Isaquiel Cori
Todos
os anos são produzidos, consoante o país, dezenas, centenas e até mesmo
milhares de livros de todos os géneros literários. Da maioria desses livros só
se tem notícia na data ou a propósito do seu lançamento. E a notícia é baseada,
geralmente, na narrativa do autor ou da autora sobre o seu próprio livro ou na
narrativa dos apresentadores do livro. Quando muito, um jornalista mais
conciencioso, atraído por essas ou por uma dessas narrativas, ou induzido por
factores como o marketing editorial ou até mesmo por mero acaso, vai ao
encontro do livro e explora o seu conteúdo, lendo-o, naturalmente. Daqui
resultam dois caminhos possíveis: ou o jornalista, fascinado pelo que leu,
corre a interpelar o autor ou a autora, buscando uma melhor “compreensão” da
obra literária, resultando dessa entrevista um reforço da tal narrativa do
autor ou da autora sobre a sua obra; ou, caso o jornalista seja um leitor mais
qualificado, isto é, com uma cultura literária mais sofisticada, ele vai
escrever um artigo com as suas impressões sobre o livro.
O
cerne deste texto situa-se precisamente aqui, no ponto em que o jornalismo
intenta fazer a leitura de uma determinada obra literária. Ao longo dos poucos
mais de trinta anos como profissional do jornalismo e eterno aprendiz de
escritor, tenho constatado a impossibilidade do jornalismo fazer uma abordagem
da obra literária a partir do seu interior, isto é, da sua leitura. O
jornalismo que tenta ler e interpretar ou transmitir ao leitor uma determinada
ideia da obra literária é chamado jornalismo literário, mas eu tenho sérias
dúvidas se esse chamado jornalismo literário ainda é jornalismo. O chamado
jornalista literário no seu esforço de ler e comunicar para o seu público o que
entende ser uma determinada obra literária, faz uma viagem sem volta, perde as
referências que todo o jornalista aprende na escola de jornalismo, a começar
pela fidelidade aos factos (quais são os factos de um romance de ficção? Ou de
um poema?).
Através
da fidelidade aos factos, o jornalista procura alcançar a verdade. Mas qual é a
verdade de um romance ou de um poema? Não terão antes o romance ou o poema
várias e infinitas verdades?
Ora,
voltando ao jornalista literário. Na sua demanda por explorar a obra literária,
o jornalista dito literário abandona as regras estrictas do jornalismo, que
apelam para uma linguagem desadjectivada, sóbria e para a busca da
objectividade. O jornalista dito literário, ao fim e ao cabo (porque o romance
ou o poema, na tessitura da sua trama, e na sua linguagem carregada de
metáforas e de alusões a mundos apenas sonhados, pouco têm a ver com a vida
real) acaba por passar para o
campo da literatura, adoptando a linguagem literária na tentativa de comunicar
uma “realidade”, melhor seria dizer uma ficção, que lhe escapa. Isto é, o
jornalista dito literário acaba por
adoptar a narrativa literária, tornando-se assim escritor. Só que,
porque a sua escrita é sempre sobre, ou a propósito, de uma outra escrita, a
obra do dito jornalista literário será sempre tributária de uma obra literária
original, portanto, se quisermos, será uma sub-literatura.
Numa
outra vertente, na sua demanda por captar, explorar, compreender e interpretar
a obra literária, o jornalista literário pode acabar também por penetrar no
campo da crítica, exercendo aquela crítica literária que alguns académicos
desqualificam como sendo impressionista ou superficial mas que tem um impacto
enorme sobre o público leitor que precisa de pistas sobre o que há de bom ou
melhor no mercado do livro. Mas aqui coloco novamente a questão: esse
jornalista que sistemática e continuadamente faz crítica literária
impressionista pode reivindicar o estatuto de crítico literário?
Tudo
isso para dizer que o jornalismo enquanto profissão ocupa uma posição de
charneira, sendo na verdade uma placa giratória para outras profissões. Daí que não surpreenda que muitos jornalistas
acabem por ser escritores, políticos, gestores… ou críticos literários…
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