da mesa da assembleia-geral – da Academia Angolana de Letras, da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos e da Associação para o Estudo das Literaturas Africanas de Paris. Doutorado em Estudos de Literatura, mestre em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e licenciado em Direito pela Universidade Agostinho Neto, presentemente é director-geral do Instituto Superior Politécnico Metropolitano de Angola, professor nos cursos de pós-graduação da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto e da Academia de Ciências Sociais e Tecnologias e investigador do Instituto de Estudos Literários e Tradição da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

Tem várias obras publicadas, desde 1988 quando publicou “Apuros de Vigília” (ensaios), sendo as mais recentes “Ideogramas de Ngandji” (ensaios, Triangularte Editora, 2013) e “Acasos & Melomanias Urbanas” (estórias, Editora Acácias, 2018).

O conjunto da sua obra estende-se pela poesia, o conto e o ensaio. Nos últimos anos surpreendeu a todos quando se apresentou publicamente como músico-guitarrista, actuando ocasionalmente para plateias selectas.

 

“ENTRE A LUA, O CAOS E O SILÊNCIO: A FLOR”: Antologia de poesia angolana com edição alargada

                                                           CAPA DA EDIÇÃO DE 2021
 

A antologia de poesia angolana “Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor”, organizada por Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira (Mayamba, 2011)  acaba de ganhar uma segunda edição revista, alargada e actualizada, com chancela simultânea da editora angolana Mayamba e da portuguesa Guerra e Paz. Em Portugal o livro já está em circulação, em Angola o Jornal de Angola só conseguiu apurar que está para breve

 

Isaquiel Cori

 

A antologia inclui “formas de arte verbal ou oratura” com poemas recolhidos das tradições Kikongo, Kimbundu, Kwanyama e Umbundu e os primeiros documentos literários  (poéticos), que remontam ao século XVII. Os precursores José da Silva Maia Ferreira, Cândido Furtado, Cordeiro da Mata, Pedro Félix Machado, e outros, que produziram no século XIX, têm igualmente os seus poemas referenciados. O grosso dos poetas (e seus poemas) está, obviamente, recenseado sob o capítulo “Modernidade e Contemporaneidade – Continuidades e Descontinuidades Séc. XX-XXI). Estes são, enfim, os poetas do nosso tempo. Organizados alfabeticamente, estão aí Abreu Paxe, Adriano Botelho de Vasconcelos, Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Amélia Dalomba, Ana Paula Tavares, António Pompílio, Conceição Cristóvão, Gonguita Diogo, João Tala, John Bella, José Luís Mendonça, José Eduardo Agualusa, Lopito Feijó, Manuel Rui, Manuel António, Ondjaki, Sapyruka… Para atestar da abrangência dos poetas antologiados, desafiamos o leitor a pensar num poeta angolano qualquer, de qualquer geração, e apostamos que estará certamente neste livro de mais de mais de 600 páginas. Estamos a falar da edição publicada em 2011.  

 

Modificações profundas

Irene Guerra Marques disse ao Jornal de Angola que a nova edição sofreu profundas modificações em relação à de 2011, pois trata-se de uma edição revista, acrescentada e actualizada.  “As alterações introduzidas dizem respeito à inserção de novos dados, novas informações, novas notas explicativas e novos poetas que contribuíram para o alargamento do corpus”.

Ainda segundo a investigadora foram respeitadas as grafias originais (sécs. XVII e XIX), bem como as traduções em língua portuguesa. “Como novidade esclarecemos a questão da autoria de um poema do séc. XVII, considerado no anonimato até agora. A Introdução foi alterada com vista ao fornecimento de mais informações sobre as gerações que integram a antologia e o prefácio é de Francisco Soares, especialista em literatura e estudos literários”.

A inclusão de poetas do século XXI, que o crítico literário João Fernando André considera como pertencendo à Geração da Insana Idade, marca igualmente a diferença em relação à edição anterior.

Carlos Ferreira, co-organizador, igualmente contactado por este jornal, reiterou a existência de diferenças substanciais entre as duas edições. “No domínio dos autores lembro o acrescento de Carlos Pedro, Job Sipitali e Helena Dias, entre outros”, afirmou, acrescentando que a revisão de todo o trabalho foi bastante melhorada, pois “a edição de 2011 tinha bastantes erros, fruto de uma falta de revisão aturada”.

A segunda edição  da antologia Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor” só foi possível, segundo Carlos Ferreira, graças à empresa DST, que a patrocinou.

 

Dupla chancela

“Esta nova edição que é da Guerra & Paz editores, mas também da Mayamba, tem mais cerca de 70 páginas e alargou a poetas contemporâneos o arco temporal coberto pela antologia. A capa, o layout do miolo, são completamente novos. Usámos, a pedido dos organizadores, ilustrações do Mestre José Rodrigues, mas optámos por uma imagem diferente da que se usou na edição de 2011, escolhendo uma imagem mais feliz e optimista - a de 2011 tinha como símbolo mais forte a lágrima - e mais cósmica, com sol e lua, o que joga com o título da antologia”, explicou Manuel Fonseca, responsável editorial da Guerra & Paz. “Por outro lado, pintámos à mão as três faces do miolo, num tom ‘bordô’ que casa com o bordejamento da mesma cor da capa e da contracapa. Julgo que fizemos um trabalho decente, porque a recepção tem sido muito boa”, completou.

O Jornal de Angola tentou contactar a editora Mayamba, na pessoa do seu responsável Arlindo Isabel, para, entre outros aspectos, saber quando a nova edição de Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor” será posta a circular em Angola, lamentavelmente sem sucesso.


                                                          CAPA DA EDIÇÃO DE 2011

 

POETA LOPITO FEIJÓ: “A poesia e de um modo geral a literatura salvaram-me”

 


O poeta e crítico literário Lopito Feijó recebeu na última quarta-feira, em Luanda, o galardão do Prémio Guerra Junqueiro das mãos da curadora Avelina Ferraz. Não cabendo em si de satisfação, Lopito Feijóo concedeu dias depois ao Jornal de Angola a entrevista que a seguir se publica, onde fala do seu percurso poético e de vida. O poeta assume-se como defensor de todas as “justas causas” e confessa que a poesia, e de um modo geral a literatura, são responsáveis por continuar vivo

 

Isaquiel Cori

 

O Prémio Guerra Junqueiro é para si um momento alto de consagração da sua carreira literária? 

Eu nunca me propus fazer carreira alguma, nem sequer pensei em fazer carreira literária, mas, sempre pensei ser um escritor e, mais concretamente, um poeta.  Na verdade, não me simpatizo muito com a palavra carreira. Acho-a pouco “palavra”, ou mesmo direi, pouco poética. Palavra para mim tem que ser ou tem que ter um mínimo de poeticidade. Eu suspeito e duvido muito da densidade e consolidação de algumas ditas carreiras em todas as áreas das sociedades. Até porque a mídia e as redes sociais hoje promovem tudo e mais alguma coisa, muitas vezes sem critérios meritórios.   

Entretanto, reconheço que a atribuição do prémio em referência ao escritor que sou, constitui um dos mais sublimes e singelos momentos da minha vida artística, pois é o reconhecimento de pouco mais de 40 anos de vida artística e literária.     

  

Publicou várias obras em Portugal, onde vai regularmente a festivais literários e em Moçambique é dos escritores angolanos mais conhecidos. No Brasil em determinados meios literários também é conhecido, tal como em Cabo Verde e na Guiné Bissau. Tudo isso graças a um esforço pessoal?  

Sim. A resposta está dada. Tudo isso graças a um esforço pessoal com muitos sacrifícios espirituais e até materiais, pois uma internacionalização de vida literária implica pesados custos ao orçamento doméstico do simples, humilde e pobre cidadão amante das letras, num contexto político e social onde as questões espirituais e os motivos de prestígio ainda são subalternizados e não valorizados pelos departamentos governamentais “a quem de direito”, como se diz popularmente. Não queiras saber nem imaginas quanto tenho gasto ou já gastei para a promoção da literatura e da cultura angolana além-fronteiras.  São milhares de divisas cujo retorno vai surgindo paulatina e progressivamente no âmbito de um acumular de prestígio para nós, para a cultura angolana e para a nação e o povo angolano em geral… mesmo sem os necessários apoios e reconhecimentos oficiais do Estado.     

  

Como é que um menino que cresceu no Cazenga acaba por estar no centro de movimentos literários como a Brigada Jovem de Literatura e o OHANDANJI? 

Esta pergunta merece uma resposta deveras quilométrica. Entretanto, vou em poucas palavras dizer que tudo acontece e vai acontecendo com base em princípios fundamentais que norteiam a minha postura social.  A humildade, a simplicidade, o foco, o desprezo pela vaidade, o desprezo pelos motivos de poder como os cargos e encargos disso e daquilo e outros quejandos. O amor ao próximo e o respeito pelo “outro”, vivendo e convivendo intensamente um dia após o outro, pois, como também tenho dito, o futuro é coisa dos deuses e o meu futuro hoje já é presente.    

  

Nos anos 80 os escritores da sua geração tinham plena consciência de que faziam a ruptura e que eram agentes de uma transformação histórica na literatura angolana?  

Definitivamente ganhei consciência de que estava num processo de ruptura com o passado quando, em companhia de alguns outros confrades brigadistas vimos a necessidade, e tivemos a oportunidade, de romper   publicando em 1984 o manifesto estético-literário OHANDANJI, do qual resulta a poética que ainda hoje cultivamos e que continuamente nos vai consagrando. Quero dizer que tudo o que fizemos e ainda vamos fazendo, foi feito e continuaremos fazendo conscientemente. Com carma, alma e sempre mais carma. 

  

Eram muitos os que escreviam naqueles anos, hoje sobram poucos. Muitos perderam o entusiasmo pela escrita, uns foram levados pela morte ou arrastados por outras correntes da vida. Quer evocar nomes, coetâneos que injustamente estão esquecidos mas que foram importantes no percurso da vossa geração?  

Esquecidos? Não existem ou não conheço. Existem sim os de pouca entrega e como tal menos divulgados pela comunicação social em razão do muito pouco dinamismo das suas acções, pois poucos são os que sabem que o trabalho do qual resulta a afirmação artística implica entrega, coragem, sacrifícios do corpo, e simultaneamente, da alma, e fundamentalmente persistência, insistência e consciência. Olha que nem todos os humanos e jovens estão predispostos a suportar a maledicência, a intriga, a inveja e, não raras vezes, a calúnia que grassa no mundo das artes, das quais a arte literária não escapa. Portanto, os que se afirmaram e se vão consagrando o fizeram e vão fazendo com vontade e entrega pessoal. Os esquecidos, esqueceram-se e basta, pois são fortes os que se demarcam e se distinguem no âmbito da história universal.    

 

Como é que o Lopito foi a deputado? Nos dias de hoje como é que considera aquele período da sua vida: um parênteses na sua carreira literária?   

Num dos momentos mais difíceis e conturbados da vida dos angolanos a mãe pátria fez um chamamento ao qual respondemos afirmativamente, representando no parlamento, em razão da nossa representatividade e popularidade, o partido que achávamos estar em condições de melhor dirigir e conduzir o destino e os desígnios de todos os angolanos sem distinção e que, era naturalmente, o partido que estava no coração da maioria dos angolanos, tal como ficou provado nas urnas daquela altura. Entretanto, passaram-se 30 anos e a realidade sócio-política cambalhotou.  Mudaram-se os tempos, os templos, as vontades e as verdades e também as imprevistas vantagens. A poesia  e a literatura, de uma maneira geral, salvaram-me. Vi os propósitos que tinha cambalhotarem e fui salvo justamente por nunca ter feito o tal interregno ou parêntesis, de que me falas,  na minha vida literária.    

 

A rebeldia é muito associada à sua escrita e foi uma das razões invocadas para lhe darem o Prémio Guerra Junqueiro. Essa qualidade é que o torna tão popular entre as novas gerações de escritores?  

Sim. Quero crer. Sem vergonha de ser o que sou e como sou, faço por ser um patriota, um ser vertical, sempre com um olhar circunferencial olhando para a frente, para trás, para os lados, para cima e para baixo para não pisar ninguém mesmo sem saber. Faço por ser o mais honesto possível, frontal, coerente, correcto, claro e conciso. Apoiando sempre os jovens ávidos do saber e com vontade de aprender. Tendo também os meus defeitos, reconheço em mim algumas das qualidades do escritor Guerra Junqueiro, que foi também um grande tribuno. 

 

Sente que a novíssima geração de escritores é portadora de algo realmente “novo” na literatura angolana?  

Pretendo ser prudente, para depois não voltarmos a falar nos “injustamente esquecidos” pela história. Existem referências e indícios de uma certa pujança autoral no domínio das letras, mas isso só não basta. Vamos dar tempo ao tempo porque nisto de afirmações  e consagrações artístico-literárias, como dizia Rilke, um ano não conta e dez são o mesmo que nada. Os jovens literatos têm na sua frente todo o tempo para nos mostrar que estão em condições de saltar as barreiras do seu próprio tempo.  Nada de pressas, apesar de que também já as tive. 


 

 

Os seus últimos livros pretendem enunciar poeticamente uma “doutrina”, o que aliás vê-se logo pelos títulos. Quais são os preceitos dessa doutrina? Qual é a lição ou a sabedoria que sintetizou da vida e quer passar aos leitores?  

Doutrina é algo que arquitectei e que venho construindo há mais de três décadas, por isso, os preceitos dela não cabem no espaço desta conversa. Brevemente será publicado um livro de estudo com mais de duas centenas de páginas da autoria de um historiador e crítico literário espanhol, onde tudo será explicado para a fruição, compreensão e governo dos nossos leitores.  

  

A sua poesia é altamente política, na medida em que além da crítica social chega a questionar o próprio sistema político. Sente que a sua palavra é lida, é ouvida, no sentido de ser tida em conta?  

Sinto sim! Sou lido. Sei e constato que os meus textos de intervenção estão na boca e na mente do povo que calcorreia as ruas, vias e vielas das nossas cidades. Tenho sido abordado constantemente pelas pessoas que recitam, dizem e me lembram de alguns versos e poemas meus. Assumo-me como um autor engajado na defesa de todas as justas causas e constato que, entre nós, grassa ainda excessiva injustiça em todos os domínios da vida. Desde o social ao económico passando pelo jurídico. Nunca misturo a política, pura e dura, com a poética identitária, embora reconheça que toda a boa e grande poesia é poesia de amor, doutrinária, popular e revolucionária e, assim sendo, acaba por ser política. 

  

Quando olha para trás, para a sua obra, conclui que usou as palavras certas para dizer as coisas certas? Ou sente que seria capaz de reescrever tudo ou quase tudo?  

Tudo o que falei e escrevi está falado e está escrito. Nunca me arrependi de ter dito ou ter escrito o que disse e escrevi. Filosoficamente aprendi que há sempre um lugar para cada coisa, por isso eu não suporto ver coisas, sejam lá quais forem, fora do lugar e, principalmente, irrito-me sempre que descubro qualquer palavra fora do lugar em que devia estar, no âmbito do trabalho oficinal, porque as palavras devem sempre significar e representar as coisas e os sentimentos certos, mesmo quando são usadas em sentido figurado  no âmbito dos exercícios de versificação. Resumindo, direi que do ponto de vista conteudístico ou ético jamais mudaria uma ideia ou um pensamento mas, na minha condição de experimentalista, sempre que tiver que mexer na estética ou forma dos textos, não hesitarei porque, como dizia o poeta Vinícius de Moraes,  certamente,  a beleza é fundamental e devemos sempre abrir os olhos para a beleza, pois ela, de acordo com o oráculo de Ifá, acompanha as coisas boas. Estou certo ou estou errado? 

  

Actualmente tem uma dedicação completa à escrita? Considera-se um escritor profissional? 

Sim, actualmente vivo a literatura 24 sobre 25 horas por dia. Tirando a Aminata [a esposa], a poesia foi, é,  e sempre será, a minha maior paixão. É por ela e com ela que morrerei e disso não tenho dúvidas. Considero-me um simples e humilde aprendiz de poeta. Um eterno trabalhador e batalhador pela palavra poética.  

  

 






 

AMÉLIA DALOMBA: “Ao poeta é imprescindível a liberdade”



Natural de Cabinda, Amélia Dalomba é oriunda de uma família muito ligada às artes. Poetisa e declamadora, ela também é compositora, intérprete e artista plástica. Na entrevista que a seguir se publica, a poetisa fala, essencialmente, de poesia, muito a propósito do Dia Mundial da Poesia que hoje se assinala

 

Isaquiel Cori

 

É poetisa a tempo inteiro? Ou só nas horas livres?

A poesia é composta de tudo. Haverá poetas pela metade?

 

Há quem diga que ser poeta vai muito além de escrever poemas, é uma atitude, uma certa maneira de sentir e olhar a vida e o mundo...

Vai para além da escrita. Os sentimentos não cabem nas palavras. O poeta é. É na forma como desencrosta o sentido do instante que descreve nas parcas palavras que lhe oferece a linguagem.

 

Como é que alguém se torna poeta? Como é que a Amélia Dalomba se tornou poeta?

Diziam os antigos: “É preciso dom. O poeta nasce”. Não sei como se torna poeta, só sei que é imprescindível a liberdade. Apenas adoro caçar momentos e partilhá-lhos através das várias formas de comunicar com os outros, as percepções que não me escapam. Sou uma aprendiza permanente da vida de fazer acontecer o que gosto quando Deus permite. Se isso é ser ou estar poeta, por instante que seja, que fazer senão ajoelhar e rezar?

 

Além de uma sensibilidade apuradíssima o poeta tem de ser, naturalmente, versátil no domínio da língua. Que outras valências deve ter um poeta?

A versatilidade no domínio da língua em que fala, raciocina, ouve, escreve é fundamental. O essencial é a forma como lapida a palavra em uma hermética poética que faça e toque o leitor. É preciso cultivar a leitura de tudo o que o rodeia, com sentido de intervenção, olhares próprios de interrogação, vírgula, ponto final e exclamação, na denúncia, elevação e protesto, ser um factor válido nas mudanças que quer ver no universo; a consciência de quem sabe que nada sabe, parafraseando o filósofo. Estudar para além dos livros. Ser eterno estudante dos fenómenos existenciais.

 

Em muitos contextos sociais há a tendência de se encarar o poeta como um aluado, alguém com pancada. O que se passará? Qual a razão dessa percepção?

A abstração ajuda a construir cenários onde o palco da imaginação desliza. É o bom momento de liberdade criativa. É poder estar entre uma multidão aos gritos e manter o mastro hirto da racionalidade poética e das emoções abrasadoras. O que poderá suceder é a falta de controlo da ansiedade que o tumulto de impressões acarreta em si. Por isso a meditação diária permite e dita as regras aos pensamentos desconexos, sensações, excessos de informações, enfim… Nada como um bom exercício meditativo, terapêutica do sono e relaxamento mental e físico. Jamais declarar guerra às suas percepções psicossomáticas enquanto medita, recita um mantra ora ou simplesmente incida em pontos que voluntária ou involuntariamente a psique o leve. Às vezes é bom deixar-se levar como canta Zeca Pagodinho. Na dita “loucura” não poderá haver um instante de felicidade, uma fuga ao chão de terra, do que se supõe ser regra do politicamente correto, de certas máscaras subjetivas?

 


Como é que o seu olhar de poeta vê esta Angola de hoje?

Apesar de algumas conquistas, Angola não é ainda a que muitos de nós sonhamos e nos batemos por ela, até com a própria vida. Não estou a cobrar à mangueira para que nos dê laranjas, parafraseando o poeta António Jacinto e recordando Agostinho Neto, quando disse “O mais importante é resolver os problemas do povo”.

 

A poesia pode ter um papel no desenvolvimento de Angola? Como?

Há algum povo apartado da cultura? A arte e cultura de um povo é o que permanece ao longo dos séculos gerundiando aportes que o desenvolvimento humano, social e tecnológico deve conservar e aprimorar com bases sustentáveis às necessárias soluções para erradicar a miséria e elevar o bem-estar sócio-económico, político e humano. A cultura é a transformação que o ser humano faz com a natureza, segundo o professor Abreu Paxe, “como a transforma desde os mais pequenos detalhes.” Agora é preciso que haja em África a implementação séria de políticas de conservação e divulgação com programas sustentáveis de aproveitamento, engrandecimento e dignificação da cultura do homem africano inserido no património imaterial da humanidade. E que se cumpram os programas de desenvolvimento humano, muitos deles tão adiados, como a liberdade.

 

A liberdade inscrita na Constituição está adiada? O que falta então para que o seu pleno usufruto seja um facto?

Agradeço pela pergunta. Até os pássaros no seu voo invejável para algum lugar podem ser alvejados por algum caçador!... Nas conquistas a preservar em Angola a Constituição vem logo à baila, principalmente os artigos 40 a 50 sobre a Liberdade. Mas, agir com base nela, são outros quinhentos, pois temos assistido a variadas caneladas, por essas avenidas a fora, aos direitos fundamentais. Mas, estar no caminho não é só colher flores silvestres, há bastante espinho também. Tomara que ela esteja nas nossas consciências permanentemente por forma a evitarmos alguns desaires. A Constituição não é estática. Pode ser alterada ao longo dos percursos e é o que vamos assistir dentro em breve, segundo proposta do nosso chefe de Estado e do Governo João Manuel Gonçalves Lourenço.

 

O livro que vai publicar em breve vai centrar-se em que temáticas?

Prefiro não entrar em pormenores mas não será apenas poesia. São trabalhos de algum tempo a esta parte. Se Deus quiser, no momento certo, com certeza que serás o primeiro a receber um exemplar e a comprar outro… [Risos]

 

Amélia Dalomba é, certamente, uma das maiores declamadoras angolanas. A declamação é uma arte autónoma da poesia? Ou ambas são indissociáveis?

Agradeço o cumprimento e a classificação positiva ao que adoro fazer, que é declamar entre tantas outras vozes. Mas, sou um simples instrumento e quantas vezes falho em um projeto cósmico que me transcende, para partilhar cada palavra que o encanto da poesia gera. É preciso gostar do que se faz. E eu gosto. A declamação é autónoma. Não é preciso ser poeta para declamar. A voz, Deus dá, canta o fado. Os trovadores sabem bem disso. A poesia quer trova e os primeiros instrumentos na arte de declamar são a voz e o ouvido e coração de quem sente e escuta.

 

Como outros poetas, encontrou nas redes sociais uma plataforma de difusão dos seus poemas. Os poemas que aí publica são instantâneos ou têm o mesmo trabalho de depuração dos que publica em livro?

São instantâneos também. Poesia, crónicas minimalistas do quotidiano. A pandemia e o confinamento acabaram por empolgar a necessidade de visitar as janelas das redes sociais com mais frequência. Pertenço a alguns grupos de poetas e escritores, pintores, músicos, familiares, amigos e leitores. Queremos saber uns dos outros. Até por uma questão de saúde mental. Divulgo muitas vezes o que já tenho em livros mas, com frequência instantaneamente, no aconchego da memória, falando com os meus botões... [Risos] Muitas vezes precisamos de um ouvido, do olhar de gente que comunga os mesmos gostos e desgostos. Tenho aprendido muito. Mas tudo é cíclico. Nem sempre consigo partilhar minha chikuanga, meu micate... Então partilho o que escrevo e colho o que outros me vão dando. Sabes bem que a poesia é de comer. Poesia é o conduto no funje de jiboiar e com gindungo pelas entrelinhas xinguilar um bocado. Andamos à chuva de sensibilidades alheias e quantas delas escondidas sob um perfil falso. Enfim: andamos à chuva…

 


Indique-nos, por favor, cinco poetas de sua eleição e por que razão são especiais para si?

Poetas da quintessência universal. Deus é O Poeta. Depois os poetas da quintessência dos universos com vida, Jesus Cristo, Mãe Maria, Buda - Siddhartha Gautami, Hermes Trismegistu, Shirdi Sai Baba, Maomé, Dalai-Lama, Kardec, Luís de Matos e tantos outros... São especiais por haverem criado o sol na noite e a lua ao meio-dia, para que pudéssemos, de formas muito mais elevadas, alimentarmos as nossas energias e valências cognitivas mais proactivas.

 

No geral, indicou poetas da metafísica, relacionados com a transcendência. E quanto a poetas do quotidiano, da realidade empírica, mais existencial?

Indiquei os poetas primeiros, que recheiam em cada dia conteúdos novos aos meus sentidos, incontornáveis na arte de amar, perdoar e despertar a humanidade ao bem comum. Que sentiram o chão agreste, o sabor do sangue nos lábios e no coração as lanças dos “patrulheiros poéticos” da existência, que, há mais de dois mil anos, mudaram tão pouco a essência e a índole. As parábolas pela grandiosidade do Sermão da Montanha, de Salomão a David. A poética do amor que não morre. Da revolta, denúncia, luta, vida, dor e morte. Talvez consideres ascético demais citá-los, mas sou nada sem eles. Adoro os poetas da antiguidade e da contemporaneidade que exaltam a consciência identitária da humanidade, a igualdade e a justiça social no respeito pelas diferenças raciais e de classe. Nada como poemar em prosa e verso, quando o corpo arrasta uma alma que padece pela insensibilidade da espécie humana. Apenas um terço do que das leituras comparadas estou a fazer entre poesias libertárias a nível mundial: “Outrora, vias coqueiros e escrevias: ‘Pinhos’. Hoje, sob os pinhais, um vento corre de África sobre o teu pensamento” – Mário António de Oliveira. Manuel Alegre: “É justo que me fales de Hiroxima. Porém tu nada sabes deste tempo longo… Ai tempo onde a palavra rima com a palavra morte em Nambuangongo”. Manuel Rui Monteiro: “Não fui navegador embora me quisessem em vários continentes em que sempre estive e disse nunca para que naufragasse minha história com o peso das grilhetas amarrado aos oceanos e epitáfios, não conheço.” José Marti: “A liberdade custa muito caro e temos ou de resignarmos a viver sem ela ou de nos decidirmos a pagar o seu preço”. Nekrassov: “…Por minha terra natal eu vaguei antes… Eu construo castelos no ar! O espírito do homem opta por muitas maneiras de frustrar todas as minhas esperanças…” Viriato da Cruz: “Pelo teu regaço minha mãe, outras gentes embaladas à voz da ternura ninadas do teu leite alimentadas de bondade e poesia… Em nós outros, teus filhos, gerando, formando, anunciando o dia da Humanidade”. Amílcar Cabral: “Não me fujas Poesia. Quebra as grades invisíveis da minha prisão, abre de par em par as portas do meu ser…Toma os meus braços para que abrace a vida. A minha poesia sou eu”.

É empolgante rever como somos produto de um testemunho que conflui e engrandece “o nosso tijolo nos alicerces do mundo”, como escreveu Agostinho Neto.

 

Acredita que exista uma poesia especificamente no feminino? Quais seriam os traços dessa poesia?

É claro que a identidade do género fica sempre marcada no que produzimos. As narrativas poéticas não fogem à regra. Questões biológicas humanamente femininas e masculinas ficam explícitas muitas vezes. É claro que não podemos fugir de nós próprios. Podemos ajuizar que uma determinada poesia seja de uma mulher ou de um homem? Cuidado! Olha que o poeta é mesmo um fingidor. “Que finge tão sinceramente as dores que deveras sente”, segundo Fernando Pessoa. Daí podermos ponderar muito a análise de identificação de género à literacia de um autor sem que o conheçamos? Há poeta de mulher e poeta de homem, dizia o meu bom e saudoso amigo, poeta e declamador Grande Menezes! Que importância tem agarrarmo-nos ao azul e cor-de-rosa de um autor se as obras falam mais do que se diz ser e de quem as produziu?

 

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Livros publicados

 

Entre outros títulos Amélia Dalomba publicou os livros: “Ânsia”, poesia, UEA, 1995; “Sacrossanto Refúgio”, poesia, Edipress, 1996; “Espigas do Sahel”, poesia, Kilombelombe, 2004; “Noites Ditas à Chuva”, poesia, UEA, 2005; “Aos Teus Pés, Quanto Baloiça o Vento”, poesia, Zian Editora, Brasil; “Sinal de Mãe nas Estrelas”, poesia, Zian Editora, 2007; “Nsinga, O Mar No Signo do Laço”, infanto-juvenil, Mayamba Editora, 2011; “Senhor, Há Poetas no Telhado”, poesia, UEA, 2015.

Tem poemas publicados em antologias em Angola e no estrangeiro. 

 

 

 

 

 

 

 

 

ROMANCE O IMPÉRIO KASSITUR, DE F. TCHIKONDO: Sonhar o futuro




Isaquiel Cori

O romance “O Império Kassitur na Dinastia Sekele”, de F. Tchikondo, editado pela União dos Escritores Angolanos, é a saga da família Sekele ao longo de várias gerações, abarcando o período de 1992 a 2070. Nesse longo lapso de tempo a família constrói o Império Kassitur, um muitíssimo bem sucedido grupo empresarial do sector turístico.

A narrativa, que estrategicamente resulta do relatório de um grupo de estudiosos encarregado, em 2150, de pesquisar a história dos Sekele, põe o leitor diante de um admirável mundo novo, em que a Física quântica enfim triunfou e concretizou-se na vida quotidiana através da informática quântica, da indústria quântica... Foram construídas pistas magnéticas por onde “trafegam viaturas de levitação dos mais variados modelos e potências e os mais modernos transportes movidos a electricidade, comandados por computadores quânticos, que enchem essas avenidas com os seus movimentos suaves, silenciosos e precisos”.  No deserto do Namibe funciona um sistema de lançamento para viagens a Lua e a Marte. Há liberdade sexual e a poliginia e a poliandria estão de “mãos dadas”. A sociedade é dominada pelas mulheres, que “ultrapassaram os homens em conhecimento, riqueza e liderança”. A educação e todas as “unidades das crianças” estão entregues a instituições públicas... A democracia subsiste completamente transformada: os partidos políticos extinguiram-se e reina um sistema dominado pelos grupos empresariais.

Mas desengane-se quem pensar que neste (naquele) mundo tudo é perfeito: a expansão do sistema quântico de comunicação por telepatia está a enfrentar dificuldades por causa de “doenças primitivas” como o coronavírus e o “mbumbi” em algumas localidades e de algumas pessoas que ainda não se libertaram dos preconceitos e acreditam no feitiço. E a criminalidade é uma realidade. “Os investimentos na indústria humanóide cresceram como resultado de especulações nas bolsas de valores”.

Angola é imaginada como “um dos principais destinos de investimento económico e de aplicações financeiras provenientes de todo o mundo”; “um sem número de empresas e homens de negócios deslocalizaram-se dos países ricos e desenvolvidos e vieram para Angola salvar o que restava das suas marcas e das suas imensas fortunas. Depressa alcançaram o sucesso”.

A narrativa é surpreendentemente ágil, envolvente, o que torna a leitura prazerosa e deixa o leitor à mercê do ritmo e do desenrolar da história, que é servida por uma urdidura engenhosa. Alguns dos momentos de maior dramaticidade estão centrados nos diálogos, bastante profundos e analíticos. É através dos diálogos que alguns personagens ficam marcados na memória do leitor.

Apesar do romance abarcar um período que vai até daqui a 150 anos, em que “fatalmente” haverá enormes transformações na língua portuguesa falada em Angola, o autor optou por uma linguagem que privilegia a comunicabilidade com o leitor actual, a quem são dadas as novidades “incríveis” do novo mundo. O romance  “O Imperío Kassitur na Dinastia Sekele” é, em primeiro lugar, um hino à liberdade de imaginação e de criatividade. Sonhar não é proibido.

 

ESCRITOR F. TCHICONDO “No futuro também haverá sociedades de conflito”



F. Tchikondo, pseudónimo literário de Francisco Queirós, o actual ministro da Justiça e Direitos Humanos, acaba de lançar (22/12) o romance “O Império Kassitur na Dinastia Sekele”, uma ficção no verdadeiro sentido da palavra, pois narra, em grande parte, uma sociedade ainda inexistente e, que, convenhamos, mesmo que não venha a existir poderia ter existido... O livro, que conta com um prefácio assinado pelo romancista Boaventura Cardoso, tem a chancela editorial da União dos Escritores Angolanos. O Jornal de Angola foi ao encontro de F. Tchikondo e com ele teve a conversa que a seguir se transcreve

 

Isaquiel Cori

 

F. Tchikondo trata-se de pseudónimo ou de heterónimo?

É nome mesmo, da minha avó que se chamava Albertina Tchikondo. Uso o nome Tchikondo não apenas para a homenagear, porque ela teve uma influência muito grande na minha educação, mas também porque as autoridades coloniais portuguesas não a registaram com esse nome. Aliás, nem registaram o meu pai como filho dela, o que é muito estranho, são atitudes coloniais inexplicáveis. O meu pai é filho de mãe incógnita. Então uma maneira de tornar o nome da minha avó conhecido foi passar a usar o nome dela como meu pseudónimo literário.

 

Como é que o romance “O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele” começou na sua cabeça? Surge primeiro como uma história, com os personagens a ganharem contorno, ou como uma tese?

Surge de uma preocupação. Nós temos uma determinada realidade, económica sobretudo, que tem as suas características próprias... Tem uma informalidade que me preocupa, porque a forma como estamos a geri-la pode perpetuá-la em vez de a combatermos. Fiz o mestrado em ciências jurídico-económicas e a minha tese, que aliás está publicada, foi exactamente sobre economia informal. Isso trouxe-me algumas preocupações, saber como será a economia daqui pra frente, como é que Angola com estas características económicas se poderá transformar numa Angola altamente desenvolvida economicamente, por um lado. Por outro, como é que as pessoas que vivem neste ambiente económico conseguem desenvolver a sua actividade empresarial e atingir níveis elevados de sucesso ao ponto de poderem criar verdadeiros impérios económicos. Então imaginei a história de um angolano normal, um cidadão que aos 9 anos fica órfão de pai e mãe, que morreram numa mina. Ele e a irmã salvaram-se, ele fica praticamente abandonado no mundo, aqui em Luanda torna-se menino de rua e passa pelas vicissitudes todas. A adolescência dele também é muito caracterizada pela vida na rua, tal como a juventude. É na juventude que ele começa a lutar para conseguir uma vida melhor. Entretanto tem uma relação com a mulher, com quem tem uma filha. A sua preocupação passa a ser dar uma boa vida à filha. Então começa a tentar ter sucesso económico...

 

... Não vamos contar a história aos leitores potenciais, deixemos que leiam o livro. O Império Kassitur é uma empresa, ou melhor, um grupo empresarial. Qual é o objecto social da Kassitur?

É um grupo empresarial de muito sucesso. O seu objecto principal é o turismo. Kassinda Sekele fundou a empresa com base no nome dele e no objecto social. A aglutinação de Kassinda e Turismo dá Kassitur. A empresa depois tem um sucesso enorme na conjuntura em que ele viveu, de 1992 pra frente.

 

A narrativa, pelo artifício adoptado pelo autor, é feita em 2170. Pressupõe-se que em Angola se terá chegado a uma sociedade em que a democracia funciona sem partidos políticos, substituídos por empresas. É este o sonho que o escritor tem para a sociedade angolana daqui a 150 anos?

Não diria um sonho. Talvez uma projecção da Angola que existirá dentro de 150 anos. Aliás, há três perguntas a que tento dar resposta através desta narrativa. A primeira é como será Angola daqui a 150 anos, a segunda é como chegaremos a essa Angola e a terceira como as pessoas que viverão daqui a 150 anos olharão para nós que vivemos agora. É um exercício que implicou usar a ficção científica para explicar os avanços tecnológicos e científicos que acontecerão necessariamente. Mas também foi necessário usar a imaginação para, partindo dessa realidade, da tal economia muito informalizada, etc., como é que a economia poderá tornar-se altamente desenvolvida, mas também como é que evoluirão os outros aspectos sociológicos, como é que a vida será do ponto de vista dos relacionamentos conjugais. Por exemplo, hoje já se nota uma tendência para o abandono do modelo antigo; o modelo conjugal que temos agora já vem de há séculos e vai sofrendo evoluções. Como será daqui a 150 anos? E do ponto de vista cultural como é que as pessoas pensarão? Porque os modelos, as referências, também evoluem, não são estáticas. Foi preciso fazer um exercício de imaginação, partindo de uma dada realidade actual mas também do histórico passado, e ver qual a linha de evolução que nos poderá conduzir a uma Angolade daqui a 150 anos.

 

Sendo o autor também membro do governo, portanto investido de altas funções políticas, e sendo que escrever um romance implica devanear, “andar nas nuvens”, F. Tchikondo fez uso de um interruptor mental que accionava enquanto ministro e depois desligava quando passasse à condição de ficcionista?

Não é difícil conciliar. Só é preciso ser organizado. No espaço das 24 horas do dia dá para fazer muita coisa. E depois há o espaço da semana, do mês, do ano, a vida... Dá para fazer política e aquilo de que se tem vocação, talento. E também dá para ficar com a família e os amigos. Enfim, dá para muita coisa se a pessoa for organizada. A literatura para mim aparece como um momento em que tenho espaço livre na minha mente. 

 

A razão da pergunta é que tendo o seu romance uma componente de ficção científica o devanear é maior do que se fosse um romance realista, o grau de abstracção é maior...

Este romance não é só ficção científica. A parte sobre o desenvolvimento científico e tecnológico é mesmo ficção científica e tive que me apoiar naqueles que estudaram Física. Estudei um autor, Michio Kaku, americano de origem japonesa, professor da Universidade de Nova Iorque. Li dois livros dele sobre Física.

 

Isso no quadro da preparação para a escrita?

Sim. Para fazer uma projecção para Angola daqui a 150 anos eu tinha que escrever e colocar o leitor a pensar como se já estivesse nessa época de daqui a 150 anos. Os personagens e os diálogos entre eles, a relação entre eles, os sistemas da época, etc., tive que visualizar sistemas, modelos já dessa época. E, para isso, no domínio tecnológico, interessou-me mais a componente da Física, por exemplo, para descrever aquilo que prevejo que venha a acontecer, a comunicação do pensamento por telepatia, a levitação magnética... é algo que está a ser estudado e que possivelmente acontecerá. E muitas outras coisas que só estudando os que se ocupam da Física é que nós podemos ter alguma percepção. E também ver como é que essa Física evolui e qual a sua linha de evolução. Por extrapolação aplico tudo isso à realidade angolana. E também no domínio da procriação talvez já não seja mais necessário, daqui a algum tempo, um homem e uma mulher para fazer um filho. A partir de uma célula pode vir a ser possível gerar um ser humano. Este romance não é só ficção científica, também tem, se assim quisermos chamar, ficção social, ficção cultural e ficção antropológica.

 

O seu romance parece projectar uma sociedade que reúne ao mesmo tempo as características de uma utopia e de uma distopia...

Repare bem. Eu não tenho a ilusão de prever uma sociedade perfeita. O raciocínio do livro não é no sentido de prever uma sociedade organizada, perfeita. Não. É no sentido de evoluir mas com os altos e baixos que qualquer sociedade tem. No passado houve e no futuro também haverá sociedades de conflito, mais ou menos inclusivas, mais ou menos excludentes. Tenho a perfeita consciência disso e sou coerente ao fazer essa projecção para daqui a 150 anos. Quando falo, por exemplo, do modelo político sem partidos, de uma democracia sem partidos, é olhando para a evolução. Neste momento quem se candidata para o poder são os partidos. E vemos que cada vez mais o acesso ao poder político é muito mercantilizado, por causa do sistema de marketing eleitoral que é cada vez mais caro. Os partidos hoje afirmam-se mais pelo bem sucedido do seu marketing do que pelas suas convicções e as suas ideologias. Vemos isso nos países mais desenvolvidos. É quem tem mais dinheiro para suportar um bom marketing político que tem mais possibilidades de chegar ao poder político. Ora, esse é um modelo que, mais cedo ou mais tarde, vai se auto-destruir, porque vai se chegar a um ponto em que as pessoas vão dizer “mas isto é comércio ou é mesmo política? E onde é que sai o dinheiro para os partidos se sustentarem e sustentarem campanhas com tão volumosas quantidades de dinheiro”?...

 

Essas ideias, que acaba de exprimir, são sustentadas no romance pelo personagem Michael Hossi. São ideias que o autor também defende? O autor identifica-se em grande medida com esse personagem?

Na verdade não é uma questão de estar de acordo ou não com esta visão. É uma constatação histórica. Nós somos críticos. Intelectualmente estamos no mundo mas não somos amorfos. Olhamos para os fenómenos e fazemos deles uma leitura e uma explicação, tentando responder a coisas que aparentemente não combinam bem. E esse sentido crítico leva a perguntar como é que seria, uma vez que o sistema de acesso ao poder pelo partido pode eventualmente implodir, qual seria o  sucedâneo, o que é que depois disso viria? Daí este exercício intelectual de antevisão, de especulação política e sociológia de como é que seria o outro sistema, possivelmente uma sociedade sem partidos políticos.

 

Sendo que, pela estratégia narrativa que adoptou, a história é contada através de um relatório de especialistas no ano 2170, verifica-se, entretanto, que a linguagem é a do português vernáculo actual, de 2020. Isso acontece porque a sua projecção, enquanto autor, é que em 2150 o português vernáculo será  ainda este de hoje?

Olha, essa foi a parte mais difícil e desafiante para mim. Era saber como as pessoas se comunicarão daqui a 150 anos. Tenho a consciência de que 150 anos atrás comunicou-se de uma determinada maneira. Felizmente temos registos históricos de como é que isso foi feito e da evolução que houve. Fazendo essa extrapolação para daqui a 150 anos necessariamente concluiremos que também haverá uma forma de comunicação, uma linguagem e até mesmo uma construção gramatical que será diferente. Aí não consegui ser criativo ao ponto de utilizar uma linguagem possivelmente da época, de daqui a 150 anos. Não consegui.

 

Privilegiou então o lado da comunicação com o leitor de hoje?

Com o leitor de hoje. Na verdade há coisas que é possível imaginar como é que serão daqui a 150 anos. Sobretudo na tecnologia é muito fácil fazer a extrapolação. Mas na linguagem, nas questões sociológicas, antropológicas e culturais é muito mais arriscado.

 

Essa extrapolação seria sempre ficção...

Seria sempre ficção. Mas uma ficção que exigiria um grau de abstracção de uma forma muito mais apurada. Eu teria que ter um conhecimento da evolução linguística e conhecimentos científicos da língua para poder esticar o raciocínio e a criatividade até ao limite e criar então um modelo de linguagem. Quem sabe num outro romance eu consiga fazer esse exercício...

 

Há neste romance marcas, referências, que apontam para situações deste ano de 2020. Fala-se no vírus Corona versão 2019, fala-se numa pandemia... O livro foi escrito este ano?

Não, já vinha sendo escrito há um ano e meio, dois anos... Mas para dar explicação e sustentação lógica a alguns acontecimentos foi necessário tomar mão de realidades actuais. Por exemplo, para que Angola se transforme e tenha alterações mais ou menos radicais, em alguns casos revolucionárias, de rotura com o passado, é preciso que aconteça algo que provoque isso. Ora, esse algo para mim foi a existência de uma guerra global que tem aspectos de guerra biológica que não são de excluir. Claro que não será uma guerra mundial como a de 1914/18 com aquela visão clássica de matança, etc., é uma guerra global dos tempos actuais em que se usa mais a força do domínio económico, do domínio dos mercados, da religião e dos sentimentos religiosos, etc., etc. Essas armas, digamos assim, da guerra global hodierna é que utilizei para justificar uma rotura com o passado. Portanto acontece uma guerra global que proporciona uma alteração nos sistemas a nível global e sobretudo de Angola. É nesse contexto que falo do coronavírus como uma possível arma biológica que levou o mundo a alterações. Ainda é cedo para dizermos quais são os efeitos estruturantes ou desestruturantes na vida das pessoas e da humanidade por causa do corona, mas já podemos prever que alterará modelos, sistemas, o que fará com que a vida se altere profundamente.

 

Aparentemente enquanto escritor a sua socialização ocorreu na relação com escritores como Pepetela, Boaventura Cardoso e Adriano Botelho de Vasconcelos. Considera-se como pertencendo à geração destes autores? Como é que se situa na linha geracional da literatura angolana?

O que procurei no Pepetela, no Adriano Botelho de Vasconcelos e no Boaventura Cardoso foi sobretudo a experiência literária. Considero que é uma responsabilidade grande escrever para o público. Não podemos fazer as coisas de ânimo leve. Aconselhei-me com eles de uma maneira muito aberta. E eles também tiveram a gentileza de me apoiar, aconselhar e me ensinar mesmo como é que se faz literatura. São pessoas com quem tenho uma relação de amizade e foi com uma facilidade grande que se proporcionou o diálogo. Mas identifico-me muito com os escritores recentes, como o Ondjaki, por exemplo, ou o (Roderick) Nehone, que apesar de já não ser muito jovem é da nova geração, o Carmo Neto que também é da nova geração, enfim, identifico-me muito com a literatura jovem, embora reconheça que temos que trabalhar bastante, sobretudo inculcar hábitos de leitura na nossa sociedade. Escrever um livro é muito caro, é um prejuízo. Quem escreve o faz por paixão, mas perde dinheiro. Se o mercado fosse mais consumidor...  Mas não há hábitos de leitura. Se houvesse a apetência da sociedade em comprar livros talvez houvesse mais literatura jovem ou de jovens escritores.

 

Essa questão da difusão da leitura e do livro passa por medidas de Estado que permitam tornar mais barato o papel, a produção e o próprio livro, além da criação de muito mais bibliotecas. Enquanto membro do governo certamente terá uma palavra em relação a tudo isso...

Os mecanismos que o governo usa para incentivar esta ou aquela prática que convém às políticas do goevrno são os instrumentos financeiros. Não necessariamente dar dinheiro, mas sobretudo isentar impostos, fazer com que pelo não pagamento do imposto ou então pela redução de impostos aquele que se dedique a esta actividade escrevendo ou editando ou produzindo o livro materialmente nas gráficas tenha um custo de produção baixo com um regime fiscal adequado. Creio que já existe um regime especial. Este é um caminho. E havia também que incentivar mais à leitura, porque sem um mercado literário de consumo mesmo que os livros sejam baratos vão ficar nas prateleiras.

 

O que é que mais o desafiou na escrita deste livro?

A escrita deste livro mexeu muito comigo do ponto de vista da criatividade e da imaginação. Como é que os que viverão daqui a 150 anos olharão para nós? Há uma parte muito substancial do livro que é dedicada a isso. São os herdeiros do Kassinda Sekele, seus bisnetos e trisnetos, que farão a sua leitura retrospectiva tentando descobrir como é que o bisavô ou trisavô chegou onde chegou e então fazem juízos, avaliações, leituras no meio de umas histórias muito interessantes porque são baseadas na época actual, sobretudo desde 1992, quando o regime económico e político se altera e vamos para uma política de mercado, sendo a partir daí que as pessoas começam a se posicionar para ficarem ricas. Essa componente de como é que as pessoas em 2170 vão olhar para nós foi muito desafiante para mim.

 

O exercício da escrita literária coloca o indivíduo numa situação de fragilidade, de vulnerabilidade emocional e até mesmo física. Como é que conciliou e encarou o contraste entre uma actividade que o vulnerabiliza, em que põe as suas emoções e os seus sentimentos mais profundos a nu e a outra actividade, a de governante, em que deve evidenciar autoridade e não ter as emoções à flor da pele? 

É conciliável desde que a pessoa paute a sua conduta por princípios. Se a pessoa, que é o meu caso, seguir valores de rectidão, de verticalidade e sobretudo os valores que eu prezo muito e que aplico desde quando fui ministro da Geologia e Minas e agora enquanto ministro da Justiça, que são a transparência, a lealdade e o rigor. A minha vida toda é marcada por esses três princípios. Na transparência eu não escondo as coisas; e para não esconder esforço-me para não fazer coisas más. Só se esconde aquilo de que a gente tem vergonha. Se tenho coisas más na minha vida não posso ser transparente. Procuro levar uma vida que me permita mostrar o que sou sem receio e sem estar com muitas voltas a explicar isto ou aquilo. Não tenho receio de ser visto assim e que as pessoas façam uma radiografia do meu interior pela transparência que eu próprio sigo. E depois há a lealdade. Eu tenho que ser leal à linha do meu partido, à liderança do meu líder político que é o Presidente da República, tenho de conhecer o pensamento dele e tenho que ser leal a isso. Há-de notar que a narrativa apesar de ter temas delicados e mesmo controversos não foge à lealdade. Pelo contrário procura fazer com que haja uma visão que está alinhada, embora não sendo aquele alinhamento canino que estraga tudo.

 

Em algum momento enquanto criador se sentiu na necessidade de se auto-censurar, de delimitar o âmbito da sua criatividade para estar em linha com  o pensamento político vigente?

Sim. Necessariamente eu tenho que ser auto-crítico e tenho que me impor limites, porque estou inserido numa determinada sociedade, estou inserido politicamente num determinado contexto e estou inserido também enquanto dirigente político. Eu tenho que fazer a minha narrativa literária não comprometendo a coerência com essas inserções, porque senão são duas pessoas e eu não sou duas pessoas. Sou apenas uma pessoa. Quando o entusiasmo da escrita me leva a uma determinada direcção tenho de ter a capacidade de auto-crítica e dizer que essa direcção não é correcta, posso fazer a mesma coisa mas utilizando um método mais de acordo com o sistema e o pensamento actual.

 

Na linha de evolução do sistema democrático, conforme narrado no romance, os partidos políticos vão acabar por desaparecer. Prega-se uma democracia sem partidos. Não tem receio que isso venha a ferir susceptibilidades no seio do seu partido?

Não tenho, porque vejo o lado positivo disso. Temos de ter consciência de que nada é estático, tudo muda. A própria dinâmica partidária de organização e funcionamento também evolui. Se há essa evolução temos a obrigação, hoje, de pensar como é que poderá ser amanhã e prepararmo-nos já. Penso que com esta especulação acabo por dar um contributo não só ao partido a que eu pertenço mas aos partidos em geral, para começarem a ver que tudo isso pode vir a desaparecer. E se desaparecer estamos preparados? Portanto, é um pouco no sentido construtivo dessa visão que eu falo nisso. E não tenho receio de falar porque não estou a criticar para destruir um modelo que existe, é apenas para fazer uma especulação, se quisermos, político-científica de como é que as coisas evoluirão. E esse tipo de projecção é aconselhável que se faça, não só nesse domínio mas também noutros. Mesmo na nossa vida pessoal temos a obrigação de ver se hoje é assim como é que amanhã poderá ser, para não sermos apanhados desprevenidos e não ficarmos perdidos quando as coisas acontecerem.