domingo, 15 de novembro de 2020

UMA HISTÓRIA ANTIGA: Das manifestações e da incapacidade do Governo lidar com as mesmas*

A incapacidade das autoridades angolanas lidarem com manifestações convocadas por forças sociais que lhe são adversas já vem de longe. No meu livro “Dias da Nossa Vida” – romance – publicado em 2018 mas escrito entre 2014 e 2016, é descrita uma manifestação de estudantes universitários e a forma como as autoridades da província se posicionaram e lidaram com a mesma. A cena tal como está narrada - e as figuras concretas que nela se movem - é ficção. Mas uma ficção imensamente nutrida pela realidade que envolvia o autor. Publico abaixo um excerto da tal cena. O resto só lendo mesmo o romance, editado pela Acácias.

 ISAQUIEL CORI

“Mesmo com toda a carga de vigilância humana e electrónica sobre si, o núcleo duro do movimento de jovens estudantes, nos últimos tempos, conseguia alcançar zonas de sombra e de silêncio em que estava completamente fora do alcance dos Serviços. Foi aí, numa dessas zonas, que esse núcleo congeminou as acções de enfrentamento às autoridades. 

        Nas primeiras horas da manhã de sábado, os primeiros grupos de estudantes convergiram para o largo Angola Avante. Vestidos de camisolas e chapéus brancos, alguns dos jovens carregavam cartazes toscos de papelão com inscrições, bem visíveis, contra a corrupção no ensino e na governação e por mais saúde e emprego. Outros aludiam à falta de liberdade de expressão. Em pouco tempo juntaram-se, no largo, umas largas centenas de jovens, alegres e barulhentos nas suas reivindicações. O Governador retirara-se, um dia antes, para a sua fazenda, e deixara ordens expressas para que, numa eventualidade como a que ocorria agora, Reinaldo Bartolomeu coordenasse as acções das forças de segurança e ordem pública.

        Reinaldo ainda foi a tempo de embarcar o sogro e a cunhada no voo de regresso a Luanda. Transformou a sala de operações dos Serviços de Informação em gabinete de crise e desencadeou, imediatamente, os primeiros passos do plano de contingência.

       

        - Como estamos, comandante? O desdobramento das forças e meios, está feito?

        - Sim. Colocamos um cordão de homens e meios em redor do largo e reforçamos a guarnição e o patrulhamento nos acessos e junto ao Palácio e às instalações da rádio e da televisão. Eles estão isolados. Mas quanto mais cedo os desbaratarmos melhor, evitamos o risco de ganharem simpatia e atraírem mais gente para a sua causa.

        O Comissário Zebedias António era um homem essencialmente prático, como aliás a maioria dos antigos comandantes de brigada das ex-FAPLA. Mais do que um polícia, raciocinava como um militar. E mal conseguia esconder o desagrado por estar a ser chefiado por alguém que ele considerava civil. Era um problema antigo, esse, da má relação institucional entre a Polícia e os Serviços de Informação. Os policiais queixavam-se, muitas vezes, da arrogância e autossuficiência dos agentes dos serviços de inteligência, além de se sentirem enciumados com as regalias materiais de que estes eram contemplados pelo poder político.

        - Vamos acabar com esta manifestação. Mas antes de usarmos a força tentemos convencer os cabecilhas a desmobilizarem voluntariamente.

        - É uma perda de tempo. Veja o que acontece em Luanda. É carregar contra eles e matarmos o mal pela raiz. É preciso não dar asas a esses miúdos. Largamos os cães contra eles e eles fogem com o rabo entre as pernas.

        Reinaldo sabia desse tipo de abordagem e não concordava com ela. Sentia que o Governador, preocupadíssimo com a estabilidade social e política da província, queria, a todo o custo, evitar um banho de sangue. Politicamente saíra de cena e deixara a responsabilidade a Reinaldo. O Comissário Zebedias António não estava sozinho naquele tipo de visão. Em alguns meios castrenses, e até de um certo núcleo político, emergiam, cada vez mais, manifestações de intolerância em relação à diferença, e até mesmo de cansaço em relação à paz. Mas eram minoritários, apesar de serem fortes e estarem bem incrustados no coração do poder político e militar.

     - Comissário Zebedias, vamos dar uma oportunidade ao bom senso. Vamos conversar com os miúdos, a ver no que é que dá.

        - Não vamos cometer, premeditadamente, erros. Não estamos em tempo de conversa. Esses, que você chama miúdos, podem ser a nossa perdição. Os nossos cães estão a salivar, a espera de serem largados. Não compreendo essa hesitação.

        Reinaldo captou o tom de desprezo na voz do Comissário. Estava a ser tratado por cobarde.

        - A autoridade suprema, aqui, sou eu. Comissário, tem dúvida?

        Zebedias António levantou-se e foi fumar um cigarro à janela. Aí, iluminada directamente pela luz do sol, ficou bem clara a cicatriz espessa que lhe ia da parte inferior da orelha esquerda e desaparecia sob a gola da camisa do uniforme policial. Era resultado da guerra. Reinaldo fez tenção de proibir-lhe de fumar aí, mas foi interrompido pelo toque do telefone portátil. Era o Chefe Admirável Redondo. Afastou-se com o telefone para o seu gabinete.

        - Bom dia, Chefe.

        - Já acabaram com a confusão? Mande-me já o relatório a dizer que está tudo acabado. Vocês estão na boca do mundo. Essa manifestação está a abrir telejornais lá fora. Não se fala de outra coisa. Recebi ordens para evitarmos sangue. Nada de sangue. Mas acabe com a merda dessa manifestação.

        - Está tudo a postos, Chefe. Eu, pessoalmente, vou explorar uma última possibilidade de conversa, antes de usarmos a força.

        - Como? Pessoalmente? Não brinques com as multidões.

        - É uma última tentativa, Chefe. De contrário, vai correr sangue. Muito sangue.

        Seguiu-se um longo silêncio. A possibilidade de derramar sangue de jovens desarmados silenciou Admirável Redondo. Os tempos não iam de feição para esse tipo de coisas.

        - Avança como pensas. Dá-me o relatório definitivo, imediatamente a seguir.

        - Está bem, Chefe.

        Reinaldo, mais do que sentiu, viu claramente um lavar de mãos por parte do chefe. O destino dos jovens e a reputação de todo o sistema estavam nas suas mãos. Regressou à sala de crise, com um brilho de determinação renovada nos olhos, e reassumiu, ostensivamente, o comando de toda a operação.

        Zebedias António, militar de formação e experiente, sabia obedecer às ordens.”

*Excerto do romance DIAS DA NOSSA VIDA, de ISAQUIEL CORI

Foto da Editora Acácias