terça-feira, 15 de outubro de 2013

"São falsos puristas os que acham que em Angola se deve falar o português como em Portugal"

Entrevista a Linguista Amélia Mingas


Isaquiel Cori

O modo de estar dos angolanos no seio da língua portuguesa, o seu contributo para o enriquecimento dessa língua e o futuro da mesma em Angola, foram assuntos abordados ao longo da entrevista que a linguista Amélia Mingas, decana da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, concedeu ao jornal Cultura. O Novo Acordo Ortográfico   preencheu um largo espaço da conversa que decorreu no gabinete da entrevistada. "Como é que o vamos assinar quando a nossa variação não está lá dentro?", argumenta Amélia Mingas, defendendo a sua não ratificação pelo país.

Jornal Cultura - Como é que a senhora se auto-define? Como é que a Dra. Amélia Mingas avalia a Dra. Amélia Mingas? 

Amélia Mingas - Como alguém que se preocupa com a problemática linguística do país, até por inerência de formação, porque sou linguista. Para além disso tive uma vivência que criou condições para que me conformasse não só a essa problemática linguística mas ao país no seu todo.
JC - Em termos de  formação como é que vai para a área da linguística?
AM - Isto começou em Lisboa, onde fiz a licenciatura em filologia germânica. Tive acesso à linguística geral, à linguística portuguesa e, acima de tudo, à linguística inglesa e alemã. Ao  estudar os períodos antigo, moderno e contemporâneo dessas línguas, fiquei muito sensibilizada, sobretudo ao nível do alemão, porque eu lia alguns sons que me lembravam o kimbundo. Em função disso coloquei-me a questão: se é possível estudar essas línguas nesses séculos todos, certamente as nossas línguas também podem ser estudadas. Essa preocupação ficou para sempre em mim. Entretanto, fui levada pela conjuntura própria do ambiente que se vivia em Lisboa e em Angola, já que o meu pai foi preso político tal como outros familiares e amigos meus. Aliás eu já havia iniciado uma actividade política na clandestinidade, em que estive integrada no grupo de Santa Cecília, com o padre Vicente (não me recordo do seu apelido).
JC - Esse grupo praticamente não é mencionado no historial da luta clandestina anti-colonial...
AM - Mas é um grupo interessante. Tínhamos reuniões na Liga Nacional Africana. O padre Vicente, que já é falecido, era um jovem muito comprometido com a revolução e criou um grupo de jovens, mais jovens do que ele, de que eu fazia parte bem como uma série de amigas e colegas como, por exemplo, as irmãs Irene e Engrácia Cohen, Thalita e Sílvia Belo e Olga Lima. Nós ajudávamos à missa e logo a seguir recebíamos formação política. Partíamos para os bairros onde contactávamos as pessoas e as sensibilizávamos para a causa da independência. O escritor Arnaldo Santos também fazia parte do grupo. Lembro-me que na altura ainda se ia à Chicala de barco. Tudo isso foi nos anos 1960.
JC - Uma das conclusões a que chegou, nas suas pesquisas, é que a variante angolana do português é determinada pela interferência das línguas nacionais?  
AM -  Sim. Não se compreende uma variante que não tenha uma componente nacional. É uma maneira própria de estar na língua portuguesa que é dos angolanos. E ela reflecte-se não só no léxico, com termos ligados à nossa realidade, mas também no modo como transformamos a estrutura do desenvolvimento de frases da língua portuguesa. Isso acontece com todos os povos. Há uma contribuição dos angolanos para o enriquecimento da língua portuguesa, que a torna adaptada à nossa realidade. São novos termos que se introduzem e que fazem parte da nossa maneira de estar no mundo mas que também entram na língua portuguesa.
JC - A variante do português angolano está muito patente no linguajar popular e na literatura mas no ensino predomina a norma de Portugal. Aí, a variante angolana é combatida e tida como erro...
AM - Este é um problema que já há algum tempo enfrentei no ISCED, onde então eu era responsável pelo departamento de Língua Portuguesa. Reunimos os professores ligados à área de língua portuguesa e chegamos a uma conclusão: enquanto formadores temos de nos apoiar em documentos e orientações que conformem a nossa actividade. E porque não existe nenhuma norma do português falado em Angola, existe a necessidade, cada vez mais premente, dos angolanos formados em linguística se reunirem e verem as características da língua portuguesa falada em Angola.
JC - Aí a Faculdade de Letras teria um papel importante a desempenhar?
AM - Sem dúvida alguma. Mas, de modo geral, todos os docentes. A Faculdade pode fazer e apresentar uma investigação, mas dentro de uma estrutura específica. De momento o país não tem um centro de línguas nem uma associação dos linguistas. Deveríamos juntarmo-nos para vermos qual é a especificidade da nossa língua e definir o que é ou deveria ser ou não erro na língua portuguesa.
JC - Como é que a norma seria fixada? Pela elaboração de uma gramática do português angolano, por exemplo?
AM - Sim. E através do estudo dos casos que se notam a nível do português angolano. Por exemplo, há uma tendência extraordinária dos angolanos, a nível da regência verbal, para a anulação da preposição "a" pela "em". Dizemos "ir em" em vez de "ir a": "ir na escola", "ir no hospital", "ir no enterro", ao invés de "ir à escola"; "ir ao hospital", "ir ao enterro". Nas nossas línguas quando se vai para um espaço determinado, por exemplo o mercado, a escola ou o hospital usa-se sempre "mu", isto é, "dentro". Isso deve ter se imposto no nosso falar de tal modo que está vulgarizado. Pela norma, adquire-se ou introduz-se como orientação determinado fenómeno quando ele se impõe pelo número de falantes. A verdade é que ao nível da norma angolana temos de ter essa sensibilidade.
JC - Tornar norma esses modos de dizer não levantaria objecções por parte da elite "bem falante" da língua portuguesa?
AM - Toda a minha experiência de formação, da primária à Universidade, foi feita com professores portugueses. Só mais tarde fui estudar a França. Os professores portugueses corrigiram-me sempre e logicamente eu não digo "ir na escola". Mas isso já sai naturalmente nos nossos jovens, o que tem de ser respeitado. 
JC - Numa recente entrevista à Rádio Nacional a senhora defendeu a posição do Executivo de não ratificar o novo acordo ortográfico da língua portuguesa porque, segundo disse, não incorpora a variante angolana. Não é um contrasenso, tendo em conta que a variante angolana do português nem sequer é legitimada institucionalmente no ensino e, de modo geral, na comunicação social em Angola?
AM - O caso é diferente. O acordo tem em conta as variações, alterações da língua. Como é que o vamos assinar quando a nossa variação não está lá dentro? A minha defesa não é ir à língua portuguesa, que é património comum de todos nós, e alterá-la. Por exemplo, como é que se escreve "Mbanza Congo"? O português, porque não tinha "Mb" registou "Banza". Mas o termo não é português! Quando alguém que conhece uma língua bantu como nós vê "Banza" não vai poder pensar que é "Mbanza" e aí a comunicação terá problemas. Mais ao norte, em Cabinda, temos "Mbuco Nzau", onde "Nzau" significa elefante, mas o português registou "Buco Zau". Portanto, "Zau" não significa elefante na língua de origem. Quer dizer que se o termo é kikongo, kimbundo ou umbundo e temos que utilizá-lo porque faz parte do nosso património cultural temos que usá-lo na língua de origem, porque senão estamos a descaracterizar a estrutura dessa língua.
JC - Terá havido então um défice negocial aquando da discussão do acordo ortográfico?
AM - Houve. A Dra. Luísa Dolbeth e Costa, que fez parte da comissão, insurgiu-se dizendo que não podia assinar o acordo sem que o mesmo fosse discutido a nível do país. Como digo, o Acordo Ortográfico é um problema essencialmente político, que não tem a base científica. Mais tarde arranjou-se alguém para ir assinar o acordo.
JC - Arranjou-se alguém?
AM - Sim, indigitaram outra pessoa para assinar por Angola. Mas a verdade é que o acordo não foi avante, não foi implementado. O último Acordo foi mais agressivo, porque, a nível da reunião da CPLP na Guiné Bissau, os presidentes decidiram que num conjunto de sete países (Timor Leste ainda não fazia parte da CPLP) desde que três (que nem sequer era cinquenta por cento) o ratificassem, o Acordo entraria imediatamente em vigor. Por aí vê-se a base política do Acordo. E quem o ratificou? Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Não tenho nenhuma crítica a fazer aos países que o ratificaram com o Brasil. Hoje em dia diz-se que o Brasil tem 200 milhões de habitantes e, portanto, pode. Não posso estar de acordo com isso. Se formos pelo argumento de que os milhões podem decidir então não vamos só pela língua, pode ser mais alguma coisa qualquer. A língua é património comum e temos todos o mesmo direito a ela. Enquanto património comum que se vai alterar, quanto a mim, devemos nos perguntar, por exemplo, como é que nós que escrevemos a língua portuguesa vamos escrever "Mbanza Congo" sem prejudicar o étimo africano, a palavra na sua origem, e também sem ferir a fonologia e a ortografia portuguesa. Acho que a base da discussão do Acordo é que está errada.
JC – Há quem argumente que independentemente de Angola ratificar ou não o Acordo ele entra-nos porta a dentro seja pela influência das televisões de Portugal e do Brasil ou pela tecnologia, com os programas de correcção automática do português nos computadores. Quer comentar?
AM - Por esse andar Portugal, enquanto país da União Europeia, também deixaria de falar português, já que os portugueses são obrigados a falar outras línguas que não o português na UE. Quando o meu computador tenta corrigir o que escrevo, eu digo "adicionar o dicionário" e escrevo normalmente. Estive no Brasil, na Universidade da Bahia, em representação do Reitor [da Universidade Agostinho Neto] para a assinatura de um protocolo e eles apresentaram-me o documento escrito no português brasileiro. Recusei-me a assinar o documento tal como estava escrito porque o Estado angolano ainda não ratificou o Acordo Ortográfico. Eles desculparam-se e o Dr. [Carlos] Lamartine pôs o documento na língua tal como a gente escreve e então as duas versões do documento foram assinadas. Isso faz-se. Mas é preciso que saibamos o que queremos.
JC - E nós sabemos o que queremos?
AM - Eu pelo menos sei.
JC - Referia-me do ponto de vista institucional.
AM - A nível da língua não há tanto essa ideia mas por um certo posicionamento verificamos que os angolanos sabem o que querem. Querem ser respeitados como seres pensantes e como seres capazes também de contribuir para um saber geral. Mas é preciso que quando se vai a áreas específicas haja lá gente capaz de defender aquilo que os angolanos querem. E também é preciso alguma discussão. Há termos que são nossos e que entram para a língua portuguesa. Temos de os escrever de modo a que os portugueses os consigam ler mas também de modo a que a nossa origem, a nossa marca, não se perca.
JC - Retenho a expressão "termos que entram para a língua portuguesa". Isso implica uma instância homologadora, de legitimação, que não está situada em Angola. O que diz em relação a isso?
AM - Não está porque não temos uma norma definida, como acontece com o Brasil. Mas há quantos anos o Brasil existe como um país independente? Nós ainda no último quartel do século passado estávamos sob dependência portuguesa! Estamos num momento difícil, com problemas tremendos, que é o da construção da nossa Nação. Ainda estamos a nos constituir como Nação pluriétnica, plurilinguística e pluricultural. Muitos de nós ainda pensam em função do grupo etnolinguístico a que pertencem e não em termos de todo o país. Muitas vezes eu digo aos meus colegas: "eu já saí do kimbo há muito tempo".
JC -  Para onde nos levará a dinâmica do português em Angola no quadro do processo da criação e consolidação da Nação angolana e da procura de um modo próprio de estar na língua portuguesa "sob pressão das línguas nacionais"? Poderá eventualmente haver uma evolução tão radical que os angolanos de hoje não serão percebidos pelos angolanos de daqui à cem anos?
AM - Não. Uma coisa é falar kimbundo, umbundo ou kikongo e outra é falar português sabendo kimbundo, umbundo ou kikongo. A interferência na língua portuguesa cria-se como? Quando a gente quer definir algo que faz parte da nossa vivência como africanos que não existe na sociedade portuguesa. Por exemplo, o funge, a kizomba, a kifufutila, o bombó, são criações africanas, são parte da nossa vida, da nossa maneira de estar no mundo e, logicamente, entram na língua que nós utilizamos para interagir com os outros, que são angolanos. Mas como é que entram? Cabe a nós angolanos definir.  O problema é que somos muito poucos linguistas, concentrados  e preocupados com essa situação. Mas já fomos menos do que somos agora. Agora temos muitos jovens a trabalhar connosco nesse sentido. Os estudantes que estamos a preparar [na Faculdade de Letras] devem ser integrados, por exemplo, como assessores dos administradores e outros dirigentes nos seus contactos com as populações nos kimbos. 
JC - O que está a ser feito na Faculdade de Letras em termos de pesquisa linguística?
AM - Temos um grupo de docentes e discentes que está  a fazer investigação nas províncias sobre as línguas que ensinamos aqui: kimbundo, umbundo, cokwe e kikongo. Estamos a elaborar livros de leitura e de exercícios nessas línguas. No ano passado, em Fevereiro, fizemos recolhas em vários municípios do Uíge, e, ainda no mesmo mês, estivemos no Huambo. Este ano já estivemos em Malange e na Lunda-Sul. Falamos com sobas e mais velhos, recolhemos dados. 
JC - Quando é que vão surgir as primeiras publicações baseadas nesses estudos?
AM - O material sobre o kikongo está na gráfica e o sobre o umbundo já está feito.
JC - As publicações vão circular apenas no âmbito interno da Faculdade ou serão também acessíveis aos grande público?
AM - As pessoas que quiserem poderão ter acesso. Mais tarde faremos edições bilingues kimbundu/português, umbundo/português, kikongo/português e cokwe/português. Outra das preocupações que temos é a tradução de obras importantes para a formação dos nossos estudantes, inexistentes em português, como é o caso de "A Filosofia Bantu", [de R. P. Placide Tempels].
JC - Qual é o enquadramento que a Faculdade de Letras faz à literatura angolana?
AM - A literatura angolana está integrada em duas áreas: no curso de Língua Portuguesa e Literaturas em Língua Portuguesa e no curso de Línguas Angolanas e Literaturas Angolanas.
JC -  Voltando à problemática da língua: não estará a fazer falta uma Academia Angolana de Letras?
AM - Faz falta. Há tempos estive no Brasil e coloquei junto de colegas das academias brasileiras a possibilidade de alguém lá ir fazer um estágio de um ou dois meses para estudar a estrutura de uma academia. O que é que faz a academia? Ela segue as evoluções e fixa aquilo que se impõe na prática. Por exemplo, a Academia Angolana de Letras teria que fixar que aqui em Angola tanto "ir a" como "ir em" é certo e não errado. Mas a essa posição já chegaram os professores da língua portuguesa no ISCED, na altura em que eu era responsável do departamento de língua portuguesa. Como não há a definição de uma norma angolana nós pedíamos que os professores ensinassem a norma portuguesa, só que tinha de haver sensibilidade, de modo a que quando o aluno dissesse "fui no hospital" não devia ser marcado como erro. A esse nível o problema estava superado. Quando o aluno diz "comeu o meu dinheiro" em vez de "roubou o meu dinheiro", a gente não deve considerar erro, porque trata-se de uma criatividade que nós definimos em linguística como expansão semântica, isto é, a nível do significado.
JC - Expressões como "ir no hospital" estampadas num jornal de referência não cairiam muito mal?
AM - Cairiam mal aos falsos puristas e que não estão a ver a realidade angolana como capaz também de criar condições e de viabilizar algo que já começa a ser uma regra na língua.
JC - Quem são os que a Dra. Amélia Mingas considera "falsos puristas"?
AM - São falsos puristas os que acham que o português que se deve falar em Angola é o português que se fala em Portugal. Enquanto angolanos eles deviam pensar na realidade angolana. 
JC - Convenhamos que a realidade linguística angolana é bastante complexa?
AM - Tudo é complexo e a língua cria sempre muitos problemas. O que acontece é que a língua portuguesa foi aqui imposta pelo processo colonial mas é uma língua completamente distinta da nossa. O português que a gente fala é nosso. Foi-nos imposto e o adoptamos com a nossa marca. O nosso som está lá todo. A vogal que o português fecha nós abrimos. No aspecto da língua estamos muito mais próximos dos brasileiros porque muitos dos nossos antepassados para lá foram e deixaram a sua marca na língua. A língua evolui com a comunidade que a fala. 
JC - Como é que avalia o contributo da literatura angolana para o enriquecimento da língua portuguesa?
AM - No fundo os nossos autores tentam seguir a evolução da língua portuguesa em Angola. Os escritores reflectem a realidade que vivem. O meu amigo Luandino [Vieira] a partir de uma determinada altura estava a inventar uma língua que era já só dele. Mas no [livro] "Luuanda" a gente via realmente o nosso povo  a movimentar-se, a falar, a viver. O escritor é um criador, também inventa mundos.

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Amélia Arlete Dias Rodrigues Mingas (1946, Ingombota, Luanda) é licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorada em Linguística Geral e Aplicada pela Universidade René Descartes, de Paris. Foi coordenadora do Departamento de Língua Portuguesa do Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (ISCED) e directora do Instituto de Línguas Nacionais do Ministério da Cultura. Foi igualmente directora do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, sediado na Cidade da Praia, Cabo Verde.
Publicou o livro "Interferência do Kimbundu no Português Falado em Lwanda" e tem no prelo outros trabalhos de investigação linguística. Actualmente é docente e Decana da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto.

Entrevista originariamente publicada na edição nº 41, de 14 a 27 de Outubro do jornal angolano Cultura, do grupo empresarial público Edições Novembro.


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