segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

ESCRITOR JOÃO MELO:“Decidi dedicar-me em exclusivo à escrita e à internacionalização do meu trabalho”

Isaquiel Cori

Logo após a publicação, no ano passado, em Lisboa, do seu livro “O Acumulador”, acertamos com João Melo que faríamos uma entrevista a propósito. O escritor fez questão de nos fazer chegar, por portador, um exemplar do livro. Depois de vários contratempos, da nossa parte e não dele, eis que finalmente as coisas se conjugaram e efectivou-se a entrevista através de perguntas e respostas expedidas por email, com as óbvias limitações inerentes a esse formato. O livro “O Acumulador” é uma colectânea de sete contos, “Quatro recordações da infância”, “O acumulador”, “Uma combinação espúria”, “Breve história do doutor Cunha”, “Uma simples história de amor”, “A encruzilhada” e “Os pesadelos do Grande Muata”.

João Melo fala do seu livro, do “investimento” que fez na internacionalização da sua obra, da situação na Palestina e em Moçambique, explica as razões que o fazem viver no estrangeiro, entre outros assuntos



Começou a publicar muito cedo, de tal modo que é um dos membros fundadores da União dos Escritores Angolanos. Pode falar-nos de quando e do ambiente em que começou a escrever? Quais foram as pessoas que o influenciaram a gostar de ler e a escrever?

Eu não comecei a publicar muito cedo, pelo menos em livro. É verdade que os meus primeiros poemas foram publicados em 1973, tinha eu 17 anos, numa revista que havia em Luanda, a Semana Ilustrada; mas o meu primeiro livro – “Definição” – só foi publicado em 1985, quando já tinha 30 anos. Hoje, aos 18 anos ou menos, os jovens principiantes já querem ser reconhecidos como “génios” ou quase.

 

Quem o convidou a assinar a acta de proclamação da UEA?

Foi o escritor Luandino Vieira, por sugestão – creio – de Manuel Rui, que eu conheci em Coimbra, logo depois do 25 de Abril de 1974, e a quem mostrei os meus poemas escritos até àquela altura.

 

Como era a movimentação literária em Luanda, antes do eclodir da guerra entre os movimentos de libertação?

Creio que se está a referir ao período depois do 25 de Abril, quando eu tinha 19/20 anos. Não creio que se possa falar em “movimentação literária” nessa altura, com os combates nos bairros e as balas cruzando regularmente os céus da cidade. Todos nós (mais ou menos) estávamos envolvidos com duas coisas: política e a guerra urbana. É claro que os escritores ou os que tinham aspiração a sê-lo continuavam a escrever, mas era um exercício estritamente pessoal.

 

Logo depois da proclamação da independência, Agostinho Neto preconizava que a literatura devia ser o “carro chefe” da Cultura, com os escritores a serem merecedores de um prestígio que jamais voltariam a ter. Retrospectivamente, acha que aquela opção foi realista?

Não é por não ter dado certo que era “irrealista”. Aliás, é simples: não deu certo, porque não foi aplicada, como tanta coisa em que se pensou nos primeiros anos da independência – recordo, por exemplo, os centros de saúde nos bairros... -, mas que foi posteriormente jogada no lixo. Entretanto, continua válida. A literatura é fundamental, desde logo, a partir do sistema de educação básica, pois que contribui para a cultura humanística de todas as sociedades. Mas hoje ninguém quer saber disso, em todo o mundo: o pessoal quer é dominar a informática, os algoritmos, a chamada “inteligência artificial” e usar tudo isso não para melhorar a vida em comum, mas para ter likes e engajamentos, monetizar e ter sucesso individual; os mais espertos querem trabalhar em qualquer uma das Big Four ou, então, convertem-se em “nómadas digitais” e vão para Bali, passando a viver dos seus investimentos em bitcoins.

 


A chamada angolanidade literária liberta a criatividade ou é uma amarra à criatividade?

Se entender isso pela obrigatoriedade de escrever unicamente de acordo com a geografia e a temática angolanas, de preferência “tradicional”, seja lá o que isso for (normalmente, os “tradicionalistas” esquecem-se que Angola está ligada à história do mundo há muitos séculos!), tende, sem dúvida, a sê-lo, pois “escrever por obrigação”, em princípio, não dá certo. Seja como for, isso não tem impedido que o “nacionalismo literário” tenha dado grandes obras em todo o mundo, incluindo no nosso país. Mas o que eu defendo – há muito tempo! – é que os escritores devem ter a liberdade de escrever sobre tudo o quiserem, como o quiserem e quando o quiserem. Os ditames, sejam eles político-ideológicos, “revolucionários”, formais, linguístico-estilísticos, “identitários” ou “wokistas”, quando impostos a partir de fora (pelos partidos, academias, críticos, “militantes”, o “mercado”, os “influencers” e outras figuras do mesmo teor) são fascistas. Podemos, é claro, usar todos esses viezes, mas sem perder a independência artística e a criatividade.   

 

Das memórias da infância à realidade actual de Angola, “O Acumulador” é, ao fim e ao cabo, apesar dos pesares, uma declaração de amor a Angola. Qual é a versão de Angola que mais ama? E a que odeia?

Como posso odiar o país onde nasci, cresci e trabalhei, pelo qual a minha família, quer do lado paterno quer materno, lutou pra que se tornasse independente, pela qual o meu pai, Anibal de Melo, e o meu irmão, Kiluxa, morreram e pela qual eu procurei igualmente dar o meu melhor contributo, com as minhas limitações, as minhas ilusões e os meus equívocos? Isso não faria sentido.

 

A memória ou a evocação do Pai é uma constante na sua obra. Você escreveu: “… Os heróis são seres morais; os mitos são construções estéticas”. O Pai da sua memória, e da sua obra, é um herói ou um mito?

É um herói, um mito e uma espécie de “oráculo”. Agora não tenho dúvidas: a morte dele, seis dias após a independência e nas circunstâncias em que ocorreu, foi um aviso. O título do meu segundo romance, que estou a escrever, será esse: “O Aviso”.

 

O Mundo, em geral, está tomado pelo politicamente correcto? Estamos, como disse um dos narradores no “Acumulador”, em “tempos de esdrúxulas” proibições?

É lamentável, mas verdadeiro.

 

“O Acumulador” é um conto que apela à cumplicidade do leitor, a quem o narrador se dirige abertamente e se ri do que conta. O sarcasmo, aliás, parece ser uma das marcas da sua escrita. O riso, o sarcasmo, é um expediente literário ou também faz parte da sua forma de ser e estar?

É uma maneira de estar na vida. Nós – nenhum de nós! - não somos tão importantes ou infalíveis como pensamos.

 


O conto “O Acumulador” tal como termina, na senda do conceito de “obra aberta” de Umberto Eco, resulta do “imbróglio” em que o narrador se meteu ou da “prudência e realismo” derivado do facto do personagem ser uma figura camaleónica e ainda em processo, de tal modo que não se sabe que aspecto assumirá amanhã?

Sou fã confesso de Umberto Eco e o conceito de “obra aberta” é uma das suas maiores descobertas. A vida está sempre em aberto. Se não fosse assim, a História, por exemplo, seria uma ciência morta – e não o é!

 

A questão da forma, da linguagem, parece ser uma preocupação sua nos seus últimos livros e também n’“O Acumulador”. Sente que tem de apurar mais a sua voz ou essa tem de ser uma preocupação permanente de todo o escritor?

Sempre tive essa preocupação. Literatura é linguagem, além de forma e estrutura específicas. A propósito, gosto de outro teórico, o russo Mikhail Bakhtin: - “O conteúdo está na forma”. 

 

Um aspecto que intriga leitores atentos é a capacidade de escritores angolanos em posição de poder escreverem obras a caricaturar esse poder. Isso é indício de liberdade reinante no campo da literatura?

A sua pergunta responde a isso cabalmente.

 

Praticamente não há área da realidade passada, presente ou ansiada do país, em que o melhor da literatura angolana não se tenha debruçado de modo crítico. Mas a literatura repercute pouco ou quase nada na vida das pessoas…

Há uma frase que responde a isso: os livros não mudam o mundo, mas mudam as pessoas e estas mudam o mundo... Não é à toa que os governos autocráticos e o mercado controlam a circulação de livros... Fazem-no de modo diferente, mas ambos fazem-no...

 

Com a publicação cada vez mais difícil, as tiragens tão reduzidas, entre 500 e 1.500 exemplares, e a demorarem anos para esgotar nas livrarias, qual é a motivação para um escritor continuar a escrever?

Além da própria escrita, a motivação do escritor são os leitores, claro. Ao contrário do que nos querem impingir os arautos do neoliberalismo radical, livro não é uma mera commodity. Cabe, pois, aos governos genuinamente interessados em promover o livro adotar políticas globais nesse sentido. Mas desde que o pessoal da London School of Economics e outras aparentadas tomou conta da economia em todo o mundo, a coisa está difícil... O que mais me dói, neste momento, por exemplo, é que os meus últimos livros, publicados desde 2021, não tenham um editor em Angola... 

 

Sabe-se que a comunicação social é um dos elos mais fracos do nosso sistema literário. Enquanto foi ministro da Comunicação Social chegou a diagnosticar e a traçar metas para a comunicação social na sua relação com a literatura, as outras artes e a cultura em geral?

A minha passagem pelo ministério da Comunicação Social foi uma experiência pessoal surpreendente.

 

A sua obra expande-se além fronteiras, com edições de obras suas e referências críticas em revistas e jornais e estudo em universidades em Portugal, Brasil, Estados Unidos, Venezuela… Além do reconhecimento do mérito da obra, certamente teve de investir pessoalmente?

“Investir” tempo, ideias, tentar abrir oportunidades, aproveitar as que surgem... Não tenho agente literário, o que é um problema, mas fui abrindo algumas portas aqui e ali... Outras abriram-se por si, pois, em alguns casos, fui contactado por tradutores que abriram as portas de algumas editoras... Agora, a minha editora portuguesa – Caminho – vai passar a cuidar diretamente da internacionalização do meu trabalho, o que é bom.

Deixe-me acrescentar que, com base nessa experiência e porque gostaria de ajudar a internacionalizar a literatura angolana – e não apenas a minha! -, montei um pequeno projeto que o ministério da Cultura avalizou, mas que não tem verbas para financiar; bati à porta de quatro instituições empresariais e só uma delas respondeu: negativamente... Quem disse que literatura é importante, não é? Lembro-me de um presidente africano que, há poucos anos, criticou aqueles que pensam que a nossa cultura é apenas abanar o rabo... Lamentável! 

 

O que é que os leitores qualificados desses países procuram e encontram na sua obra? Tem esse feedback?

Resumidamente, a história de Angola, em particular a recente (a luta pela independência, a guerra civil, a situação política e social pós-independência); as relações de Angola com o resto do mundo, sobretudo culturais; a estrutura narrativa considerada pós-moderna; o humor e a ironia. Sobre esta última característica, costumo dizer que o mérito não é meu: como caluanda (com costela do Golungo Alto e de Malanje), sou tributário do humor luandense (e angolano em geral).

 

Muitos argumentam que a diversidade linguística é um dos grandes obstáculos à circulação e difusão do livro em África. Mas até nos países africanos de língua oficial portuguesa essa circulação e difusão não existe. Qual é o principal obstáculo, afinal?

O problema – real – da diversidade linguística minimiza-se com traduções. Mas a maka é outra, como está patente na sua correta observação de que essa dificuldade também existe entre os países africanos de língua portuguesa (e lusofalantes em geral). A questão é todos os nossos governos – africanos, da CPLP e outros – estão reféns das crenças e práticas neoliberais, pelo que importar e exportar livros é o mesmo que importar e exportar cebolas, tomates, computadores ou minérios. Aliás, corrijo: se calhar, importar ou exportar minérios é menos oneroso economicamente, pelo menos em termos percentuais, uma vez que, para facilitar os negócios, certas taxas podem ser aliviadas ou isentas...  Não sei se sabe, mas, muitas vezes, um livro enviado pelo correio de Angola ou do Brasil para Portugal – país da União Europeia – paga muito mais de frete, direitos e taxas do que o respetivo custo unitário! E vice-versa... Uma coisa patética... Há ideias simples para facilitar e aumentar a circulação de livros entre os nossos países, mas ninguém quer ouvir.

 

Vive actualmente no estrangeiro. Em que país passa mais tempo?

Desde que me reformei, no final de 2019, decidi dedicar-me em exclusivo à escrita e à internacionalização do meu trabalho. Por causa da Covid, 2020 foi um ano para esquecer em termos de viagens, mas deu para escrever dois livros: “Diário do Medo” (poesia) e o meu primeiro romance, com o título “Será este livro um romance?”. Entretanto, tenho dois filhos a estudar nos EUA (um está a acabar o mestrado em literatura e outra está na Brown University, sendo o primeiro estudante angolano em geral – a primeira, no caso! - a entrar numa Ivy League, até agora) e, por isso, resolvemos ficar mais perto deles; assim, a minha base principal desde essa altura tem sido Lisboa, que funciona como uma espécie de plataforma, a partir de onde posso vir facilmente a Luanda, ir aos EUA e também a outros lugares, principalmente por causa de atividades literárias. Mas essa minha vida de “nómada” tem prazo, pois isso de só comer jinguinga de três em três meses não dá! A minha costela malanjina não aguenta...   

 

É um dos fundadores do Clube Literário Kalunga, que uma vez por mês junta num mesmo espaço escritores africanos de língua portuguesa, de Portugal e América Latina, com destaque para o Brasil, para lerem poesia e falarem de literatura. Sendo o principal mentor desse projecto, pode dizer-nos das suas motivações e objectivos?

Simples. Divulgar, em particular aos leitores portugueses, mas não só, a poesia africana contemporânea, mas fugindo a uma espécie de “lógica de gueto”, misturando-a com a poesia portuguesa (o país europeu que “descobriu” o Atlântico) e americana em geral; como sabe, não se pode falar das américas sem falar de África.

 

Quais os critérios para participar nesses encontros?

Estar ou passar em Lisboa e ter interesse em participar. Aproveito para reiterar publicamente o convite aos poetas angolanos que passarem por Lisboa para participarem nesse evento. O mesmo tem lugar sempre na última quarta-feira de cada mês, numa livraria chamada SNOB. Nem sempre – digo-o – eu participo nesses encontros, mas eles não dependem de mim para acontecer. A poeta colombiana Lauren Mendinueta, o português Luís Castro Mendes, o angolano Zetho Gonçalves e o brasileiro Ronaldo Cagiano, além de outros, mantêm a “máquina” a funcionar.

 

Na sua qualidade de articulista, nos últimos anos, escreve preferencialmente sobre temas da actualidade internacional. Essa opção é para evitar eventuais reacções adversas se abordasse temas da actualidade política nacional?

A interpretação é sua.

 

Sendo uma pessoa muito atenta ao que se passa no mundo, acredita que nunca estivemos tão perto da terceira guerra mundial?

Só não vê quem não quer. A paz deve ser a principal bandeira da humanidade, neste momento. Precisamos de criar um movimento pacifista universal, uma ampla frente anti-belicista e anti-extrema direita.

 

Como compreender a impunidade de Israel que parece empenhada em dizimar a população da Palestina?

Alguns atribuem isso – corretamente – à falência moral do Ocidente e do seu complexo de superioridade civilizacional. Eu vou mais longe: os factos atestam que o Ocidente continua imperialista e colonialista. Os seus alegados “valores” são uma falácia. O Estado de Israel, além de uma criação do anti-semitismo europeu (que, não querendo integrar os judeus, inventou um país onde coloca-los), é um instrumento de limpeza étnica e de domínio colonial na Palestina. Outros países fundados por europeus nasceram assim, como a Austrália, que dizimou praticamente os aborígenes, mas na época ainda não havia satélites, Internet ou Tik Tok e, portanto, o mundo não assistiu a esse genocídio em direto. Voltando a Israel, não podemos esquecer-nos também do seu papel de guardião dos interesses do principal império mundial na Ásia Ocidental (a que chamamos Médio Oriente). 

 

Como é que um partido político tão experiente como a Frelimo, em Moçambique, permitiu que a situação descambasse para a confusão actual? Quais as lições que o MPLA, em Angola, tem a tirar do exemplo da Frelimo em Moçambique?

A questão é muito ampla, mas responderei com uma ideia-chave, que julgo estrutural: quando partidos populares e de esquerda (em sentido amplo, do trabalhismo ao marxismo-leninismo, passando pela social-democracia) descobrem “a cor do dinheiro” e abdicam dos ideais de justiça social, aderindo alegremente ao radicalismo económico neoliberal, essa opção conduz à má governação (por exemplo, priorização de políticas equivocadas, que beneficiam os interesses dos ultra-milionários ou candidatos a sê-lo, mas não resolvem os problemas dos cidadãos) e à corrupção (a qual, em certos contextos, como o africano, pode tornar-se descontrolada); ora, o resultado dessa dupla deriva é só um: o descontentamento popular, o qual, no limite, pode conduzir ao fim da hegemonia dessas forças políticas. Esse fenómeno é literalmente global e começou com o trabalhismo inglês no início dos anos 90. É também uma das explicações para o crescimento da extrema direita no mundo. Os pobres estão a aderir a movimentos populistas e messiânicos. Moçambique (e não só) está a correr esse risco. A principal responsabilidade é da desgovernação e da corrupção.

 

Tem medo da Inteligência Artificial? Ela não pode pôr em causa a arte de escrever tal como a conhecemos e a praticamos?

Medo? Não estou a pensar dar-lhe qualquer confiança. Mas não posso deixar de fazer algumas notas. Primeiro, “inteligência artificial” não existe, pois toda a inteligência é natural. Segundo, o mecanismo designado erroneamente (por pura estratégia de marketing) “inteligência artificial” é um instrumento, logo, é instrumentalizável, pelo que, em última instância, depende de quem o detém e dos respetivos interesses (particulares ou estruturais). Por fim, o único receio que tenho do seu efeito relativamente à literatura, em particular, não é a sua suposta concorrência aos “escritores de carne e osso”, digamos assim, mas – isso, sim! – o uso perverso e até criminoso que alguns indivíduos fizerem da IA. São os casos, por exemplo, do plágio e da fuga ao pagamento dos direitos de autor.

……………………

 

Bio-bibliografia 


João Melo nasceu em 1955, em Luanda (Angola), onde fez os estudos primários e secundários. Estudou Direito em Coimbra (Portugal) e em Luanda (Angola), licenciou-se em Jornalismo em Niterói (Brasil) e fez o mestrado em Comunicação em Cultura no Rio de Janeiro (Brasil). É membro fundador da União de Escritores Angolanos e da Academia Angolana de Letras. Desde 2020, dedica-se em exclusivo à escrita, dividindo o seu tempo entre Angola, Portugal e EUA. Publicou até agora 26 livros, entre poesia, contos, ensaios e um romance. Alguns deles, além de lançados em Angola, Portugal e Brasil, foram publicados nos EUA, Cuba, Itália, Espanha, Reino Unido e Tunísia. Tem poemas traduzidos para inglês e francês, publicados em sites e revistas literárias internacionais. Em 2009, foi-lhe atribuído o Prémio Nacional de Cultura e Artes, categoria de Literatura. Em 2023, com o livro “Diário do Medo”, venceu o Prémio de Literatura DST Angola/Camões.

“O Acumulador” é o seu oitavo livro de contos. Neste novo livro, o autor prossegue o seu projecto político-literário: interrogar-se sobre a sociedade e a política angolanas. Além da história e da política do seu país, as relações interpessoais, marcadas por sentimentos partilhados universalmente, são também tratadas nestes contos. Temas inevitáveis, como identidade e raça, são referidos com naturalidade, sem maiores dramatismos. Um destaque particular para as relações entre homens e mulheres no contexto angolano, topo recorrente na obra ficcional do autor.

(Da nótula da editora Caminho)

MANUEL DOS SANTOS LIMA (1935-2024) - O escritor que “optou sempre pelo lado mais difícil da vida e da História”

Isaquiel Cori

Manuel dos Santos Lima (28/01/1935-17/12/2024) era um dos cidadãos angolanos com muitas histórias ainda para contar e que a morte retirou, inapelavelmente, do convívio dos vivos. Na qualidade de escritor contou muitas histórias, nos seus romances “As Sementes da Liberdade”, 1965, “As Lágrimas e o Vento”, 1975, “Os Anões e os Mendigos”, 1984, e na obra dramática “A Pele do Diabo”, 1984. Publicou ainda o livro de poemas “Kissanje”, 1984



Ele não acreditava no papel dos mais velhos como “bibliotecas vivas”, porque, “justamente, a qualidade da memória é esquecer”. 

“A maior qualidade da memória, ao contrário do que se pensa, não é reter. A grande qualidade da memória é esquecer. Porque se não nos esquecêssemos, ficaríamos todos loucos”.

E como a oralidade assenta na memória, cuja maior qualidade é o esquecimento, Manuel dos Santos Lima tinha reservas quanto ao “grande valor” da oralidade. Por isso reputava a escrita como fundamental para registar a memória e os testemunhos.

O escritor manifestou tais pensamentos numa entrevista concedida em 2013 ao jornalista José Rodrigues, no programa Café da Manhã, da Rádio LAC, e publicada em 2018 no livro “Entrevistas com a História”, Editora Mayamba, que reúne precisamente entrevistas de várias personalidades àquele programa. Nela o escritor, instado a dizer quem ele era, respondeu:

“Um cidadão angolano que tentou ser coerente com aquilo que os meus pais me ensinaram e com as opções que fui fazendo perante a idade histórica em que vivi.

Fui para Portugal aos 12 anos para estudar, depois de ter sido o primeiro aluno negro a ser admitido na Escola Primária do Luau, porque o meu pai se bateu por isso. Os jovens do meu tempo iam para as missões católicas ou missões protestantes e depois tinham como destino serem empregados de comércio, camionistas ou pouco mais do que isso. Tive a sorte de ter o pai que tive, que sempre quis que eu saísse da mediocridade em que ele próprio foi obrigado a viver, pois que, com trinta e tal anos de serviço como recebedor de fazenda, foi subordinado de muitos jovens portugueses a quem ele ensinou a trabalhar e que depois, inclusivamente, foram chefes dele.

O meu pai obrigou-me a jurar aos 12 anos, antes de partir, que eu iria para Portugal não para ser vadio nem futebolista, mas sim para tirar um curso. Eu jurei, e quando em 1977 volto pela primeira vez a Angola, Angola independente, e o meu pai alquebrado pela doença me vai esperar ao aeroporto, eu entreguei-lhe os meus diplomas. Mais do que uma licenciatura, eu vinha com o doutoramento. O meu pai abraçou-se a mim a chorar e disse: obrigado meu Deus, missão cumprida, já posso morrer. E dois anos depois, efectivamente, o meu pai morria.”

Numa entrevista em que se apresentou profundamente afro-pessimista (“Se a vida começou em África, como até agora parece que é geralmente aceite, quem primeiro nasce, primeiro morre. Daí eu pensar que talvez a África não seja o continente do futuro mas o continente que está morrer”), Manuel Lima contou a história da criação, em 1961, do EPLA, o braço armado do MPLA, antecessor das FAPLA. Além de ser o idealizador, criador e organizador do EPLA, Manuel Lima, que quando desertara do exército colonial o fizera com todo o seu esquema de organização, também contribuiu, com essa informação, para a estruturação das forças guerrilheiras da FRELIMO, do PAIGC “e até para a própria África do Sul, para o Nelson Mandela”.

O entrevistado narrou igualmente a circunstância da sua saída do MPLA em 1963. “… Começam os grandes problemas do MPLA e se vai dar a cisão do MPLA que acaba por desmoronar em 1963 com a saída de vários membros do seu Comité Director, entre os quais eu, porque [Agostinho Neto] não me convenceu. Mas fi-lo com toda a honestidade e consciente do meu acto. Porquê? Enquanto que, por exemplo um Viriato da Cruz se quis vingar de todas as maneiras do Agostinho Neto, eu como não concordava com a orientação dele, apenas disse Agostinho Neto eu não concordo com essa orientação, portanto vou-me embora. Aqui está o Exército Popular de Libertação de Angola, a única força organizada do MPLA, vou retomar os meus estudos.”

Ápice da fortuna crítica

O ápice da fortuna crítica da obra literária de Manuel dos Santos Lima é o livro “Manuel dos Santos Lima, Escritor Angolano Tricontinental”, organizado pelos professores Francisco Topa e Irina Vishan, publicado pela Edições Afrontamento, Portugal, em 2016. O livro reúne as  comunicações apresentadas no colóquio “Baobá, pinheiro, ácer: Manuel dos Santos Lima, escritor ‘orgânico’”, realizado em Novembro de 2015 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O escritor tinha então 80 anos e esteve presente no certame. Dificilmente poderá haver maior homenagem a um autor vivo.

Interessa aqui transcrever parte significativa da “Nota de Apresentação” assinada pelos organizadores/coordenadores da obra.

“Em parte pela sua vivência tricontinental (e a sugestão de paralelismo com Glauber Rocha é menos despropositada do que pode parecer à primeira vista), em parte pela sua divergência política, a partir de certa altura, com Agostinho Neto e o MPLA, em parte ainda pela contundência da sua crítica à geração da distopia contida no romance ‘Os anões e os mendigos’, de 1984, a verdade é que Manuel dos Santos Lima não tem sido valorizado como entendemos que merece. E a sua obra, com a qualidade que lhe tem sido reconhecida pelos escassos especialistas que nela atentaram, apresenta uma assinalável diversidade (poesia, teatro, romance e ensaio) e longevidade (o primeiro livro, ‘Kissange’, é de 1961, mas inclui textos escritos na década anterior). Introduzir no título deste volume o adjectivo tricontinental é também uma forma de sublinhar a condição multi-exílica de um autor que, ontem como hoje, tem estado acima do seu tempo, fazendo do mundo o seu espaço, sem com isso abdicar da sua condição de angolano. Na conferência de abertura, Salvato Trigo, abordando o conjunto da obra de Manuel Lima, destaca justamente as cicatrizes dos vários exílios que o marcaram, estabelecendo uma aproximação a ‘Les soleils des indépendances’, de Ahmadou Kouroma, e a ‘The interpreters’, de Wole Soyinka, e concluindo que estamos perante uma ‘escrita fundadora, em que se filiarão mais tarde, nos finais dos anos de 1990, Pepetela e Manuel Rui Monteiro’.

A historiadora Anabela Silveira apresenta-nos uma leitura dos romances de Lima à luz dos acontecimentos que marcaram a recente história de Angola, mostrando que foi ‘essa desilusão, essa desesperança, esse descomprometimento em relação ao poder e regime instituídos que lhe permitiu um olhar sagazmente crítico sobre o longo trajecto percorrido pelos angolanos - do colonialismo à luta de libertação, da independência a outras dependências, em que o sonho de uma sociedade mais justa ficou pelo caminho’.

O também historiador, brasileiro, Fernando Afonso Ferreira Junior aproveita a trilogia romanesca de Santos Lima para abordar a importância estratégia do caminho-de-ferro, tanto no contexto colonial como no período posterior à independência. Ainda no domínio da história económica, segue-se o minucioso trabalho de Maciel Santos, sobre as ‘relações industriais’ da Diamang durante a década de 1960, ao longo do qual o autor faz também um enquadramento comparativo com o antigo Congo belga quanto à evolução da ligação entre capital e trabalho em Angola durante as últimas décadas da administração colonial.

Maria Belém Ribeiro e o jovem estudante Rui Teixeira dedicam os seus trabalhos ao estudo da poesia de Manuel Lima, a primeira fazendo uma leitura semiótica de alguns textos de ‘Kissange’, o segundo analisando a composição ‘África’ à luz do Génesis.

‘A pele do diabo’, publicada em 1977 mas escrita na década anterior, constitui o foco dos trabalhos das estudantes Patrycja Litewnicka e Lara Videira, ao passo que o historiador e romancista Alberto Oliveira Pinto analisa com minúcia a dimensão histórica do romance ‘Os anões e os mendigos’, considerando que ele ‘ficará na história da literatura angolana como uma das primeiras e corajosas denúncias do despotismo forjado, herança do discurso darwinista enselvajador, legitimador das desigualdades sociais e humanas no continente africano, falaciosamente projectado para um período pós-colonial e para um neocolonialismo ainda hoje bem vivo’.

Pires Laranjeira procede a uma leitura de conjunto da obra de Santos Lima, que reputa ‘um pioneiro e uma raridade no campo cultural e político dos países africanos de língua portuguesa’, aproximando-o ‘dos escritores africanos que se têm oposto aos poderes estabelecidos nos seus países, desde Mongo Beti a Chinua Achebe, Ngugi Wa Thiong’o, Soni Labou Tansi ou Christopher Akigbo’.

Monalisa Valente Ferreira reflecte sobre os romances mais recentes do autor, ‘As lágrimas e o vento’ e ‘Os anões e os mendigos’, servindo este último de tema aos três artigos finais.

Cristina Vieira trata com demora da intertextualidade entre a narrativa e a Bíblia, Francisco Topa discute a possibilidade de se tratar de uma obra à clef distópica e Ana T. Rocha mostra como a desilusão e a crítica estão simultaneamente próximas e distantes do romance de Pepetela ‘A geração da utopia’. O volume encerra com um trabalho intitulado ‘Elementos complementares para uma biobibliografia de Manuel dos Santos Lima’, que tenta sistematizar e esclarecer alguns aspectos da vida e da obra do autor, incluindo também algumas fotografias menos conhecidas. Resta-nos esperar que o livro tenha alguma receptividade e ajude a fazer justiça a um escritor e a um homem que optou sempre pelo lado mais difícil da vida e da história.”  

Excerto biográfico

Excertos biográficos de Manuel dos Santos Lima estão disponíveis na internet e ao longo da semana circularam profusamente nas redes sociais. Aqui, e dada a limitação de espaço, resta-nos dizer que ele nasceu aos 28 de Janeiro de 1935 na cidade do Cuito, Bié, indo viver posteriormente no Luau, Moxico. Aos 12 anos foi para Lisboa para estudar no Liceu Camões e, posteriormente, na Faculdade de Direito (1953) da Universidade de Lisboa.  Foi residente da Casa dos Estudantes do Império (CEI), tendo colaborado na revista “Mensagem”. Foi o primeiro oficial negro do exército português. Desertou para participar na luta pela independência de Angola. Trabalhou, em Paris, com Mário Pinto de Andrade, Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire na revista “Présence Africaine”.

Abandonou o MPLA em 1963 por divergências com a liderança de Agostinho Neto. Doutorou-se em Literatura Comparada na Universidade de Lausanne, na Suíça., com a tese sobre a obra de Castro Soromenho (1975). Foi professor universitário no Canadá, França e Portugal, bem como em Angola na Universidade Lusíada, de que foi reitor. Em 1992 fundou o partido político MUDAR (Movimento de Unidade Democrática para a Reconstrução).




segunda-feira, 18 de novembro de 2024

ESCRITORES MOÇAMBICANOS FACE À CRISE PÓS-ELEITORAL: Uns desceram do muro e outros saíram da torre de marfim

 Isaquiel Cori

A crise pós-eleitoral em Moçambique, marcada pelas manifestações convocadas pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, que não concorda com os resultados anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral e autoproclamou-se vencedor, tem o condão de não deixar indiferente nenhum cidadão daquele país. As manifestações descambaram para o vandalismo e em muitos casos suscitaram reacção violenta das autoridades policiais. Dezenas de mortes foram confirmadas. Os danos ao património público e privado dificilmente serão devidamente mensurados, mas certamente situam-se na ordem dos milhões de meticais. Venâncio Mondlane, temendo pela sua integridade física, auto-exilou-se na África do Sul e depois algures, de onde, através das redes sociais, emitiu os comandos para as manifestações que obtiveram ampla adesão da população jovem. Essa faixa etária constitui a esmagadora maioria da população de Moçambique e é a que mais sofre com o desemprego e a falta de perspectivas de realização pessoal.

A Frelimo, o partido no poder, tem na sua génese as características de movimento de libertação anti-colonial, tendo nessa condição galvanizado as populações em prol da independência do país. Alcançada a independência transformou-se em partido político movido pela ideologia marxista-leninista. A sua intenção de edificar em Moçambique uma sociedade igualitária, de tendência socialista e pró-comunista, com controlo férreo e monolítico do poder político, esbarrou no contexto adverso da Guerra Fria, com as acirradas contendas ideológicas Leste/Oeste e as invasões do exército da África do Sul sob o apartheid. Este país também servia de rectaguarda segura da rebelião interna personificada na Renamo de Afonso Dhlakama. A queda do Muro de Berlim em 1989 e o consequente desmoronar da União Soviética e da sua influência global levaram a Frelimo a adaptar-se aos novos tempos, a abrir o sistema político ao multipartidarismo e a adoptar a economia de mercado. Fica por conta de um execício de história reversa (ou de “passadologia” em contraponto a futurologia) a questão de saber se, se não fora o contexto mencionado acima, Moçambique alcançaria o desiderato da tal sociedade igualitária, socialista e pró-comunista.  

O que é certo, e no-la diz a realidade dos factos, Moçambique transformou-se numa sociedade profundamente desigual, com a emergência de uma elite privilegiada oriunda dos antigos combatentes pela independência, o alargar da pobreza extrema assente no desemprego maciço e na corrupção generalizada com raízes fincadas nas altas esferas do poder. Ora, a Frelimo, apesar desse cenário, foi sucessivamente ganhando as eleições com maiorias qualificadas. Se essas vitórias se deveram ao mérito próprio, a inépcia dos adversários ou a fraudes, um dia a história vai apurar. O certo é que agora surgiu um candidato que diz que ganhou as eleições, vários observadores internacionais apontaram inúmeras irregularidades ocorridas durante o processo de apuramento dos votos, e a sociedade moçambicana como nunca está fracturada em torno da Frelimo, da oposição e simplesmente da cidadania. Sectores que antes alinhavam-se incondicionalmente com o partido no poder ou escudavam-se na indiferença táctica ou estratégica, ante a actual crise tomam posição, conscientes das implicações existenciais do momento para a história do país e da sua democracia. Num gesto inusitado, a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), na voz do seu presidente Filimone Meigos, propôs a criação de um “governo de inclusão” para acabar com a violência pós-eleitoral. O escritor apelou a “um encontro urgente” entre os dois candidatos presidenciais mais votados, Daniel Francisco Chapo e Venâncio António Bila Mondlane tendo em vista discutirem “a realização de um acordo para terminar com o actual clima de instabilidade e violência para evitar mais perda de vidas humanas e destruição de infraestruturas, com o compromisso sério e verdadeiro de que no encontro se devem fazer cedências mútuas e jamais pautar pela arrogância e posições radicais”.

O escritor Ungulani Ba Ka Khosa, autor do romance “Ualalapi”, pronunciou-se num texto que intitulou “Uma vista às eleições de 2024”. O escritor e professor afirma: “(…) A população quer mudanças profundas, está cansada da esperança prometida, quer que a realidade do dia a dia mude radicalmente, em actos e propostas urgentes; mas o poder, anquilosado na cadeira que o sustenta há mais de 49 anos, não quer ver a realidade que está nas ruas. E isso pode ser fatal para um partido que já foi uma Frente de Libertação e que soube, a seu jeito, adaptar-se aos conturbados momentos da luta de libertação. Mas quando se transformou em Partido, a ortodoxia e o conservadorismo tomou as rédeas do que era o movimento de libertação”. Ungulani Ba Ka Khosa afirma que a Frelimo “está à deriva, desconectada da realidade, e muito longe de um ancoradouro sustentável. Mas está mesmo!”, para depois concluir com o apelo quase dramático: “Reencontrem-se e dialoguem com esta juventude que representa o Futuro. O futuro pertence-lhes! E a nós também”.

O premiadíssimo escritor Mia Couto, numa carta dirigida ao bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique, lançou “um grito de apelo” a esta agremiação para ajudar a esclarecer que “pelo simples facto de se anunciarem ‘pacíficas’ as manifestações não se tornam imediatamente legais” e que “por mais que sejam justas as greves precisam de serem organizadas de acordo com o que está estabelecido pela lei”. Mia Couto pediu ainda à OAM que “com a mesma coragem e isenção com que vieram a público condenar as irregularidade eleitorais, compareçam agora e com urgência para ajudar a informar sobre as regras que a lei define”, pois sendo as regras cumpridas, “elas podem prevenir a ocorrência de excessos quer dos manifestantes quer das forças da lei e evitar vítimas humanas e prejuízos materiais elevados”.

Amosse Mucavele, poeta que emergiu na cena literária do pós-independência, insurgiu-se contra a perspectiva legalista do seu confrade Mia Couto, frisando que “pretender negar a influênca política nos últimos acontecimentos [as manifestações] que o país assiste, é como golpear a realidade com metáforas dolorosas”. Acusa-o ainda de querer “outorgar-se o papel decisivo na manipulação da opinião pública”.

Outro reputado escritor, Marcelo Panguana, pronunciou-se nas redes sociais num texto que denominou “Um país doente”: “… Precisamos de reaprender a amar porque é a ausência de amor que nos afasta. Precisamos afastar a arrogância. A safadeza. O egoísmo. A ambição desmedida. Precisamos, sobretudo, de modificar os nossos discursos, pois, como muito bem disse o escritor Ungulani Ba Ka Khosa, ‘quando uma sociedade se corrompe, a primeira coisa que gangrena é a linguagem’. Precisamos, enfim, buscar nos livros dos escritores moçambicanos os elementos afectivos capazes de sossegar a nossa alma, de nos colocar em harmonia e por conseguinte dignos desta Pátria implantada nas margens do Índico”.

Pelos vistos, acabou o tempo dos escritores estarem comodamente em cima dos muros a ver a corrente do rio passar ou fechados nas suas torres de marfim a cultuar as musas envoltos na fumaça dos seus incensos e com olhares brilhantes pelos sonhos de mundos só possíveis na sua imaginação. Eles desceram dos muros ou saíram das torres de marfim e tomam posições de cidadania a favor ou contra a situação reinante, o que os torna coerentes com as posições defendidas ou combatidas pelos personagens ou pela voz narrativa dos seus contos, romances ou poemas. Aliás, sabe-se que a literatura de Moçambique tem um forte pendor de crítica social e política. Tudo isso reacende, em geral, a questão do papel social do escritor e se ele deve circunscrever-se à escrita literária e ao domínio estrito da cultura ou se deve e pode pronunciar-se a respeito de todos os outros aspectos da vida do país e do mundo.

 

   

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

NÃO FOI DESTA Um dia vamos chegar lá

Como nos tempos actuais -, em todo o mundo -, compete ao futebol, os Palancas Negras fizeram os angolanos sonhar com a possibilidade de ir mais longe no CAN que decorre na Côte D'Ivoire, quem sabe, pelo menos, chegar às meias finais... mas não foi desta.

Isaquiel Cori



Não foi desta, mas valeu a pena. Desde a qualificação para o Mundial de 2006 na Alemanha que não havia tanta sintonia entre os angolanos e a sua selecção nacional de futebol.  A qualificação dos Palancas Negras para os quartos de final do CAN 2024 na Côte D’Ivoire, não sendo um feito inédito (foi a terceira vez) aconteceu depois de um longo período de divórcio com o público, que perdera completamente a fé nos seus rapazes. A jornada para a qualificação nem por isso convenceu, com vitórias magras, muito poucos golos e exibições fracas.

Já os jogos na Côte D’Ivoire convenceram e galvanizaram os adeptos, os golos apareceram com fartura e as exibições foram de encher os olhos. Os Palancas Negras fizeram sonhar a todos, todos começamos a acreditar que era possível ir mais longe e, quem sabe, ganhar mesmo o título de campeão africano. O sonho, que em ocasiões anteriores seria considerado autêntico disparate, pareceu a todos completamente plausível, possível de alcançar aí bem ao dobrar da esquina. Só que teríamos de passar, necessariamente, pela Nigéria.

Era tanta a euforia dos angolanos que muitos de nós esqueceram-se que a nossa selecção nacional tinha diante de si um gigante do futebol, três vezes campeão de África (1980, 1994 e 2013), com seis participações na fase final do Campeonato do Mundo (1994, 1998, 2002, 2010, 2014 e 2018) e dezenas de jogadores a actuarem nos melhores clubes do planeta.

Sonhar não é proibido, é verdade. Tanto é assim que os bravos jogadores fizeram-nos sonhar, tiraram-nos por alguns longos dias da mesmice das nossas vidas, colocaram-nos entre as oito melhores nações do continente e fizeram-nos sentir capazes de ir mais longe. Mas encontramos uma parede chamada Nigéria.

E mesmo assim, em pleno jogo, os nossos jogadores dignificaram o nosso país. Fomos derrotados pela expressão mínima e saímos do campo de ombros e cabeça levantados. O futebol é mesmo assim. Faz-nos sonhar, desilude-nos, mas chega um dia em que concretiza os nossos sonhos mais altos. Um dia, talvez com uma outra geração de futebolistas, certamente com mais organização e mais trabalho, vamos chegar lá, no âmago dos nossos sonhos e despertar vitoriosos. Assim é o futebol. Assim é a vida.

 

domingo, 28 de janeiro de 2024

COMO É SER JOVEM EM ANGOLA HOJE

A Professora Doutora Elisabete Ceita Vera Cruz, autora do livro “Ser Jovem em Angola. Valores e Identidades dos jovens estudantes universitários” (Chá de Caxinde, 2018) é porventura a pioneira dos estudos académicos sobre a juventude em Angola. O Jornal de Angola a entrevistou em busca de um melhor entendimento sobre as dinâmicas actuais da juventude angolana, esse segmento da população com um papel cada vez mais decisivo nos processos políticos, económicos, sociais e culturais

Isaquiel Cori


                                                                                          Elisabete Ceita Vera Cruz

Quais as principais dificuldades com que se depara quem se propõe estudar a situação dos jovens em Angola? E, concretamente, as que pessoalmente enfrentou?

Investigar, em Angola, é tarefa hercúlea... até para escrever um pequeno ensaio, é complicado. As dificuldades são inúmeras, desde logo a inexistência de bibliotecas, o acesso à bibliografia– agora mais facilitado com a internet –, às fontes locais que dificilmente acedem, para além das questões de ordem logística e financeira. E trabalhar sozinha/o, pouco ou nada se trabalha em equipa, é quase um suicídio. Na área das ciências sociais e humanas, é ainda pior. Por conseguinte, qualquer trabalho de investigação sobre a juventude padece desses males. Pessoalmente enfrentei todos, com excepção da bibliografia, porque a pesquisa documental, fi-la fora do país. Mesmo assim, neste quesito, destacaria a dificuldade de acesso a trabalhos sobre o nosso continente, nomeadamente os relativos à juventude.    

 

O seu interesse pelo estudo da juventude angolana não se ficou pelo doutoramento. Pelo seu percurso académico posterior, pode-se dizer que esta temática está no centro da sua actividade profissional?

Os estudos sobre a juventude continuam a ser objecto de interesse, reflexão e preocupação – como não sê-lo, se se trata de uma categoria que numérica e sociologicamente é um indicador do país que temos e que poderemos ter? Mas, neste momento, tenho em mãos um sobre a velhice, que já deveria estar pronto, mas pelas razões já enunciadas está "pendurado”.

 

E porquê agora a velhice?

Por se tratar de uma categoria que, ainda que sem expressão numérica no nosso país, tem uma grande dimensão sociológica. 

 

Pode detalhar a grande dimensão sociológica da velhice, ou dos idosos, na nossa sociedade?

Temos uma pirâmide etária que não abona em nada a pessoa idosa e que revela as profundas assimetrias sociais e económicas. Não indo ao detalhe, mas respondendo à pergunta, o que lhe posso adiantar remete para o lugar que oficialmente os idosos têm no nosso continente e mais propriamente no nosso país, e que é um misto de idade, conhecimento e a reverência e o respeito que daí advêm. Com base no discurso de que é nossa "tradição” e de que somos devedores dos nossos pais e avós e que estes merecem um tratamento cinco estrelas, devemos perguntar-nos se assim acontece. Com uma esperança de vida de 60,29 anos (censo de 2014) que, entretanto, baixou segundo os últimos dados, sendo em número residual, cerca de 2,3 por cento tem 65 e mais anos(ainda segundo o censo de 2014), quero saber se assim é, e compreender os estilos de vida, as dinâmicas desta categoria, no puzzle que é esta nossa Angola. Em boa verdade, esta é também uma abordagem que permite "desvendar” um pouco do nosso país.

 

Regressando à juventude, era seu desejo que a sua pesquisa se constituísse no ponto de partida para os estudos sobre a juventude em Angola. De lá para cá, isso realmente aconteceu?

A inexistência de estudos sobre, leva-me a dizer que sim – seria desejável e fundamental que a juventude fosse objecto de estudos, de produção científica. Dei o pontapé de saída e, de então para cá, que eu saiba, não foi realizado nenhum outro estudo, desta natureza, sobre a juventude. Se me perguntar porquê, dir-lhe-ei que não sei. Avançando com possibilidades de respostas, dir-lhe-ei que poderá ser por desconhecimento, por entenderem não ser importante, enfim...O poder político não pode continuar a falar de, sobre e para os jovens, sem suporte em estudos, não pode ficar-se pela ideologia. Não posso deixar de referir, uma vez mais, que o Observatório da Juventude é um instrumento, entre outros, que faz falta. 

 

Quais as razões que a fizeram escolher a juventude universitária como ponto de partida para os estudos sobre a juventude angolana?

Quis perceber quem eram ou seriam os futuros governantes, líderes, deste país. Quis perceber se estariam enfermados dos mesmos males dos adultos, quais eram os seus valores, se materialistas ou pós-materialistas. Quis compreender os jovens, para assim projectar o futuro do nosso país.

 

E a que conclusões chegou? Concluiu que os jovens universitários angolanos estão preparados para serem futuros governantes e líderes deste país? São materialistas?

Os jovens estudantes universitários inquiridos, sublinho, os inquiridos, são pós-materialistas. O sublinhado pretende chamar à atenção para o facto de não estar em condições de afirmar o mesmo com relação aos jovens estudantes universitários, hoje. Os jovens de há 20 anos não somente não se interessavam por política, como tão-pouco pelo poder, como por exemplo, em serem ministros, o que poderia ser um bom sinal para serem governantes e líderes – sobretudo no concernente ao desinteresse pelo poder.

 

Desde que começou a pesquisar a situação dos jovens em Angola, suponho que por volta de 2011, as coisas evoluíram para melhor ou para pior?

Não sei onde foi buscar o 2011... Comecei muito antes, com os jovens estudantes angolanos em Portugal, ainda antes do novo milénio. Com pequenos inquéritos, junto dos meus alunos, conversas com diferentes actores sociais, para além do que fui observando, é claro... O trabalho entretanto concluído e publicado, teve início no princípio do novo século. Se as coisas evoluíram, sem melhor ou pior, diria que naturalmente evoluíram. Os problemas de ontem, continuam a ser os de hoje, e os jovens estão cada vez mais conscientes da importância da sua acção.

 

É a juventude conflituosa? É a juventude angolana conflituosa?

Os conflitos existiram, existem e existirão em todas as sociedades, sendo não poucas vezes positivos e importantes, e não são um exclusivo dos jovens. Se a juventude é conflituosa? Não estando no seu ADN, aresposta é um rotundo não. Trata-se de mais um estereótipo, uma roupagem,entre muitas.

 

Apesar dos pesares, a Academia e os académicos angolanos têm produzido estudos meritórios sobre a realidade política, social, económica e cultural do país. Muitos desses estudos estão patentes em livros. Porque é que, na sua opinião, esses estudos não têm sido levados em conta pela classe política no sentido de ter uma actuação mais informada sobre a realidade?

Pergunta interessante, pertinente e inteligente. Primeiro, eu advogo que nós não temos academia. Temos alguns académicos, mas academia ainda não temos.Quanto ao desinteresse da classe política, avanço uma primeira possibilidade que é a de porventura os referidos trabalhos não serem considerados pelos políticos, exactamente pela inexistência de academia – se houvesse, teríamos alguma força, e o que hoje acontece é "cada um trabalhar por si e Deus por todos”, havendo mais competição que trabalho de e em equipa. Segundo, as ciências sociais são párias em sociedades, em países em que a liberdade de expressão, a democracia, os direitos humanos não são respeitados. Continuam as ciências sociais a ser o parente pobre e não vislumbro, para já, novos ventos para alterar este quadro. Terceiro, a partidocracia é um elemento mais a considerar, quando falamos de desenvolvimento das ciências sociais. Para além disso, havendo muito mais a dizer, nós vivemos numa sociedade anómica e penso que isto poderá explicar que o que é tido como social, nomeadamente o seu estudo, seja sujeito a escrutíneo ou, simplesmente, ignorado. E, para finalizar, penso que a classe política poderá e saberá responder-lhe a esta pergunta.     

 

Como é que não temos academia se o país tem largas dezenas de universidades, públicas e privadas, e um Ministério do Ensino Superior?

A existência de universidades e de um ministério, não são sinónimos de existência de academia. Há outros indicadores, como por exemplo a produção científica, que é preciso considerar. Ademais, é conhecida a má preparação de alunos e professores, razão porque de há muito advogo que se aposte seriamente na formação de professores do ensino primário. Estes, sim, poderão garantir uma nova geração de angolanos com uma boa formação de base e, consequentemente, uma futura academia que precisamos e merecemos, pujante. 

 

Nota-se, nos seus escritos sobre a juventude, uma grande empatia pelos jovens, diria mesmo uma clara apologia da juventude. Conte-nos, por favor, como e onde nasceu esse impulso de estudar a situação dos jovens em Angola?

Não sei se deverá colocar-se a questão em termos de empatia. E, obviamente, não se tratou de um impulso. É um misto de importância e necessidade. Diria mesmo de urgência. Ontem, como hoje, entendo que a juventude angolana deve ser objecto de estudo. Ainda relativamente ao que chama empatia, o que posso dizer-lhe é que tenho empatia pela juventude e por todos os agentes de mudança. Eu própria, que não integro esta categoria por causa da variável idade – sou uma jovem veterana –, tenho-me como agente de mudança, o que significa que a mudança não é exclusiva dos jovens.

Penso que já respondi, em parte, à pergunta. Mas, para ser mais precisa, diria que surgiu do meu contacto com os estudantes universitários angolanos em Portugal (fui professora de uns poucos), das minhas vindas a Angola enquanto vivia e trabalhava no exterior do país. Tudo isso com o pano de fundo da guerra, da estereotipização (negativa) da juventude, sem esquecer uma reportagem de um canal de TV português que termina com um jovem, adolescente, a dizer que no futuro se vingaria das agruras por que passava – gostaria muito de saber dele... E a questão que me colocava era, e foi, qual seria o futuro de Angola, tendo em atenção o descontentamento relativamente às condições sociais e económicas, já bem patentes na altura – estamos a falar do século passado. Os trabalhos de José Machado Pais, por muitos considerado o pai da juventude em Portugal, também foram inspiradores no decorrer do processo.

 

Gostava que definisse para os nossos leitores o que é ser jovem, não abstractamente, mas em Angola, hoje?

Diria que ser jovem em Angola, hoje, de forma resumida e tendo em atenção as diferentes juventudes, é ser pró-activo e, por conseguinte, agente de mudanças sociais, políticas, culturais, económicas, entre outras. As dinâmicas sociais vêm-no demonstrando. Há um mundo a que vou chamar "subterrâneo”, mas um subterrâneo pejado de luz, a acontecer, diariamente, e que desconhecemos. Há múltiplas associações que actuam em diferentes áreas, há gente jovem interessantíssima que importa conhecer, temos muitos "fazedores”, portentos por revelar. Falei dos jovens, mas também os há nas outras categorias.  

 

Os jovens são mais vistos como um problema, como uma ameaça à ordem social, do que como o motor da solução dos problemas?

Sim, para além da falta de conhecimento, muito por causa da estereotipização, por um lado, por outro por esta categoria, a juventude, poder ser decisiva para a mudança e, por isso, considerada perigosa em sociedades que oferecem grande resistência à mudança, sociedades não abertas, na esteira de Popper e de Bergson. Mas este poder transformador, não é exclusivo da juventude. Qualquer indivíduo, não importa a idade, variável e um dos indicadores da juventude, pode e deve ser capaz de inspirar, impulsionar e transformar a sociedade. No nosso caso e no do nosso continente, porque os jovens são numericamente superiores, é natural que as mudanças provenham mais desta categoria. É claro que há outros factores a considerar para essa maior disponibilidade dos jovens e que terá a ver com o facto de se encontrarem num momento, numa fase das suas vidas em que a sede da descoberta será maior e mais evidente.     

 

Ainda que empiricamente, pôde avaliar o desempenho dos jovens nas últimas eleições gerais? O que tem a dizer sobre a sua participação?

Acompanhei, claro, na medida do possível... Muito interessante. E entusiasmante. Espectaculares! Nota 10!

 

Os seus estudos sobre a juventude praticamente foram alertando para o que finalmente ocorreu nas eleições, na província de Luanda. Nesse sentido, o seu artigo "Angola Jovem: Revisitando os Jovens de Ontem, Interpelando os de Hoje” constante do livro "Angola 45 Anos: O político, o social, o económico e o cultural - Entre balanços e perspectivas” é bastante elucidativo. Na verdade, já esperava o que aconteceu em Luanda?

Outra pergunta interessantíssima. E a resposta é sim. Os sinais eram claros... E isto também prova a importância dos estudos, da investigação, da ciência, da sociologia.

 

Se não se importa, gostaria agora de lhe colocar perguntas, que na verdade são suas, que constam do livro "Ser Jovem em Angola. Valores e Identidades dos jovens estudantes universitários”. Mas peço-lhe encarecidamente que repita ou reformule, resumidamente, aqui as respostas para os leitores do Jornal de Angola. Primeiro: quem são os jovens angolanos?

A sua pergunta é sobre os jovens angolanos, e não exatamente sobre os jovens angolanos estudantes universitários. Os jovens de ontem, de há uma década, não são os de hoje ou, dito de outro modo, a Angola de 2012, não é a mesma de 2022. Mas, para compreendermos o presente, temos que convocar o passado. Assim sendo, e respondendo-lhe, sem rede sobre quem são os jovens angolanos, a que acrescento hoje, somente com base na observação e leitura de alguns trabalhos (ainda que não fossem sobre a juventude), digo-lhe que são cada vez mais instruídos e informados. Mas como a juventude é plural, diria que continuamos a ter jovens sem oportunidades de se revelarem, jovens sem rumo, no espaço urbano, periurbano e rural. Temos a geração Z em crescendo, que se cruza com as outras. Temos cada vez mais gente, particularmente jovens, a quererem emigrar, fenómeno a que se vem assistindo há já alguns anos, e devemos perguntar-nos porquê... E temos os jovens no sector informal e os desempregados, em grande número, que não podem ficar-se pelas auscultações, discursos e promessas. 

 

Segundo: o que pensam e como pensam os jovens angolanos?

Esta acaba por ser a continuação da pergunta anterior e, por conseguinte, vou pelo mesmo diapasão. Falar dos jovens de hoje, supõe um novo trabalho aturado de investigação. De qualquer modo, permito-me adiantar que estamos perante uma juventude com novas dinâmicas e para quem as palavras submissão e inação vêm sendoarredadas da sua práxis. Os jovens também pensam que podem fazer diferente e melhor, o que não é novo, e também não é necessariamente verdadeiro. Quando se diz que são "imediatistas”, um cliché, quem o diz talvez deva antes reflectir em torno do significado da palavra e, claro está, procurar perceber as razões para o que chamam "imediatismo”. O "agora” e "já”, para além de não ser exclusivo dos jovens – quantos adultos não pensam e agem do mesmo modo? –, pode ser prenúncio de falhas do sistema, falhas do aparelho de Estado. A título de exemplo, tomemos a ausência de transportes públicos, combinada com a existência de carros de alta cilindrada que os agentes do poder político ostentam... como é que o cidadão, mais ou menos jovem, se sentirá, o que há-de dizer, se não reclamar, contestar, se não exigir? A insustentabilidade de tal situação, "n” vezes multiplicada, tem respostas, tem repercussões, tem consequências... Assim é que, e só para rematar, acrescentaria que o que pensam e como pensam os jovens angolanos, é boa parte das vezes, se não sempre, ditado pelos adultos e por quem governa, isto é, pela sociedade e pela forma como vivem. Porque estudos sobre a juventude são necessários, perguntemos então, aos jovens, eles próprios, o que e como pensam.    

 

Nas suas obras cita, amiúde, textos literários, de ficção.  A literatura, a ficção, agrega valor à pesquisa em sociologia?

Absolutamente. Ainda que muitas vezes, como se diz, a realidade ultrapasse a ficção. Mas a literatura tem o condão de adentrar e desvendar o mundo, de fazer-nos viajar por diferentes universos, indivíduos, culturas, em que se cruzam diferentes matizes e em que o social – e tudo é social – se manifesta e desvenda livremente e de forma sublime. Para além de me deliciar, do prazer absoluto que daí retiro – a leitura pode ser orgíaca –, eu aprendo muito com a literatura. A arte, no geral, tem o poder de nos "enfeitiçar” e, ao mesmo tempo, de nos despertar, de nos descobrirmos, de (nos) revelarmos o melhor e o pior que há em nós, humanos. A literatura permite, por exemplo, conhecermos as juventudes não somente do presente, como do passado, de outras geografias e é, para mim, uma peça-chave no meu trabalho, e não só os trabalhos relativos à juventude. A escritora do momento, Annie Ernaux, Prémio Nobel da Literatura deste ano, diz numa entrevista que "a literatura deve trabalhar para a justiça e para elevar o pensamento”. Não sei se a literatura "deve trabalhar para”, mas direi que a literatura, como outras artes como a música, a pintura, não somente revelam os indivíduos e as sociedades, como têm o condão e o poder (outra vez o poder) de nos inspirar para sermos melhores connosco e com os outros, o que nos remete para a dimensão da ética, dos valores. E aqui também é necessário referir e sublinhar a estética imanente nas artes, que infelizmente não se ensina e aprende nas escolas – somente quem estuda filosofia ou artes –, que é uma dimensão inerente ao ser humano, que precisa de ser mais explorada, conhecida e valorizada. Falo da estética no geral, como não podia deixar de ser, mas gostaria de destacar a africana, a angolana...         

 

Para quando o próximo trabalho sobre a juventude?

Tão logo tenha as condições para o fazer, e refiro-me a um trabalho de fôlego. Enquanto isso, vou cruzar alguns dados que penso merecerem melhor tratamento e poderem ser interessantes aprofundar e dar a conhecer.

 

Que temas, sobre a juventude, pensa serem candentes?

Candente e urgente é conhecermos as nossas juventudes. Mas destacaria temas e estudos sobre a jovem mulher, a violência no namoro, a criminalidade, os gangues, conhecer os chamados roboteiros (entre os heróis que temos, eles integram essa lista; penso que eles são uns heróis porque aliam força, agilidade e perigo, quando se trata de driblar o trânsito, são uns autênticos resistentes), sobre a geração Z, os adolescentes, os jovens adultos... Para além da juventude, mormente da sociologia da juventude, temos a sociologia urbana e rural e uma panóplia de outras áreas (que não somente da sociologia), e aqui destacaria a problemática do género, da mulher, da família, do (des)emprego, da educação, da saúde, da pobreza, do ambiente, da religião, do racismo (esta questão do cabelo tem muito que se lhe diga), sobre a escola (veja-se o caso da manifestação dos alunos e do professor que clamavam por carteiras, e que terão sido "protegidos” com disparos), a universidade, enfim, um mundo por desbravar de forma sistemática, estruturada e contínua.   

 

E o trabalho sobre a velhice, é para quando?

É um pequeno trabalho que espero conseguir terminar no próximo ano.

 

Mas também escreve ficção...

Este já é outro capítulo que sei não caber nesta entrevista.

 

Enfim... Quem sabe numa próxima... 

Muito fica por dizer... Entretanto, gostaria de terminar dizendo que como vivemos num país cujo poder político é omnipresente, omnipotente e não sei se omnisciente, e não gosta de ouvir vozes discordantes, que não necessariamente dissonantes, não posso deixar de manifestar estranheza por me quererem ouvir. Não sei se será bom, ou mau sinal. Estranho, muito estranho é, seguramente...

 

 

PERFIL

Elisabete Ceita Vera Cruz  docente universitária, investigadora e consultora.

Doutora em Sociologia, Mestre em Antropologia Cultural e Social e Licenciada em Filosofia, tem colaboração dispersa em livros e revistas científicas.

Entre os livros publicados, destacamos "O Estatuto do Indigenato. A legalização da discriminação na colonização portuguesa” (Chá de Caxinde), "Ser Jovem em Angola.

Valores e Identidades dos jovens estudantes universitários” (Chá de Caxinde) e, em co-autoria "Angola 45 Anos: O político, o social, o económico e o cultural - Entre balanços e perspectivas” (Mayamba)