segunda-feira, 22 de julho de 2019


FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL CORI (4)
UM ROMANCE SOCIAL

Por: Ezequiel Bernardo, linguista e escritor

O livro “Dias da Nossa Vida” é um romance social, descreve a expressão da vida social através de factos psíquicos de encadeamento histórico, decifra o silêncio oculto no aparente e oferece os diversos graus de interpretação implicados na obra. A escrita permite a fruição da leitura e a emissão de juízos de valor baseados na sensibilidade e nas impressões pessoais.



FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL CORI (3)

“OBRA CULTURALMENTE RELEVANTE
E SOCIALMENTE INCÓMODA”

Por: Gociante Patissa

O título é sóbrio, poético e vai de encontro ao fio condutor da narrativa, que é na verdade uma recriação de um passado muito recente, tão recente que se confunde com o presente em termos de contexto sociopolítico do país chamado Angola sob governação do MPLA. DIAS DA NOSSA VIDA remete desde logo à ideia de enfrentar momentos decisivos, passíveis de alterar o rumo, para o bem ou para o mal.

O tema é actual, o que em certa medida parece ser reflexo do momento actual de esperança e uma relativamente maior abertura no espartilho da auto-censura. A construção da narrativa em DIAS DA NOSSA VIDA, quanto a mim sob a premissa arriscada do realismo social, resulta numa obra esteticamente bem posicionada, culturalmente relevante e socialmente incómoda. É seguramente um contributo para se escrutinarem os bastidores –  para não dizer submundo – da tensão entre os movimentos revolucionários pós-2002 e o regime contestado, aqui caricaturado no personagem Reinaldo, dos Serviços de Inteligência da República (SIR) com flagrantes indicadores de subversão da democracia, onde a “causa” dá lugar às lógicas de mercado e a coerência ao sofisma.

O narrador é um observador profundo, instigador à reflexão, ao mesmo tempo destilando um humor fino e pitadas de sarcasmo. Fugindo do panfletário, que até venderia muito, nota-se uma maturidade do narrador. Ao mesmo tempo que denuncia a degeneração dos serviços de inteligência que, no lugar de defender a nação, defendem o regime, dá-nos uma perspectiva humana do ser humano, trocadilho propositado, na medida em que o leitor alcança os sentimentos e o valor da família no coração de pessoas com (excesso) de poder. Mostra também a pressão social em torno dos rostos dos “revus”, suas virtudes e defeitos.

Quanto à linguagem, temos um narrador cativante e profundo na sua aparente simplicidade. A leitura é dinâmica, com orações curtas, como que em fala de rádio. Embalando na leitura, experimenta-se um sincronizar sensorial e passamos a viver a trama como se nos entrasse pelos ouvidos na voz de um prendado locutor. É a veia jornalística de Isaquiel Cori que lateja. Aliás, diria mesmo que o autor se auto-denuncia na janela psicológica do personagem central quando diz que… “Desenvolvi um sentido visual para as palavras de tal modo que mais do que as ouvir eu as via a ganhar forma nos lábios dos interlocutores e a esvoaçar no ar como bolhas de sabão, antes de desaparecerem do horizonte do meu olhar ou captadas pelos meus ouvidos.”

O aspecto negativo a apontar, fora as raríssimas gralhas, reside na ponta solta, a menos que haja planos futuros de continuidade. Parece inverosímil que uma criança de oito anos soubesse já que o pai e demais membros da família são “bufos”. Pode ter-me escapado algo mas creio que seria necessário dar resposta à pergunta: quem “instrumentalizou” a criança? A dado momento intuí que fora o tio Manel Fidacaixa. Não ficou claro. Então se o personagem Reinaldo investiu perícia para escrutinar a fonte, chegando mesmo a enviar a esposa a Luanda, não faria sentido revelar “a garganta funda” que despertara de maneira tão explícita o menor para o legado familiar de bufo?

Com os melhores cumprimentos de Benguela!




FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL CORI (2)
UM ROMANCE DE MATRIZ REALISTA

Por: Hélder Simbad




 Mas quem seria tão estúpido ao ponto de apresentar, como prova de um crime, uma obra literária? O que é ficção – não ignorando as noções de intertextualidade e de verossimilhança que por analogia podem nos remeter a situações reais – deve ser interpretado como ficção e não o contrário. Apesar de ténue, nunca se deve transpor a fronteira, pelo que qualquer semelhança entre as ideias susceptíveis de serem extraídas desse livro e a realidade é mera coincidência.
Sobre o autor, Isaquiel Cori, diga-se que é um dos mestres do realismo angolano do pós-independência, pela coragem, relativamente às opções temáticas, e pela concisão do discurso e expressividade. Por esse motivo, faz parte da restricta elite de escritores que é lido e estudado anualmente naquela que é tida como a maior Universidade do país, coexistindo com nomes como os de Agostinho Neto, Luandino Vieira, Pepetela, Almeida Garret, Agualusa, etc., etc.
«Dias da Nossa Vida» é um romance de matriz realista que nos dá a conhecer o quotidiano de um responsável dos Serviços de Informação da República de um país fictício que, numa relação de analogia entre a realidade e a ficção, bem se poderia chamar Angola, em razão da biografia do autor; do quadro político que traça, muito similar ao de uma Angola não tão longínqua; da alusão à cidade capital, Luanda, e de todo um conjunto de factores e ideais que vêm formalmente objectivadas na obra, que se ligam à realidade através das categorias de intertextualidade e verossimilhança.
 O título «Dias da Nossa Vida», por inerência do possessivo «nossa», pode sugerir a ideia de um diário colectivo. Entretanto, tal ideia se desvanece por força do enredo e dos monólogos que introduzem cada capítulo (a partir do segundo), mantendo-se, ainda assim, apesar do caracter heterodiegético do narrador, a ideia de um «diário» implícita. Trata-se, na verdade, de um «romance de personagem», em que os eventos são relatados por uma entidade intradiegética que se anula completamente na diegese e que parece emergir nos monólogos que introduzem os capítulos, confundindo-se algumas vezes com o protagonista ou com o próprio autor. Um romance de enredo simples – pelo número de acções – cuja complexidade reside no modo como os eventos se vão entrelaçando através duma relação de causa e efeito que se torna surprendente pela forma como o narrador brinca com o tempo da história.
«Dias da Nossa Vida» traça o degradado quadro político-social de uma sociedade contemporânea em vias de convulsão, causada por um grupo de activistas cívicos em cujo caderno de reivindicação se discutiam, entre outros assuntos, questões como a «má governação, corrupção encabeçada pelo governador, pobreza extrema da maioria da população, saque das terras dos camponeses, favorecimento de estrangeiros em prejuízo dos nacionais”. O grupo era liderado por Armindo Gasolina – um jovem «baixinho de estatura», destemido, provavelmente nos seus 20 anos, bastante inteligente, perspicaz, com forte educação de base, mestre em sarcasmo – e decidiu (o grupo) reivindicar as acções daquele governo, como se pode constatar nas seguintes passagens:
«somos um movimento de jovens estudantes patriotas agastados com a corrupção que grassa no país, e cá na província, em particular». Página 66.
 Para se evitarem males maiores é chamado o herói, Reinaldo Bartolomeu, chefe dos Serviços de Informação da República (SIR) naquela província, que o autor prefere não nomear, provavelmente para confundir os leitores (?) na medida em que ao se referir a Luanda-capital, deixa explicitamente a ideia do «país (Angola) », que terá sido o «motivo estético» para construção da narrativa. Reinaldo Bartolomeu vive dividido entre o trabalho e a família, facto que dificulta, em muitos casos, a eficiência das suas acções, dedicando-se com maior afinco ao trabalho. Verdade que pode ser explicada pela natureza do trabalho que desempenha e por se constituir como o suporte financeiro que move a vida da família. Dois eventos simultâneos fazem da sua vida um gabinete de crise: a manifestação dos jovens activistas e a decisão de seu filho, caçula, Andrezinho, nos seus sete anos de idade, em querer ser «bufo» como o pai quando crescer. Para o último caso, Reinaldo parte em busca de respostas, encontra formas de deixar a mulher longe dos acontecimentos, pedindo-lhe que vá para Luanda; vai fazer um breve trabalho de campo à escola do filho e conclui que não é ali onde nascera um pensamento que terá provindo provavelmente no seio familiar, através de conversas esporádicas que geralmente os familiares trocam. «Na família (de Reinaldo) havia uma verdadeira dinastia de bufos» cuja árvore genológica nos levaria a um período em que não se falava ainda de Angola, senão de reinos:
Eis a amostra de um quadro genealógico da família de «bufos» de Reinaldo:
Período
Relação familiar
Território
Órgão de representação
Função
Pré-colonial
Ancestral
Reino da Matamba e Ndongo.

Guarda da Corte
Segurança pessoal da Rainha Njinga
Colonial
Parentes
Portugal, Angola Ultramarina.

PIDE e MPLA
Agentes duplos, operando simultâneamente na PIDE e nas forças clandestinas do MPLA
Pós-independência
Tio1, primo da mãe;
Tio2, irmão da mãe
Angola independente, mergulhada em guerra fratricida
DISA;

DISA
Alto dirigente da DISA
Membro da DISA, morto no 27 de Maio

Pós-4-de-Abril (dedução)
Sobrinhos
Angola em paz
Serviços de Informação da República
Bufos

Fruto dessa linhagem fiel, na história dos Serviços de Informação da República, Reinaldo Bartolomeu gozava de muitos privilégios, aliado ao facto de ser confidente do governador Arlindo Seteko «Não Se Mete», personagem-tipo, protótipo de governação que num passado recente caracterizava a Angola Real. Arlindo Seteko «Não Se Mete» tinha a seu favor uma história de luta anticolonial que o levara a sacrificar a juventude, era um homem frágil do ponto de vista psíquico, com uma variação espetacular de humor, que em termos psicopatológicos poder-se-lhe-ia diagnosticar o transtorno bipolar associado a outros, porquanto ora estava «deprimido» ora «muito alegre» e gostava de alimentar o seu ego com bajulação; gozava de alguma autonomia, ao ponto de impedir que jornais privados circulassem pela «sua» província pelo facto de supostamente o terem caluniado; «era mestre em misturar tudo», e fazia uma gestão danosa da coisa pública; não respeitava as autoridades tradicionais; praticava um nepotismo exacerbado, ao ponto de invocar o principio da discricionariedade para pegar numa parcela territorial maior que a Alemanha, elaborar uma lista de beneficiários, dentre os quais, os primeiros 100 nomes eram de familiares seus, incluindo os sete filhos que tinha; era um ser tão meticuloso que conseguiu deixar estupefacto a mais atenta das personagens, Reinaldo, ao descobrir as riquezas que o chefe escondia dele.
Relativamente ao problema maior, os tumultos que ameaçavam a estabilidade social, Reinaldo Bartolomeu, pressionado pelo mais alto dirigente dos SIR, a partir da capital, Admirável Redondo, autoritário, rude, defensor de atitudes violentas, movia-se dentro duma mentalidade político-partidária; mal aconselhado pelos dirigentes das forças de segurança local, vai destacar-se, sobretudo, pela sua inteligência – evitando medidas extremas, apelando ao diálogo, ao bom senso. Não se pode negar também o facto de Reinaldo ter contado com alguma sorte, resultante da mudança cataclísmica das atitudes de Armindo Gasolina, que terá sido motivado provavelmente por aquilo que poderia ter sido um derramamento de sangue, aquando da mega manifestação.
Na historiografia da narratologia angolana, Luanda ocupa o «espaço diégético» central, sendo esmagadoramente eleita pelos romancistas como o espaço físico de eleição, interagindo com outros espaços, sobretudo naquelas narrativas de revisitação ao passado nostálgico, que nos levam aos caminhos da guerra fratricida de fundamentos inaceitáveis, porquanto só há guerra quando os homens perdem a razão, entendendo-a  assim como é: um acto irracional protagonizado por seres racionais. Isaquiel Cori, em «Dias da Nossa Vida» subterceiriza esse espaço habitual que é Luanda, construindo uma cidade fictícia que, no âmbito do dialogismo literário, interage com todas as restantes províncias de Angola, podendo ser o referente literário de cada uma delas.
A concisão, as opções temáticas, o linguajar – oscilando entre a prosa corrente e os tropos que nos levam à poesia,
« A filhota fluía leve, levezinha, a traçar figurinhas invisíveis no chão. Reinaldo mirou a mesa do Governador e viu-o só (…) numa cadeira dourada de encosto alto.» Página 128.
– são procedimentos técnicos de estruturação da narrativa aos quais Isaquiel Cori interpõe recurso para tornar a sua prosa mais expressiva. Contudo, a narrativa eleva-se, ainda mais, em termos de expressividade, quando joga a tal linguagem continuamente oscilando entre a prosa corrente e os tropos com o «erotismo», este espaço sublime de contemplação do belo:
« O lençol branco mal cobria a sua nudez, de mulher madura (…). Reinaldo Bartolomeu aproximou-se, sorrateiramente, e foi com a boca toda a arfar de sede, para o vértice rasgado do corpo dela, que ela adorava que ele para lá fosse com a boca» Página 87.
Entretanto, torna-se necessário referir que o «erotismo» em «Dias da Nossa vida» não reside apenas no contacto físico e íntimo entre as pessoas, funcionando como uma ferramenta linguística  de manutenção  da expressividade como se pode vislumbrar no excerto que se segue:
«… o pedaço de terra lavrada parecia uma mulher em idade primaveril no auge da ovulação, palpitante, sedenta e desejosa dos esguichos seminais do homem amado.» Página 96.
« Dias da Nossa Vida» configura-se como uma paródia contra uma forma de governação que fez escola ou tradição pela negativa, uma análise clínica de um escritor que veste a capa de reformador em quase todas as suas obras. Mas ela, a obra em análise, está impregnada de vários simbolismos, que resultam principalmente das superstições de sociedades onde o «animismo» é escola invísivel.
« ‘Logo dois cães a se foderem mal um gajo sai à rua?’. Uma sensação de mau presságio misturada com um medo repentino e visceral obscureceu a mente de Reinaldo e arrepiou-o todo. ‘Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?’» Página 13.
Já foi referido aqui que a obra em análise é, decerto, um romance de personagem. Em si  mesma, isto é, de um ponto de vista ontológico, é a representação da vida do protagonista, inserido numa familia algo desestruturada por força do seu «serviço» e por razões académicas. Por alguma razão, a narrativa começa em casa, com um dos integrantes da família do herói ausente, no caso, a filha; e termina numa festa, em casa do Governador, com outro integrante da família ausente, provavelmente por força de uma norma social que impede menores de estarem em certas cerimónias, revelando assim a incapacidade de o herói em ser uma figura omnipresente que se doa simultaneamente à família e ao trabalho.
Por fim, «Dias da Nossa Vida», pese embora, circunscreva a sua acção a determinado periodo da realidade que nos envolve, não está imbuída de anacronismo pelo simples facto de esse período ser recente e ainda dialogar com certas realidades  que, apesar da mudança de paradigma de governação, conservam essa mentalidade.