terça-feira, 10 de junho de 2025

AO CORRER DA PENA: Divagações sobre jornalismo e literatura

                                                                Isaquiel Cori


Isaquiel Cori

Todos os anos são produzidos, consoante o país, dezenas, centenas e até mesmo milhares de livros de todos os géneros literários. Da maioria desses livros só se tem notícia na data ou a propósito do seu lançamento. E a notícia é baseada, geralmente, na narrativa do autor ou da autora sobre o seu próprio livro ou na narrativa dos apresentadores do livro. Quando muito, um jornalista mais conciencioso, atraído por essas ou por uma dessas narrativas, ou induzido por factores como o marketing editorial ou até mesmo por mero acaso, vai ao encontro do livro e explora o seu conteúdo, lendo-o, naturalmente. Daqui resultam dois caminhos possíveis: ou o jornalista, fascinado pelo que leu, corre a interpelar o autor ou a autora, buscando uma melhor “compreensão” da obra literária, resultando dessa entrevista um reforço da tal narrativa do autor ou da autora sobre a sua obra; ou, caso o jornalista seja um leitor mais qualificado, isto é, com uma cultura literária mais sofisticada, ele vai escrever um artigo com as suas impressões sobre o livro.

O cerne deste texto situa-se precisamente aqui, no ponto em que o jornalismo intenta fazer a leitura de uma determinada obra literária. Ao longo dos poucos mais de trinta anos como profissional do jornalismo e eterno aprendiz de escritor, tenho constatado a impossibilidade do jornalismo fazer uma abordagem da obra literária a partir do seu interior, isto é, da sua leitura. O jornalismo que tenta ler e interpretar ou transmitir ao leitor uma determinada ideia da obra literária é chamado jornalismo literário, mas eu tenho sérias dúvidas se esse chamado jornalismo literário ainda é jornalismo. O chamado jornalista literário no seu esforço de ler e comunicar para o seu público o que entende ser uma determinada obra literária, faz uma viagem sem volta, perde as referências que todo o jornalista aprende na escola de jornalismo, a começar pela fidelidade aos factos (quais são os factos de um romance de ficção? Ou de um poema?).

Através da fidelidade aos factos, o jornalista procura alcançar a verdade. Mas qual é a verdade de um romance ou de um poema? Não terão antes o romance ou o poema várias e infinitas verdades?

Ora, voltando ao jornalista literário. Na sua demanda por explorar a obra literária, o jornalista dito literário abandona as regras estrictas do jornalismo, que apelam para uma linguagem desadjectivada, sóbria e para a busca da objectividade. O jornalista dito literário, ao fim e ao cabo (porque o romance ou o poema, na tessitura da sua trama, e na sua linguagem carregada de metáforas e de alusões a mundos apenas sonhados, pouco têm a ver com a vida real) acaba por passar para o campo da literatura, adoptando a linguagem literária na tentativa de comunicar uma “realidade”, melhor seria dizer uma ficção, que lhe escapa. Isto é, o jornalista dito literário acaba por  adoptar a narrativa literária, tornando-se assim escritor. Só que, porque a sua escrita é sempre sobre, ou a propósito, de uma outra escrita, a obra do dito jornalista literário será sempre tributária de uma obra literária original, portanto, se quisermos, será uma sub-literatura.

Numa outra vertente, na sua demanda por captar, explorar, compreender e interpretar a obra literária, o jornalista literário pode acabar também por penetrar no campo da crítica, exercendo aquela crítica literária que alguns académicos desqualificam como sendo impressionista ou superficial mas que tem um impacto enorme sobre o público leitor que precisa de pistas sobre o que há de bom ou melhor no mercado do livro. Mas aqui coloco novamente a questão: esse jornalista que sistemática e continuadamente faz crítica literária impressionista pode reivindicar o estatuto de crítico literário?

Tudo isso para dizer que o jornalismo enquanto profissão ocupa uma posição de charneira, sendo na verdade uma placa giratória para outras profissões.  Daí que não surpreenda que muitos jornalistas acabem por ser escritores, políticos, gestores… ou  críticos literários…  

 

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