sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Província do Bié, o coração de Angola

Estávamos em 2006, a guerra terminara há quatro anos. Carmo Neto, então director do Gabinete de Comunicação e Imagem da Polícia Nacional, fez-me o convite que não pude recusar: "que tal fazeres uma série de reportagens pelo interior do país para a revista Tranquilidade?" Não pude recusar o convite porque coincidiu com uma preocupação existencial que então me assolava e que ia precisamente no sentido de conhecer o país mais a fundo e nos detalhes do quotidiano do pós-guerra. A concretização do projecto levou-me a ir pela primeirissima vez às províncias do Bié e Moxico, em quase todos os seus municípios. As viagens eram feitas em estradas recém-resgatadas às minas, que ainda espreitavam bem à beira, pelos trilhos nas chanas ou ainda pelas plataformas das linhas férreas então abandonadas do CFB. Como companheiros tinha, alternadamente, o Frederico Ningi e o Paulino Damião "Cinquenta", dois dos mais respeitáveis fotógrafos angolanos. A preocupação da Polícia era, obviamente, que fizéssemos o retrato da organização e pessoal da corporação. Satisfizemos a vontade do nosso patrocinador e fomos mais além, de acordo com as nossas preocupações pessoais. Hoje deparei-me aqui na Net com alguns textos da reportagem feita no Bié e não resisto a trazê-los aqui, para minha satisfação própria e partilha com quem esteja interessado.  


Isaquiel Cori (Textos) e Paulino Damião  (Fotos)



O Bié, a província mais central de Angola, é um verdadeiro prodígio da natureza. Com um clima favorável, terrenos férteis e uma população trabalhadora, a província tem na agricultura o seu forte.
Percorrendo a província em várias direcções, tendo a cidade do Kuito como ponto de partida, somos amiúde confrontados com os sinais, à beira da estrada, da presença de minas e de destroços de veículos militares, marcos silenciosos da guerra que terminou há apenas quatro anos.
David Kupanda, o Regedor Municipal do Andulo, diz que a população hoje vive bem melhor, todavia, alerta para os resíduos das confrontações militares: “Para além das minas temos o problema dos obuses que não rebentaram. Quase todos os dias descobrimos mais um obus”.
Mas é visível o esforço do Governo e de algumas ONG no sentido da desminagem: terrenos que há bem pouco tempo eram intransitáveis são agora lavras verdejantes e viçosas. Em todas as localidades é visível o ressurgimento da agricultura em toda a sua força. Os mercados estão repletos de produtos frescos, à espera de escoamento.
Os principais actores da ascensão agrícola são as mulheres, a grande força do campo. Pessoas modestas e humildes, tocadas pela guerra até no mais profundo de si mesmas, estão aí elas de pé, empenhadas na batalha da sobrevivência.
Justiana Joana, 28 anos, tem uma lavra nos arredores do Kuito. Cultiva mandioca e batata. Vai à lavra todos os dias. Tem um olhar triste e ela explica porquê: “O meu pai e a minha mãe morreram durante a guerra. O meu marido desapareceu”. Mãe de três filhos, é inteiramente responsável por eles. É principalmente para eles que ela trabalha. O que produz é para consumo e também para venda. Receosa, ela confessa que gostaria que o Governo a apoiasse: “É preciso adubos e também sementes”.
O Governo Central relançou, em Outubro de 2005, no Andulo, o programa de Extensão e Desenvolvimento Rural, cuja intenção é promover, de modo sustentado e integral, o desenvolvimento das comunidades rurais.
Maria Luísa Chicapa, administradora municipal do Andulo, explica que no quadro desse programa cada grupo de quatro camponeses será contemplado com duas cabeças de gado, uma charrua, enxadas, catanas, sementes e adubos. “Mas trata-se de um programa amplo, que abarca, para além da agricultura, a educação, a saúde, as obras públicas, enfim. E sabe-se que a maior parte da população rural é feminina, logo, estaremos a contribuir para o desenvolvimento da mulher rural”.
Viajar por estrada no Bié é um martírio. Do Kuito para o Chinguar, do Kuito para Catabola e Kamacupa, e do Kuito para o Cunhinga e Andulo, as estradas são um nunca mais acabar de buracos e verdadeiras máquinas de sacolejar. A maioria das pontes são precárias e perigosas. E sendo o Bié uma província abençoada pelas chuvas, é de se ver o quanto é difícil viajar de carro. Mas em todo esse quadro movimentam-se os taxistas, esses heróis das estradas.
Do Kuito para o Chinguar apanhámos um táxi que ia para a cidade do Huambo. Era um Toyota Corolla, conduzido por Floriano Chipino. De 45 anos, percorre a mesma estrada quase todos os dias, há dois anos. Por isso conhece de memória a localização dos buracos mais importantes; e numa estrada capaz de desanimar um outro qualquer, Chipino movimenta o seu carro com uma habilidade incrível a uma velocidade de arrepiar. Como consequência todas as semanas é obrigado a tirar um dia para fazer uma revisão completa à viatura.
O renascer da agricultura no Bié é mais do que evidente: para além das grandes extensões cultivadas, o viajante espanta-se com a variedade de produtos a venda à beira das estradas, mas sobretudo com os preços baixíssimos.
As estradas difíceis dificultam o escoamento da produção e a exploração mais intensa das potencialidades turísticas, transformando algumas localidades em verdadeiras ilhas, tal é a dificuldade de acesso.
O reerguer do Bié dos escombros e das sequelas da guerra tem como exemplo mais impressionante a cidade capital, Kuito. Quem lá esteve logo depois do fim do conflito armado não acredita no que os seus olhos agora podem ver.
Edifícios então feitos em pedaços, paredes picotadas com balas, foram em grande parte reabilitados, dando assim uma nota muito mais alegre à paisagem urbana.
E o tecido humano e social ganha uma nova vitalidade, uma outra dinâmica, em muito facilitada pela retirada dos milhares de cadáveres (cerca de sete mil) enterrados nos quintais e em locais públicos, para o cemitério criado a propósito, com a dignidade merecida e requerida.
A província do Bié tem nove municípios: Kuito, Chinguar, Cuemba, Kamacupa, Andulo, Catabola, Cunhinga, Nharea e Chitembo. O seu forte, economicamente falando, é a agricultura e a pecuária. Cultiva-se em larga escala o milho, o feijão, a batata rena e a mandioca. Nos municípios de Kamacupa e do Chinguar estão a ser feitos esforços de revitalização da cultura do arroz, um produto de que o Bié era famoso em anos anteriores à guerra. 
Este é o desenho possível do cenário onde se desenvolve a acção do Comando Provincial do Bié da Polícia Nacional.


11 Julho 2006


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      Kamacupa: estradas precisam-se



A viagem do Kuito a Kamacupa é de apenas 82 quilómetros, mas para quem viaja de carro a distância parece o triplo. A paisagem ao longo do percurso é de uma beleza sem par, dominada pelos campos agrícolas, testemunhas irrefutáveis do carácter trabalhador das populações locais.
Todavia, a estrada, que para além dos buracos, em alguns troços chega mesmo a desaparecer, transformando-se em ravinas ou picadas, amassa e cansa de tal modo o viajante que este perde o desejo e a postura contemplativa para tão somente querer chegar ao destino o mais rápido possível.
Quando chegamos a Kamacupa, depois de umas três horas de viagem num táxi de marca Toyota Hiace, inevitavelmente tivemos de nos sacudir da poeira vermelha, não fôssemos ser tomados por maltrapilhos, e estirar o corpo em improvisados exercícios de ginástica, para repor a circulação sanguínea normal bem como a disposição um tanto abalada.
Recuperámo-nos rapidamente: Paulino Gomes, 2.º Comandante Municipal e na altura Comandante Municipal em exercício, recebeu-nos com uma simpatia e uma bonomia sem par. Depois de uma conversa preliminar, que serviu também para ambientação e descontracção, a nosso pedido fomos à Administração Municipal, onde encontramos Aleixo Fernandes Kandambu, o Administrador, solícito apesar do imenso expediente que tinha.
“A base produtiva de Kamacupa é a agricultura. Aqui cultivamos sobretudo a ginguba, o milho, o feijão e a mandioca. Estamos a reactivar a produção de arroz: Kamacupa já foi o principal produtor de arroz em Angola”, informa Aleixo Kandambu.
O município tem apresentado níveis crescentes de colheitas. Esse incremento da produção agrícola tem muito a ver com o apoio prestado pelo Governo no tocante ao fornecimento de adubos, sementes e instrumentos de trabalho.
Todavia, existe o sério problema do escoamento da produção. “As estradas estão muito degradadas, o que desencoraja a vinda de compradores. Tem havido produtos que se deterioram ao longo do tempo”, diz o Administrador. “Temos camponeses que ainda têm café nos seus celeiros mas que não encontram compradores”, reforça.
O Governo está a fazer grandes esforços no domínio da reactivação da vida social. É neste quadro que se situa a inauguração do sistema de iluminação pública da sede municipal e de uma escola do I e II níveis. Por outro lado, “as relações com a Polícia são muito boas, não temos razões de queixa. Todos os dias temos contacto e a população sente-se protegida”, testemunha.
A sede provisória do Comando Municipal de Kamacupa é um edifício antigo, pequeno, a precisar de reabilitação e ampliação. O edifício original foi partido durante a guerra.
O efectivo policial desdobra-se pelas comunas de Umpulo, Ringoma, Muinha e Kwanza, onde existem postos policiais.
“Os crimes mais frequentes em Kamacupa são as ofensas corporais e o fogo posto em moradias, tudo resultante do excessivo consumo de álcool”, dá a conhecer o Comandante Municipal em exercício, Paulino Gomes.
Com uma população estimada em 213.444 habitantes, Kamacupa faz fronteira, a Norte, com a província de Malanje, a Oeste com o município de Katabola, a Leste com o município do Cuemba e a Sul com o Chitembo.

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O ressurgir do Andulo 

Com uma população estimada em 500 mil habitantes, maioritariamente agricultores, o município do Andulo é, económica e demograficamente, um dos mais importantes da província do Bié. A 130 quilómetros da cidade do Kuito, o Andulo é um verdadeiro celeiro.
Cultiva-se em abundância o milho, diferentes tipos de feijão e até o café arábico (cuja produção decaiu muito em decorrência da guerra).
Tendo sido um dos mais importantes palcos da última fase da guerra, o Andulo está francamente a recuperar-se. O Governo reconstruiu três hospitais e pôs em funcionamento um Instituto Médio de Educação e um instituto pré-universitário. 



Está a ser construído de raiz aquele que será o Instituto Médio Agrário, que terá uma capacidade para 1.600 alunos, 800 dos quais em regime de internato. No ano lectivo de 2005 estavam inscritos no ensino de base 130 mil alunos, 90% dos quais no I Nível.
À frente da Administração Municipal está Maria Lúcia Chicapa, uma mulher dinâmica e determinada.
Cortesmente, ela revelou à Revista Tranquilidade o seu estilo de governação: “A boa governação é participativa. O meu estilo natural de governar é o participativo mas às vezes temos de nos impor, porque infelizmente muitos dos nossos parceiros homens não gostam de ser liderados por uma mulher”.
Maria Chicapa acredita no pleno ressurgimento do Andulo como uma potência agrícola e turística. Mas isso passa antes pelo recuperar do tecido humano e social, fortemente desconjuntado pela guerra. Essa recuperação será conseguida com a integração social e produtiva dos desmobilizados das ex-FAPLA e das ex-forças militares da UNITA e também com o contributo espiritual das igrejas.
“Tivemos quase 28 anos de guerra, que deixou sequelas consideráveis e marcantes. As igrejas estão a contribuir imenso para a pacificação dos espíritos, com os seus cultos ecuménicos e não só”, considera a Administradora. 

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Chinguar, onde o mercado é uma festa


Calvino Florindo Ngongo, o Administrador Municipal do Chinguar, endireitou-se no cadeirão e gesticulou com os braços como que para enfatizar as suas palavras, ao responder à nossa pergunta sobre como iam as relações entre a administração e as autoridades policiais locais. “São excelentes. Estão a 100%. Há comunicação entre nós. A Polícia é parceira da administração e o garante da paz e da ordem pública”, disse.
Vindo de um almoço interrompido precisamente por nós (tal era a surpresa da nossa chegada ao Chinguar), Calvino Ngongo não parecia, todavia, arreliado. Pelo contrário: embalou-se logo em gabar as virtudes do seu município.
“A agricultura é que criou o homem e o Chinguar é o principal pólo de desenvolvimento agrícola do Bié. Se antes tínhamos problemas de inputs agrícolas, hoje estamos de parabéns, porque tivemos uma recepção desses inputs como há muito não tínhamos. Viram o mercado como está abarrotado? Os nossos produtos são escoados por agentes privados para Benguela, Huambo, Kuito, Kuando Kubango e Moxico. Mas o ritmo é lento, o que não permite o escoamento necessário e suficiente”.
Na verdade o mercado à beira da estrada era uma festa. Quase tudo à venda era resultante da produção local: batata rena em grandes quantidades e a preços inacreditáveis para quem vinha de Luanda; feijão fresquíssimo, acabadinho de colher; a boa galinha rija, viva ou frita, era um regalo para a vista e para o estômago; quanto às frutas, tivemos muita pena de não estarmos na época dos pêssegos, um dos cartões de visita do Chinguar.
“Sendo a agricultura a principal actividade económica, cá pratica-se também a pecuária, nomeadamente a criação de gado caprino, suíno e bovino. Em pequena escala desenvolve-se igualmente a apicultura e a pesca.
Em três anos de paz, com o apoio dos governos central e da província recuperámos o hospital municipal, a central eléctrica, o centro materno infantil, uma escola do I e do II níveis, construímos de raiz uma escola do I nível, com seis salas, e estão em obras as sedes das administrações comunais. Em cada uma das comunas estamos a construir um posto de saúde e uma escola”.
No final, Calvino Ngongo desvendou-nos a origem do topónimo “Chinguar”: trata-se da corruptela da palavra “Onguali”, que na língua nacional umbundu significa perdiz, uma ave que abunda (e abundava muito mais no passado) em Chinguar.
De acordo com estimativas oficiais, o município do Chinguar tem uma população de 134.000 habitantes.

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