quarta-feira, 12 de novembro de 2014

RUA DA INSÓNIA, de João Tala: Um manifesto poético carregado de inquietações

ISAQUIEL CORI



“A vivência e a sobrevivência através de uma infância, adolescência, seguidas de uma juventude em tempos de possibilidades precárias; a desordem espiritual, colectiva, traumas antigos e do pós-guerra, bem como inconsistências e desnivelamentos que não vale a pena nem classificar nem enumerar”, segundo o poeta João Tala,  “formam um quadro inquietante” que sobre um formato estético emprestam o  conteúdo à sua nova obra, “Rua da Insónia – Um manifesto de inquietações”.
O autor, em fala ao público que compareceu (25/04/2014) ao lançamento do seu poemário na sede da União dos Escritores Angolanos, explicou, como nunca o tinha feito antes, as razões da sua escrita, o húmus sobre o qual ela se funda. “E o poema, enquanto saliência da própria vida não pode se desprender dos factos que vivemos. Não é apenas um encontro, uma junção de palavras, daí que no caso expresso deste poemário, Rua da Insónia se enraíza na própria inquietação do ser”.
João Tala, que fechou o seu dissertar com a leitura de um poema  dedicado ao escritor e musicólogo Jorge Macedo (1941-2009), citou o poeta e antropólogo Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) [… “Que a criação vos possua, vos anime até aos desvarios que a sociedade teme nos poetas, porque é daí que resulta a obra. Mas que a angústia dos resultados não vos envenene a alma nem instile veneno na alma dos outros. É perigoso e traz doença. O mérito da vossa obra é no acto que a criou que se decide, não é depois, quando se mede à dos outros.”], confessou-se um ser criado de inquietações, antes de glosar o seu próprio poema: “…tudo passa e o poema indaga / o dia que acontece como uma ruína”.
O poeta António Pompílio, que apresentou o novo poemário de João Tala, lembrou que este é médico, e que talvez por isso, no seu livro, “ele faz um diagnóstico à alma”.
Ele é também um vendedor de sonhos, considerou Pompílio, “o tema infância e sonho percorre toda a sua obra, como que um renascer de esperanças, ‘porque é pecado engolir o sonho’”. Acrescentou: “O poeta passeia a passos lentos pela rua; desencantado, sofrido e amargurado por tudo o que vê e sente. João Tala, para retratar melhor as paisagens da Rua da Insónia, busca a simbologia da água, como choro e bênção para apagar os nossos males”.
Segundo António Pompílio, o poemário de Tala “tem também um percurso mais lírico, mais metafórico, onde o poeta pinta paisagens lúgubres com cores mais vivas e dá novo alento às metáforas da vida e nos brinda com sentimentos profundos”. Citou o poema “Desaguar”:
“pertenço às trinta casas que pernoitam / a angústia de um barco. / eu me enchi de pequenos rios / e por isso tenho um barco / me leva das espáduas ao frémito / das chuvas; ensopado, descalçado / sem as cicatrizes deste mundo / e meu tempo um rio novo. desaguar.”
Por fim, Pompílio manifestou uma inquietação que não é apenas sua, pois tem vindo a ser exteriorizada por vários homens e mulheres das artes, em geral, e da literatura em particular: “Sabemos que a divulgação das artes está muito aquém das espectativas. Um poema bem difundido pode revolucionar a mente de um povo, acabar ou anular mesmo muitas das nossas inquietações. A poesia angolana e os seus poetas precisam de ser conhecidos e difundidos”.
João Tala, especialista em medicina interna, é um dos casos mais recentes, em Angola, da lista de médicos cujo olhar afinado para os dramas humanos do corpo e da alma, e da sociedade, aliado a uma aguda inquietude existencial, é canalizado para a criação poética. Dessa lista constam os nomes de Agostinho Neto, Alda Lara, Carlos Mac-Mahon e Domingos Fragoso.
Uma análise à obra de Tala, desde “A Forma dos Desejos” (poesia, prémio Primeiro Livro da UEA, 1987), “Os Dias e os Tumultos” (contos, Grande Prémio de Ficção, 2004, da UEA), “A Vitória é Uma Ilusão de Poetas e de Filósofos” (Grande Prémio de Poesia, 2005, da UEA), “Surreambulando”, contos, 2007, “Forno Feminino”, poesia, 2010, passando por “Rosa & Munhungo”, contos, 2011, e culminando em “Rua da Insónia”, revela um adensar das alusões semânticas ao mundo da medicina, dos hospitais e do consultório médico, o que faz colocar a questão, de viés aparentemente retórico: é o poeta que se projecta no universo do médico ou é o médico que se intromete no conteúdo e na forma da obra do poeta?

Na presente edição de “Rua da Insónia” foram feitas mil cópias, chanceladas e catalogadas pela UEA na colecção “Guaches da Vida”

sábado, 1 de novembro de 2014

O Miting Resgatado pelo Grupo Mba Eza

(Carnaval memorável em Saurimo)

ISAQUIEL CORI




As ruas de Saurimo, paralelas e perpendiculares, com asfalto impecável, estavam limpas, bem lavadas pelas águas da chuva, quando chegou a tarde e com ela a hora marcada para o desfile. No Largo Dr. António Agostinho Neto era grande a expectativa em relação à performance dos grupos oriundos dos quatro municípios da província: Saurimo, Dala, Cacolo e Muconda. Um dos principais redutos da tradição Lunda Cokwe, a par da Lunda-Norte e do Moxico, a Lunda-Sul, no conjunto das dinâmicas das suas comunidades, é um verdadeiro museu vivo onde podem ser apreciadas algumas manifestações culturais antigas, em estado quase puro. Sendo que as danças são as principais manifestações culturais que o carnaval põe em evidência.
Mencionando aqui apenas a Txianda, a Txissela, o Makopo, o Muquixi e o Cafundês, é grande o mosaico das danças típicas da cultura Lunda Cokwe. Algumas, como a Txianda e o Muquixi, são amplamente conhecidas no país porque já foram executadas vezes sem conta em palcos nacionais ou porque foram alvo da atenção de estudiosos das danças.   



O Miting é uma dança que corria o risco de desaparecer e que foi resgatada pelo grupo Mba Eza, do município do Dala, o campeão em título do carnaval provincial.
Enquanto o público compunha o cenário, as entidades protocolares tomavam os seus assentos e os grupos carnavalescos faziam o "aquecimento", da amplificação sonora que abarcava todo o largo ouviam-se alguns dos maiores sucessos da música popular urbana local (os conjuntos "Moyowenos da Lunda Sul" e "Sassa Tchokwe", bem como o cantor Rei Dacosta, todos ao ritmo da omnipresente Txianda, animavam sobremaneira os presentes.
Ao longo do desfile dos onze grupos que competiam pelo título de melhor do ano vimo-nos relativamente frustrados na nossa expectativa. Esperávamos uma maior variedade de danças mas fomos brindados apenas com a Txianda, o Muquixi, e, para nossa satisfação, o Miting pelos Mba Eza do Dala.



O Miting é uma dança que tem características modernas e traços urbanos, a começar pela indumentária dos bailarinos: homens e mulheres apresentam-se vestidos a "rigor", com calças sociais, camisa branca e gravata. O grupo forma uma grande roda, tendo no interior o vocalista e os percussionistas. Os bailarinos vão evoluindo com uns movimentos alternados de sapateado, de ombros e braços e uns laivos de ginga próprios da Txianda. O acompanhamento musical tem uma passada lenta, à base da percussão. O Miting é claramente uma dança de salão, que muito vagamente faz lembrar a rebita de Luanda, sem a famosa massemba.


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Escutando o grande Vum Vum Kamusasadi

ISAQUIEL CORI




A musicalidade de Vum Vum Kamusasadi, artista angolano de regresso a Angola 45 depois, está muito bem espelhada no CD "Ode aos meus amores", já em circulação  no mercado luandense.
Muito presente no imaginário das gerações que atingiram a maioridade no tempo colonial, Vum Vum é pouco conhecido pelas novas gerações de músicos, compositores e apreciadores da música angolana.
Com onze faixas seleccionadas com rigor e executadas com os acordes melódicos ora nostálgicos - "Ah! quando eu era garoto", "Capricho-morena"; ora arrebatadoramente alegres - "Kibelebeletanxe", do violão que domina a cena do som, "Ode aos meus amores" é também um tributo à poesia, ou não constasse dele a canção "Testamento", com letra do poema homónimo da poetisa Alda Lara, com a inesquecível estrofe inicial: "À prostituta mais nova / Do bairro mais velho e escuro / Deixo os meus brincos lavrados / Em cristal, límpido e puro".
Com o propósito de se dar a conhecer a um público novo, além de reafirmar o seu valor junto dos da sua geração, Vum Vum, a começar já pelo título do CD, enfatiza o seu lado de cultor da palavra. A sonoridade é límpida e nela dominam o violão e a voz que canta e se transmuta em instrumentos musicais.
A infância é revisitada enquanto tempo e espaço de inocência e liberdade, em contraposição a um tempo "que não sabe que a vida é poesia para unificar".
A carreira musical de  Manuel Rosário das Neves, vulgo Vum-Vum Kamusasadi (nascido a 31 de Dezembro de 1943, no Dondo) remonta aos anos 1960, quando atingiu o auge da fama em Angola. Cabeça de cartaz na boate Tamar, à Ilha de Luanda, durante quase um ano (feito inédito para um negro num espaço tão segregado) em 1968 parte para Portugal, contratado para participar num teatro de revista, à época em voga.
Vum-Vum mal sabia que partia para um exílio de 45 anos, que o levaria a viver também na Suíça e Espanha e, finalmente, na Alemanha e a calcorrear meia Europa a divulgar a imagem de Angola em espectáculos em que quase invariavelmente se apresentava descalço e vestido de panos.
"A Alemanha me deu asas, lá fui recebido de braços abertos", refere, grato pelo ambiente que lhe permitiu dar livre curso à sua criatividade.
"Toda a minha criatividade artística assenta nos valores da minha cultura e tradição", diz Vum-Vum. "Eu não preciso inventar, a minha arte vem do dia-a-dia".
Empenhado numa cruzada de resgate da sua identidade, Vum-Vum viaja pelos lugares de e da memória e reconhece no Duo Ouro Negro os pioneiros da internacionalização da musicalidade popular angolana.
Com mente aberta gosta de mergulhar por outras sonoridades e confessa o fascínio que sente pelo jazz e a música erudita. Aliás, vestígios dessas sonoridades estão bem patentes no CD "Ode aos meus amores". Na mesinha de centro da sala em que recebeu a equipa do jornal Cultura eram bem visíveis os CD de música clássica e do jazzman Thelonius Monk.
A versatilidade artística de Vum-Vum estende-se para a literatura: publicou em 2011, com chancela da Chá de Caxinde, a novela "Simplesmente Maria", e tem pronto para publicação os livros "Kota Luanda" e "Memórias do meu Salalé". Uma peça dramática sua, "O processo", vai ser encenada ainda este mês de Novembro pelo grupo teatral Horizonte Nzinga Mbande.
Mas o sonho da sua vida é levar ao palco a opereta "Salalé! Luanda misoso". As démarches para tal, junto de instituições de direito, já vêm de longe e Vum-Vum ainda não perdeu a esperança.
Enquanto isso continua a compor e aonde quer que vá está quase invariavelmente acompanhado pela Marikota, o seu violão de ofício e estimação.
Quanto ao cenário musical actual no país o velho músico não é nada condescendente. Detesta o Kuduro e não o esconde: "O kuduro não tem pulsação melódica, são palavras atiradas e um ritmo que apenas serve para as pessoas bambolearem o corpo". Aposta que daqui a dez anos esse estilo musical "vai desaparecer ou deixará de ter a expressão que tem hoje, assente sobretudo numa formidável promoção".
"A minha rota é outra", diz, reafirmando o seu compromisso com os valores tradicionais da cultura angolana.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O "desespero irredutível" de Bertrand Russel

Bertrand Russel (1872/1970), filósofo britânico, ao mergulhar as suas reflexões no futuro distante da Humanidade, tomado por um "desespero irredutível", escreveu o pensamento abaixo citado, considerado "uma das passagens mais deprimentes da língua inglesa".  

“Nenhum fogo, heroísmo ou intensidade de pensamento ou sentimento é capaz de preservar uma vida para além da sepultura.

Todos os trabalhos de eras, toda a devoção, toda a inspiração, todo o brilho intenso do génio humano, estão condenados à extinção na vasta morte do sistema solar; e todo o templo das realizações humanas terá inevitavelmente que ser enterrado sob os destroços de um universo em ruínas.”


Kinaxixi de grata memória: a infância revisitada

Arnaldo Santos publica “O Mais-Velho Menino dos Pássaros”

Isaquiel Cori

Arnaldo Santos deu a luz (27/03) “O Mais-Velho Menino dos Pássaros”, obra literária que emerge do Kinaxixi mítico da sua infância (que nem por sombras lembra o actual), em cuja floresta exuberante chilreavam as rolas, os bicos de lacre, os bigodes, os cardeais, os catetes, os maracachões, os pardais, os pica-flores, as pírulas, os rabos de junco, os siripipis e as viuvinhas negras. Está-se logo a ver, aquele Kinaxixi era o paraíso das crianças, que nele se entretinham a caçar os pássaros com as suas fisgas certeiras, quando não se ficavam simplesmente a admirar os muitos prodígios da natureza.
O livro, que conta com ilustrações saídas da pena e imaginação de Luandino Vieira, outro kinaxixiano da gema*, contém, segundo o sociólogo Paulo de Carvalho, que o apresentou ao público na União dos Escritores Angolanos, “elementos que podem contribuir para os pais aprimorarem a forma de educação dos seus filhos”.
Arnaldo Santos fez questão de dizer que o seu novo rebento não é para ser lido pelas crianças, devendo elas terem contacto com a estória através da intermediação dos pais, ou outros adultos, que têm de a ler para os petizes. “Gostaria que o livro fosse um bom pretexto para esse tipo de relacionamento e compreensão das coisas do mundo”, sublinhou.

*Um amigo comum trouxe a reclamação do Mais Velho Luandino: afinal ele não é nada kinaxixiano de infância. É sim makulusiano (do Makulusu).
Na verdade, digo eu, a obra de Luandino Vieira transborda de referências ao Kinaxixi; isso, e uma conversa (que tive o grato de prazer de testemunhar, e participar) de Luandino com Arnaldo Santos, em casa deste, em Luanda, recheada de alusões ao Kinaxixi antigo, com toda a sua passarinhada de nomes que soam completamente estranho à miudagem de hoje, levaram-me a intuir, erroneamente, que Luandino Vieira tivesse tido uma infância mergulhada no Kinaxixe.
Em todo o caso, dado que o Kinaxixe e o Makulusu eram  territórios contíguos e os seus pequenos habitantes mais ousados se aventuravam de um lado ao outro, a minha afirmação não estará completamente errada. E suspeito mesmo que a reivindicação de Luandino será, talvez, a assumpção de uma orgulhosa identidade de infância marcada já por toda uma visão da vida adulta recheada de sentimentos, episódios e rivalidades de bairro.

“Nós, os do Makulusu”, o livro mais introspectivo e reflexivo de Luandino Vieira, poderá ser lido também como uma afirmação de identidade local, de bairro, face aos kinaxixianos? Temos de voltar a ler este livro.


As letras das canções da nossa memória

Isaquiel Cori

                                                                                                                       

Carlos Ferreira, o Cassé, jornalista e escritor, entregou ao mercado (18/04, na União 
dos Escritores Angolanos) o seu mais recente livro, “Memórias de Nós”, cerca de centena e meia de poemas-letras para canções escritos ao longo de trinta anos, sendo mais de metade criados ao longo da década de 1980.
Como já se pode inferir do título, “Memórias de Nós”, editado pela União dos Escritores Angolanos, tem um enfoque geracional, é uma entrega do autor, sobretudo, mas não só, para aquela geração de angolanos que, no contexto estrito da literatura, o crítico literário Luís Kandjimbo cunhou como sendo Das Incertezas, e que Paulo Flores, num contexto mais geral, cantou como tendo sido feliz sem o saber. É a geração convencionalmente referida como a dos anos ‘80 e princípios dos ’90 e cujos integrantes estão hoje na faixa etária dos 40/50.
Ao lermos os poemas vocalizados em disco, ao longo dos anos, por artistas como Mamborrô, Eduardo Paim, Paulo Flores, Don Kikas, Ângelo Boss, Joseca e outros, a melodia das canções, como num passe de mágica, enche-nos imediatamente os ouvidos, provinda dos recônditos do cérebro que guardam as memórias mais gratas das nossas vidas.
Eis um excerto de “Traço de união””, musicalmente trabalhado por Mamborrô em 1987: “Era um traço de união / era o cantar da canção / era a força da vontade / era a verdade da nossa idade // era a loucura do tempo / era a vida no momento / era a fase da alegria / era o que a vida sera” (…)
Ainda por Mamborrô, de 1987, “Era miúdo”: “Era miúdo sabia cantar / brincava como um jogo de criança / agora que sinto tempo passar / continuo a saltar ao pé da esperança (…)”
E de “Dizer adeus”, composto por Eduardo Paim e interpretado pelo grupo “S.O.S.”, em 1988: “Dizer adeus aos poucos mais ou menos / sem ter as palavras para falar / dizer que já não há nem movimento / e que parado continuo a andar (…)”
O livro de Cassé, que faz uma singela homenagem ao músico Beto Gourgel, não é propriamente um repositório ou um compêndio de memórias. Estas ganham corpo a partir das palavras-evocações que suscitam todo um clima psicológico de saudade, nostalgia e de recordações difusas, tristes, alegres ou indefiníveis, de situações, vultos e rostos de pessoas queridas, muitas das quais desaparecidas para sempre. Neste sentido, “Memórias de Nós” é uma tentativa de salvar da morte, aqui entendida como o tempo irremediavelmente transcorrido, o mundo difuso dos afectos e das lembranças juvenis de toda uma geração. Lembranças gratas ou ingratas. Lembranças.
No seu livro, como descreve Ladislau Silva, no prefácio, “Cassé fala dele também. Das suas raízes. Da miscigenação. Das influências. Das realidades vividas. Dos ídolos e dos lugares de memória da sua (nossa) terra”. E diz-nos tudo isso, acrescenta, “de uma forma directa, incisiva mas ao mesmo tempo doce, como a brisa que não deixa a chama queimar a magra refeição dos carentes. Antes pelo contrário. Dá-lhe cor, calor e sabor.”
O espólio criativo de Cassé - de letras para canções - agora reunido em livro, foi pesquisado e recolhido por Irene Guerra Marques. Sugestão: “Memórias de Nós” deve ser lido ao som do CD “Cacimbos”, editado em 2006 pela Nzila e que reúne canções  de Paulo Flores, Don Kikas, Ana Maria de Mascarenhas, e outros, suportadas precisamente por letras de Cassé.



AONDE ESTÁ A IMAGINAÇÃO CRIATIVA DAS NOSSAS CRIANÇAS?




Isaquiel Cori

O júri deste ano do concurso literário "Quem me dera ser onda", ao analisar e discutir as dezasseis obras concorrentes, segundo a acta pelo mesmo lavrada, constatou a existência de "sinais de plágio em alguns textos", bem como a "pobreza estética de outros textos". Se a última constatação não é inteiramente de espantar, dada a faixa etária a que o concurso é destinado (dos 13 aos 17 anos) já a primeira, pela mesma e outras razões, deveria suscitar generalizadas preocupações.
O objectivo do concurso, segundo o respectivo regulamento, é "estimular a criatividade literária das crianças e jovens no domínio da prosa de ficção". Os participantes são estudantes de escolas públicas e privadas. Pretende-se, por outras palavras, descobrir e revelar novos valores para a literatura angolana no género prosa de ficção.
O plágio, segundo a académica brasileira Sónia M.R. Vasconcelos, é a "apropriação ou imitação da linguagem, ideias ou pensamentos de outro autor e a representação das mesmas como se fossem daquele que as utiliza".
A detecção de "sinais de plágio" em textos de crianças levanta as seguintes questões: terão sido realmente elas as autoras de tal delito ou por trás delas terão actuado adultos com a ganância de arrebatarem os valores pecuniários dos prémios? Independentemente da forma perfeita ou não como a possam verter por escrito, o que é feito da natural capacidade de imaginação e efabulação das nossas crianças? Estará a acontecer algo, no quesito socialização das nossas crianças, que estará a amputar a sua propensão para o maravilhoso e a percepção de que o mundo é seu e está nas suas mãos o poder de o transformar? Estará a sociedade urbana angolana, definitivamente, rendida ao materialismo "globalista" e à noção fatalista de que tudo o que havia para inventar já o foi, restando-nos apenas consumir ou imitar os produtos culturais que nos chegam maioritariamente pela televisão e a Internet?
Talvez possa parecer exagerado, mas cremos que se faz urgente e necessário analisar em profundidade a mentalidade desta geração que emerge no pós-guerra, que não vivenciou, em consciência, a guerra, mas foi e está a ser educada por pais que, tendo acumulado impossibilidades, carências e frustrações, hoje relativamente desafogados, estão dispostos, literalmente, a dar tudo aos filhos. Esquecem-se, esses pais, apressados em dar aos filhos o que eles próprios jamais tiveram ou sonharam, que o mundo não se dá, conquista-se.
Essa nova geração está igualmente a ser moldada por uma cultura instalada na media que glamouriza o resultado da criação artística, ou pseudo-artística, mas nada diz do processo de criação, do necessário trabalho de oficina que exige estudo e se materializa na obra por mil e uma tentativas, imensas horas de esforço, noites não dormidas e muito suor. A mais das vezes, esses jovens chegam à arte pela ideia de obterem sucesso e reconhecimento a todo o custo e não por força de uma genuína necessidade interior de expressão ou de uma inquietude profunda face ao mundo e à vida. E como a Internet "tem tudo" e está mesmo ao alcance dos dedos, daí a passar à operação "Copy" e "Past" é um pequeno gesto...

Voltando ao concurso "Quem me dera ser onda", talvez se deva dar mais a conhecer aos potenciais candidatos o processo criativo, o trabalho de lavra e oficina do patrono Manuel Rui, a começar pela novela que dá nome ao concurso, um retrato ao mesmo tempo fantástico e realista de uma época de transição em que muitos cidadãos pela primeira vez passaram a habitar edifícios urbanos, carregando consigo muito dos seus hábitos e práticas rurais e suburbanas. Aliás, o universo narrado por Manuel Rui, com animais a morarem em apartamentos e comissões de moradores inoperantes, devia ser encarado pelos gestores das actuais novas centralidades como um catálogo de coisas a evitar. "Quem me dera ser onda", 32 anos depois da sua primeira edição, com toda a sua linguagem vívida, remete para a ideia da extrema importância da literatura como repositório de memórias e auxiliar do conhecimento histórico e sociológico.