Encontrámos o poeta
João Maimona na sua residência, numa dessas manhãs insuportavelmente quentes de
Luanda. O homem apresentava um aspecto
radiante. A Bienal Internacional de Poesia de Luanda (BIP), de que ele é um dos
mentores, já tinha as portas abertas no CEFOJOR. “Estamos a entrar na
decadência. Nas décadas de 2030 ou 2040 vai ser difícil isolar ou desanichar
valores literários”, avisou. Por outro lado, Maimona queixou-se da falta de
contacto entre os músicos e os homens de letras: “os nossos músicos não falam
com os poetas”.
POR: ISAQUIEL CORI
Jornal Cultura –
Como surgiu a ideia da realização em Luanda de uma bienal internacional de
poesia?
João Maimona – Comecei a frequentar a Bienal
Internacional de poesia de Liège, na Bélgica, na década de 1990. Depois
frequentei as noites poéticas de Struga, na antiga Jugoslávia, e o Festival
Internacional de Poesia de Berlim. Nasceu assim a ideia de conceber a Bienal
Internacional de Poesia de Luanda. Convidei o Abreu Paxe, o Jomo Fortunato e o
Fernando Alvim, juntámos as nossas ideias e os poucos recursos materiais que
tínhamos e assim nasceu a BIP.
JC – A BIP nasce num
contexto global em que as bienais de poesia tendem a desaparecer. Concorda?
JM – Esse desaparecimento tem muito a
ver com a insuficiência de recursos materiais, que estão cada vez mais difíceis
de captar.
JC – De um modo
geral, não terá mesmo decrescido a percepção da importância e do valor da
poesia?
JM – Não. A poesia é um organismo
funcional, vivo. A poesia não atrai muita gente porque é a arte mais
sofisticada. Nem toda a gente consegue decifrar ou interpretar a mensagem
poética. A prosa é mais fácil, a poesia é mais fechada. Mas não se pode falar da
sua morte. Ela continua viva.
JC – De que modo a
poesia está viva na BIP?
JM – A nossa ideia principal é
revitalizar a presença da poesia angolana e, acima de tudo, internacionalizá-la
de modo permanente e crescente. Pretendemos também revitalizar a presença da
poesia angolana na vida cultural de Angola e na vida dos angolanos. Hoje
estamos em Luanda, na próxima edição poderemos estar no Lubango, em Cabinda ou
no Moxico. Mas também no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
JC – Estaremos então
diante de uma Bienal Internacional de Poesia de Luanda com regime itinerante?
JM – Apesar da designação Bienal
Internacional de Poesia de Luanda, ela poderá deslocar-se a outras localidades.
Levando sempre o nome de Luanda, o nome da Nação angolana
JC – Que valor
atribui à poesia na formação do homem?
JM – Tem um valor significativo.
Muito elevado. A poesia faz parte do segmento pedagógico da formação de cada um
de nós, encaminha o homem para a descoberta de outras esferas. Na poesia a
pessoa encontra segmentos linguísticos que servem para a sua própria formação.
Sem receio de contradição, digo que a poesia é uma arquitectura pedagógica.
JC – Pode dizer-se
que a poesia torna-nos mais humanos?
JM – Sim, a poesia humaniza. E eu dou
o meu próprio exemplo. Quando entrei em contacto com a poesia, o meu diálogo
estabeleceu-se no domínio da francofonia. Fui lendo René Char, Victor Hugo… e
mais tarde passei para o horizonte da língua portuguesa. Passei então a ler
poetas como Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e outros. Encontrei
nessa poesia segmentos claros de humanização, como por exemplo, a exaltação da
alegria. Quando o desassossego se transforma em alegria, estamos diante de algo
fundamental. O mesmo acontece com as temáticas das liberdades individuais e da
ausência de paz e estabilidade. Angola atravessou um longo período de ausência
de paz social, mas conseguimos, com os nossos meios, através do diálogo,
instalar o clima de estabilidade. Isto é humanização.
JC - A poesia terá
então, também, contribuído para que os angolanos sobrevivessem à guerra e
conquistassem a paz?
JM
– Há pouca gente que lê poesia, mas a mensagem poética circula muito, a uma
velocidade sui generis. Quando o verso sai da boca de um poeta é como se fosse
o slogan de um político. A população capta imediatamente a mensagem. No meu
livro “Trajectória Obliterada”, Prémio Sagrada Esperança em 1984, há uma
estrofe do poema “Ramos de grito”, em que eu digo: “No silêncio distante,
ardente silêncio / No íntimo das nuvens, tombam chamas / que agasalham as lágrimas”.
Isto é, para o poeta, apesar de distante, o povo há-de chegar ao silêncio, à
paz.
JC - A poesia
associada à música não conseguiria uma maior difusão? O que falta para que haja
uma aliança mais forte entre a música e a poesia, no contexto do país?
JM – É um tema complicado. Ao fazer a
sua abordagem podemos ser acusados de elitismo. A verdade é que os nossos
músicos não falam com os poetas. Não há contacto ou interacção entre os músicos
e os homens de letras.
JC – Está a querer
dizer que os músicos não conhecem ou não valorizam o acervo poético nacional?
JM – Há fragilidade de contactos
entre os músicos e os poetas.
JC – Está a
referir-se ao contacto pessoal ou com a produção poética?
JM – Eu diria que o músico não quer
investigar. O poeta oferece o seu texto, que circula. O músico tem de ir ao
encontro do texto, estudá-lo e então levá-lo à música. Isto é o que falta no
nosso meio.
JC – A seu ver, a
poesia angolana é suficientemente estudada nas escolas?
JM – Eu sou docente e duvido que haja
um estudo profundo da nossa poesia nas escolas.
JC – Sendo assim,
onde e como serão forjados os novos poetas?
JM – Estamos a entrar na decadência.
Nas décadas de 2030 ou 2040 vai ser difícil isolar ou desanichar valores literários.
Eu pertenço à geração de 1980 e sou produto do tempo colonial. Não estou aqui a
elogiar o tempo colonial, mas a retratar o meu passado. A formação que tive não
tem nada a ver com a arquitectura da formação de hoje. Como é que um aluno que
não lê algum dia vai produzir uma obra literária? Fala-se mal o português e não
há contacto com outras línguas, sejam africanas ou ocidentais. Isso é uma
lacuna. Dentro de vinte ou trinta anos vamos ter um quadro literário
limitadíssimo. Por exemplo, enquanto escritor, se eu conseguir, no seio da
minha família, introduzir os hábitos de leitura, a formação e a educação, pode
ser que surja nela um homem ou mulher de letras. E nas outras famílias?
JC – Por tudo o que
acaba de dizer, a tendência é que haja igualmente cada vez menos leitores?
JM – O núcleo de leitores vai ficar
reduzido. Se formos a uma biblioteca, encontraremos um número limitadíssimo de
estudantes a consultar livros, apenas para responder às solicitações dos
professores. Aquilo não é pesquisa. Quando vai a uma biblioteca, o estudante
deve preocupar-se com as solicitações dos professores mas também fazer
pesquisas no sentido de descobrir novos autores e penetrar mais profundamente
no texto que encontrou. Há uma limitação enorme, que não podemos admitir.
JC – O que se deve
então fazer para que o cenário sombrio não se concretize dentro dos próximos
vinte ou trinta anos?
JM
– Tudo começa por uma vontade política. As estruturas que definem e consolidam
a política devem jogar um papel importante. O aluno é um sujeito que tem meios
limitadíssimos, mas se perceber que o
Estado está a criar condições para que haja desenvolvimento, ele avança e
corresponde. Enquanto não sentir que há projectos e definições sólidas, o aluno
deixa-se estar.
JC - Os grandes
poetas, que por si sós já constituem uma instituição, como é o seu caso, não
poderiam também fazer a sua parte, de modo a propiciar o surgimento de novos
valores literários?
JM – Obrigado no que me diz respeito.
Tenho feito algo e o exemplo mais marcante é a iniciativa da Bienal
Internacional de Poesia de Luanda. É uma contribuição valiosa para a formação
do angolano. A BIP entrou no calendário cultural de Angola, que ganha assim uma
nova dimensão.
João Maimona (Uíge, 1955) é médico veterinário
especializado em Virologia Médica e Epidemiologia
Animal. Foi deputado à Assembleia Nacional (1993-2000) pela bancada do MPLA.
Publicou os seguintes livros de poesia: “Trajectória Obliterada” (1985) - INALD,
“Les roses perdues du Cunene” (1985) – LÉS ÉDITIONS JEAN- -MARIE BOUCHAIN, “Traço de União”,
(1987) – U.E.A., “As abelhas do dia”, (1988) – U.E.A., “Quando se ouvir o sino
das sementes” (1993) – U.E.A., “Idade das palavras” (1997) - INALD, “No útero
da noite” (2001) – NZILA, “Festa de
Monarquia” (2001) - KILOMBELOMBE, “Lugar e origem da beleza” (2003) -
KILOMBELOMBE, “O sentido do regresso e a alma do barco” (2007) - KILOMBELOMBE.
Teatro: “Diálogo com a peripécia” (1987) - INALD e “As colheitas do senhor
governador” (2010) - KILOMBELOMBE.
Esta entrevista foi originariamente publicada na edição número 3 do Jornal Cultura, do grupo Edições Novembro
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