terça-feira, 4 de agosto de 2015

Entrevista a António Quino a propósito do seu livro “Duas Faces da Esperança – Agostinho Neto e António Nobre num estudo comparado”

Por: Isaquiel Cori

        Mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa, licenciado em Ciências da Educação pela Universidade Agostinho Neto, jornalista, escritor, entre outras coisas, António Quino publicou em 2014, no âmbito do FENACULT, o livro “Duas Faces da Esperança – Agostinho Neto e António Nobre num estudo comparado”, um ensaio resultante precisamente dos seus estudos de mestrado em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa. Em 2015 voltaria aos escaparates com o livro “República do Vírus”, ficção. No espaço de tempo que transcorreu entre a publicação de um e outro livro o autor deste blogue teve uma conversa com A. Quino, que por razões de força maior, alheias à minha vontade, só agora dou à estampa. [Do segundo livro darei certamente conta aqui, num futuro breve]. O tema da esperança, como bem o título mostra, é o traço de união dos dois autores, Agostinho Neto e António Nobre, poetas gigantes no sistema literário a que cada um pertenceu. No seu livro, António Quino trata de assinalar, ao detalhe, os pontos de contacto (e de afastamento) da obra dos poetas em causa, sublinhando, entretanto, a singularidade de cada um. Leia então, caro internauta, a esclarecedora entrevista de António Quino a este blogue.




         Pergunta – Que intuição ou conhecimento o levou a dedicar-se a um estudo comparado tão aprofundado sobre Agostinho Neto e António Nobre?
Resposta - No meu projecto de mestrado, até chegar ao método de investigação e aos autores eleitos, divaguei um bom bocado. É bem verdade que tinha acumulado um conjunto de leituras de poemas que me enchiam a cabeça, e todas elas convergiam na ideia de esperança ou liberdade do ser poético, um sentido até certo ponto filosófico. Comecei por eleger a sociologia da literatura como foco. E nas minhas pesquisas deparei-me com a literatura comparada e os seus fundamentos, paradigmas e desafios. Assim elegi a literatura comparada. Comecei então a pensar nos autores. Pela afinidade que tenho com a poesia de Agostinho Neto, só precisava encontrar outro ou outros poetas para estabelecer os propósitos comparativos. Até chegar ao António Nobre foram longas horas e buscas de incessantes equilíbrios nos textos. Curiosamente, quem me deu a certeza dessa possibilidade de estudo comparado entre Agostinho Neto e António Nobre foi o meu orientador, o Professor Doutor Francisco Soares. Quando o vi a franzir o sobrolho em jeito de dúvida pelo êxito do trabalho com tais escolhas, pelas diferenças entre os dois, senti que aquele seria realmente o caminho a seguir. O desafio recompôs a segurança que eu necessitava para avançar. E iniciei então a peregrinação para descobrir as afinidades e dissemelhanças entre os dois poetas que, como se pode ver no livro, aparentemente nada os ligava. Hoje, com as ideias mais arrumadas, posso sem receio afirmar que queria mostrar vários ângulos que podem ser apresentados pela esperança, tirando-a do plano meramente filosófico ao da vida vivida pelo sujeito poético. Portanto, só precisei encontrar os poetas certos para transmitir isso.
P - Se Agostinho Neto é conhecidíssimo em Angola, o mesmo não diria de António Nobre. Como chegou a este autor português?
R - Como disse, foram buscas para encontrar um poeta que, não confirmando a esperança como em Neto, enriquecesse o ensaio que rondava pela minha cabeça em ideias. Finalmente, simpatizei-me com a sua história e vida e, por ser um grande desafio, embrenhei-me na nobreza da poesia de Nobre. Também devo referir que me aguçou o sentido por Nobre “profetizar” o seu destino, o que leva às vezes as pessoas a pensarem que ele escreveu o conjunto de poemas do seu livro “Só” na aflição da doença que o matou. Também, o simbolismo foi sempre um mundo enigmático, cavernoso e entrar nele também representava um desafio. Portanto, são várias as razões que me levaram a apostar nesse outro António que, tal como o referiu o meu orientador, viríamos a constituir o trio de Antónios.
         P – Em literatura a que levam os estudos comparados?
         R - Os estudos comparados, duma forma geral, são um instrumento analítico muito importante para o estabelecimento de planos de confrontação, equiparação e comparação de sistemas a fim de buscar analogias, conhecer semelhanças e diferenças ou as relações entre sistemas. Com base num estudo comparado se pode compreender e respeitar melhor o próximo.
A literatura comparada não é diferente. Ela convoca rumos e relações das dimensões locais e planetárias e faz do local mais planetário, e do planetário mais local. Como diz uma referência da área, a brasileira Sandra Nitrini, a literatura comparada rebate os cruzamentos de limites críticos consagrados, questionamentos de paradigmas estabelecidos e trânsitos de textualidades e linguagens. Portanto, a literatura comparada é um campo privilegiado para o estabelecimento de inter-relações de movimentos, estilos, autores, lugares, nações, povos. Outro aspecto que acho relevante é que pela literatura comparada podemos inclusive perceber que não há hierarquizações ou degraus pré-definidos para se qualificar estilos, obras, autores, correntes, etc. Relativizar permite aproximar, pelo conhecimento do outro a partir de nós mesmos.
P  - “A alma das nações nem sempre é acessível às ciências mas sim à literatura” (pág. 26). A literatura, mais concretamente a poesia, é capaz de fazer o catálogo da alma humana?
R - Sem dúvida. A arte é muito mais do que um elemento simbólico para as consciências colectivas definidas por Émile Durkheim. Na arte literária, ao envolvermos a semiótica, a estética e a linguística, estabelecemos um triângulo que envolve agrupamentos culturais de sentimentos, pensamentos e ideias morais e normativas duma comunidade. É essa alma que a poesia cataloga. O próprio Umberto Eco reconhece essa capacidade da arte ampliar o universo semântico provável, em cuja memória cultural colectiva joga um papel preponderante nas infinitas interpretações sobre os jogos semióticos invocados por nós, intérpretes. Essa perspectiva é inversamente proporcional às ciências, que são metódicas, formais, sincronizadas e universalizantes. Numa conversa que mantive com o professor Eduardo Fonseca, e reproduzida no livro na íntegra, ficou claro que a literatura tem uma importância fundamentalíssima no procurar e divulgar a identidade duma nação.
             P – No seu livro fala em esperança activa e passiva. Quando é que a esperança é activa ou passiva?
             R - Há duas perspectivas díspares, que se complementam, que procurei traduzir num quadro, na pág. 198, penso. De um lado está a esperança activa, materializada por Agostinho Neto, consubstanciada no desejo de lutar para atingir os seus anseios de liberdade; vista no seu sentido dinâmico. Sem luta, nada se consegue, parece querer reafirmar Neto. No outro lado está a esperança passiva, apresentada no aceitar dos desígnios; no acreditar que a morte trará a ansiada liberdade. Nobre vive-a numa contagiante estática. Ambos alimentam as suas esperanças pela liberdade nos seus poemas, mas na confluência entre o poeta e o sujeito poeta, não comungam no tempero a dar ao alimento liberdade.
             P - Uma das lições do seu livro é que não há literatura isolada (mesmo as supostamente mais regionalistas ou nacionalistas) e que é sempre possível encontrar pontos de contacto com outras literaturas. Concorda com essa leitura?
             R - Completamente. Nada nasce do nada. As obras literárias são um emaranhado de pontos em permanente contacto e contágios. Os contágios são activos importantes na literatura. Há uma permanente renovação de sangue azul, fazendo do marginal um promissor original utente do traço da inovação e criatividade. Um aspecto extremamente positivo na literatura é que ela nunca está só; traz sempre consigo pedaços informes de outras literaturas, embora nem sempre identificáveis ou identificadas. Mas está lá. Se não pelo texto, talvez pela implícita leitura produtora da experiência congregada no eu do poeta.
             P - Agostinho Neto era um intelectual e homem de acção e António Nobre um intelectual mais compassivo, sonhador, utópico?
             R - Não sei se diria exactamente nestes termos. Não será todo o sonho uma utopia? A independência não era uma utopia? A perspectiva de liberdade em Agostinho Neto, a sua Sagrada Esperança, não será uma utopia? Prefiro continuar a pensar que ambos foram intelectuais activos nas suas respectivas épocas, construtores de sonhos e utopias. Penso que a diferença está não só no carácter, mas na forma como cada um procurou atingir ou lutar pelos seus sonhos. Muito influenciados pelas respectivas correntes artísticas em voga, mesmo nos seus textos revelam contágios na tematização ou na abordagem de assuntos polemizados na época. Estaria eu errado se afirmasse que todo o intelectual é um fomentador de utopias?
            P - Na nota de agradecimentos, estende os seus votos ao seu pai, “que inundou a casa da minha infância de livros”. É o conselho que dá aos pais: “inundar” a casa de livros?
            R - Comigo funcionou. Ter a casa cheia de livros, a estante na sala enfeitada com livros, com a não autorização da minha finada mãe. Hoje percebo a relevância daquele permanente contacto com os livros. Foi um hábito construído na imprecisão do tempo, desintencionadamente. Se com estantes de livros na sala não for mais moderno devido à modernidade das casas que exigem outras domésticas arrumações, mas jornais e livros ajudam sempre a valorizar o homem do futuro. Os aparelhos alimentados pelas tecnologias de informação, como computadores, Ipad’s, telemóveis, etc., são valiosos instrumentos de incentivo à leitura. O nosso desafio é sempre conduzir o veículo da modernidade para os caminhos que pretendemos, contra a rota traçada pelas gerações da simplificação; que da internet só limitam o olhar à sombra, dispensando a luz que alimenta a penumbra.
             P – Na vertente da pesquisa académica quais são as suas próximas metas?
             R - Continuo a trabalhar em literatura comparada, procurando aprofundar uma pesquisa, ainda imberbe, sobre uma aplicação do ponto de vista da geometria, mais concretamente matemático, na análise e interpretação de textos literários. Trata-se de uma técnica matemática baseada na aproximação poligonal do contorno do objecto. A escolha das características adequadas torna-se mais natural e simples conforme o usuário adquire progressivamente mais familiaridade e experiência com a área da classificação e os problemas específicos. Tenho estado a trabalhar nisso, embora empiricamente, num conceito desenvolvido por Claude Lévi-Strauss. Falo do invariante, que reclama pela existência, sempre, de uma base de caráter binário, de sustentação da estrutura. Ou seja, esse invariante vai gerar variáveis, assumindo novas formas, mas o invariante é, logicamente, o mesmo. Portanto, essa variedade literária introduz um certo princípio de ordem nos estudos comparados e nos permite olhar o individual sem perder de vista o universal.
              P – A partir da sua condição de professor e estudioso da literatura angolana está bem colocado para responder a esta pergunta: nota tendências novas na escrita que se vai publicando hoje?

              R - Creio ser muito cedo para essa conjunturação. A escrita literária em si é produto duma realidade social; e a sua inovação, ou chamemos revolução, traduz a dinâmica das sociedades. E tal como outras ciências, os estudos literários também anseiam por se distanciar dos vícios envolventes do contexto para análises frias do produto literário. Análises, interpretações ou ensaios são produzidos para enquadramento da obra. No entanto, os estudos desses fenómenos são feitos noutros amanhãs. Os escritores são inimigos do conformismo. Andam sempre atrás da criatividade, que só em si é sinónimo de revolução e inovação. Há temáticas universais, como o amor, a riqueza, a pobreza, a guerra, os congestionamentos do tráfego rodoviário, etc. Mas dessas tematizações universais nascem as particularizações assentes em realidades muito concretas que tendem para a alma das nações. E, tal como no passado aconteceu, por esse caminho tenderá certamente a literatura dessa geração.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

SILÊNCIO! ESCUTEMOS AGOSTINHO NETO!

Os grandes poetas falam para os seus contemporâneos mas têm o condão de captar o intemporal, o permanente, aquilo que está para lá da aparência imediata das coisas. Com isso, tornam-se imortais. Deu-me para reler Agostinho Neto e estou a redescobrir a sua imorredoura contemporaneidade, muito para lá de qualquer apropriação oficialista da sua obra. Silêncio! Escutai Agostinho Neto hoje! Agora!



DEPRESSA

Impaciento-me  nesta mornez histórica
das esperas e de lentidão
quando apressadamente são assassinados os justos
quando as cadeias abarrotam de jovens
espremidos até à morte contra o muro da violência

Acabemos com esta mornez  de palavras e de gestos
e sorrisos escondidos atrás de capas de livros
e o resignado gesto bíblico
de oferecer a outra face

Inicie-se a acção vigorosa máscula inteligente
que responda dente por dente olho por olho
homem por homem

venha a acção vigorosa
do exército popular pela libertação dos homens
venham os furacões romper esta passividade

Soltem-se em catadupas as torrentes
vibrem em desgraças as florestas
venham temporais que arranquem as árvores pela raiz
e esmaguem tronco contra tronco
e vindimem folhagens e frutos
para derramar a seiva e os sucos sobre a terra húmida
e esborrache o inimigo sobre a terra pura
para  que a maldade das suas vísceras
fique para sempre aí plantada
como monumentos eternos dos monstros
a serem escarnecidos e amaldiçoados por gerações
pelo povo martirizado durante cinco séculos

África gloriosa
África das seculares injustiças
acumuladas neste peito efervescente e impaciente
onde choram os milhões de soldados
que não ganharam as batalhas
e se lamentam os solitários
que não fizeram a harmonia numa luta unida

Atraia-se o raio sobre a árvore majestosa
para assustar os animais dos campos
e queimar a insantidade dos santos e dos preconceitos
Rompa aos gritos a juventude da terra e dos corações
na irreverente certeza do amanhã nosso
apressando a libertação dos amarrados
ao tronco esclavagista
dos torturados no cárcere

dos sacrifícados no contrato
dos mortos pelo azorrague e pela palmatória
dos ofendidos
dos que atraiçoam
e denunciam a própria pátria

Não esperemos os heróis
sejamos nós os heróis
unindo as nossas vozes e os nossos braços
cada um no seu dever
e defendamos palmo a palmo a nossa terra
escorracemos o inimigo
e  cantemos numa luta viva e heróica
desde já
a independência real da nossa pátria

Cadeia do Aljube de Lisboa
Agosto de 1960