segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

ESCRITOR JOÃO MELO:“Decidi dedicar-me em exclusivo à escrita e à internacionalização do meu trabalho”

Isaquiel Cori

Logo após a publicação, no ano passado, em Lisboa, do seu livro “O Acumulador”, acertamos com João Melo que faríamos uma entrevista a propósito. O escritor fez questão de nos fazer chegar, por portador, um exemplar do livro. Depois de vários contratempos, da nossa parte e não dele, eis que finalmente as coisas se conjugaram e efectivou-se a entrevista através de perguntas e respostas expedidas por email, com as óbvias limitações inerentes a esse formato. O livro “O Acumulador” é uma colectânea de sete contos, “Quatro recordações da infância”, “O acumulador”, “Uma combinação espúria”, “Breve história do doutor Cunha”, “Uma simples história de amor”, “A encruzilhada” e “Os pesadelos do Grande Muata”.

João Melo fala do seu livro, do “investimento” que fez na internacionalização da sua obra, da situação na Palestina e em Moçambique, explica as razões que o fazem viver no estrangeiro, entre outros assuntos



Começou a publicar muito cedo, de tal modo que é um dos membros fundadores da União dos Escritores Angolanos. Pode falar-nos de quando e do ambiente em que começou a escrever? Quais foram as pessoas que o influenciaram a gostar de ler e a escrever?

Eu não comecei a publicar muito cedo, pelo menos em livro. É verdade que os meus primeiros poemas foram publicados em 1973, tinha eu 17 anos, numa revista que havia em Luanda, a Semana Ilustrada; mas o meu primeiro livro – “Definição” – só foi publicado em 1985, quando já tinha 30 anos. Hoje, aos 18 anos ou menos, os jovens principiantes já querem ser reconhecidos como “génios” ou quase.

 

Quem o convidou a assinar a acta de proclamação da UEA?

Foi o escritor Luandino Vieira, por sugestão – creio – de Manuel Rui, que eu conheci em Coimbra, logo depois do 25 de Abril de 1974, e a quem mostrei os meus poemas escritos até àquela altura.

 

Como era a movimentação literária em Luanda, antes do eclodir da guerra entre os movimentos de libertação?

Creio que se está a referir ao período depois do 25 de Abril, quando eu tinha 19/20 anos. Não creio que se possa falar em “movimentação literária” nessa altura, com os combates nos bairros e as balas cruzando regularmente os céus da cidade. Todos nós (mais ou menos) estávamos envolvidos com duas coisas: política e a guerra urbana. É claro que os escritores ou os que tinham aspiração a sê-lo continuavam a escrever, mas era um exercício estritamente pessoal.

 

Logo depois da proclamação da independência, Agostinho Neto preconizava que a literatura devia ser o “carro chefe” da Cultura, com os escritores a serem merecedores de um prestígio que jamais voltariam a ter. Retrospectivamente, acha que aquela opção foi realista?

Não é por não ter dado certo que era “irrealista”. Aliás, é simples: não deu certo, porque não foi aplicada, como tanta coisa em que se pensou nos primeiros anos da independência – recordo, por exemplo, os centros de saúde nos bairros... -, mas que foi posteriormente jogada no lixo. Entretanto, continua válida. A literatura é fundamental, desde logo, a partir do sistema de educação básica, pois que contribui para a cultura humanística de todas as sociedades. Mas hoje ninguém quer saber disso, em todo o mundo: o pessoal quer é dominar a informática, os algoritmos, a chamada “inteligência artificial” e usar tudo isso não para melhorar a vida em comum, mas para ter likes e engajamentos, monetizar e ter sucesso individual; os mais espertos querem trabalhar em qualquer uma das Big Four ou, então, convertem-se em “nómadas digitais” e vão para Bali, passando a viver dos seus investimentos em bitcoins.

 


A chamada angolanidade literária liberta a criatividade ou é uma amarra à criatividade?

Se entender isso pela obrigatoriedade de escrever unicamente de acordo com a geografia e a temática angolanas, de preferência “tradicional”, seja lá o que isso for (normalmente, os “tradicionalistas” esquecem-se que Angola está ligada à história do mundo há muitos séculos!), tende, sem dúvida, a sê-lo, pois “escrever por obrigação”, em princípio, não dá certo. Seja como for, isso não tem impedido que o “nacionalismo literário” tenha dado grandes obras em todo o mundo, incluindo no nosso país. Mas o que eu defendo – há muito tempo! – é que os escritores devem ter a liberdade de escrever sobre tudo o quiserem, como o quiserem e quando o quiserem. Os ditames, sejam eles político-ideológicos, “revolucionários”, formais, linguístico-estilísticos, “identitários” ou “wokistas”, quando impostos a partir de fora (pelos partidos, academias, críticos, “militantes”, o “mercado”, os “influencers” e outras figuras do mesmo teor) são fascistas. Podemos, é claro, usar todos esses viezes, mas sem perder a independência artística e a criatividade.   

 

Das memórias da infância à realidade actual de Angola, “O Acumulador” é, ao fim e ao cabo, apesar dos pesares, uma declaração de amor a Angola. Qual é a versão de Angola que mais ama? E a que odeia?

Como posso odiar o país onde nasci, cresci e trabalhei, pelo qual a minha família, quer do lado paterno quer materno, lutou pra que se tornasse independente, pela qual o meu pai, Anibal de Melo, e o meu irmão, Kiluxa, morreram e pela qual eu procurei igualmente dar o meu melhor contributo, com as minhas limitações, as minhas ilusões e os meus equívocos? Isso não faria sentido.

 

A memória ou a evocação do Pai é uma constante na sua obra. Você escreveu: “… Os heróis são seres morais; os mitos são construções estéticas”. O Pai da sua memória, e da sua obra, é um herói ou um mito?

É um herói, um mito e uma espécie de “oráculo”. Agora não tenho dúvidas: a morte dele, seis dias após a independência e nas circunstâncias em que ocorreu, foi um aviso. O título do meu segundo romance, que estou a escrever, será esse: “O Aviso”.

 

O Mundo, em geral, está tomado pelo politicamente correcto? Estamos, como disse um dos narradores no “Acumulador”, em “tempos de esdrúxulas” proibições?

É lamentável, mas verdadeiro.

 

“O Acumulador” é um conto que apela à cumplicidade do leitor, a quem o narrador se dirige abertamente e se ri do que conta. O sarcasmo, aliás, parece ser uma das marcas da sua escrita. O riso, o sarcasmo, é um expediente literário ou também faz parte da sua forma de ser e estar?

É uma maneira de estar na vida. Nós – nenhum de nós! - não somos tão importantes ou infalíveis como pensamos.

 


O conto “O Acumulador” tal como termina, na senda do conceito de “obra aberta” de Umberto Eco, resulta do “imbróglio” em que o narrador se meteu ou da “prudência e realismo” derivado do facto do personagem ser uma figura camaleónica e ainda em processo, de tal modo que não se sabe que aspecto assumirá amanhã?

Sou fã confesso de Umberto Eco e o conceito de “obra aberta” é uma das suas maiores descobertas. A vida está sempre em aberto. Se não fosse assim, a História, por exemplo, seria uma ciência morta – e não o é!

 

A questão da forma, da linguagem, parece ser uma preocupação sua nos seus últimos livros e também n’“O Acumulador”. Sente que tem de apurar mais a sua voz ou essa tem de ser uma preocupação permanente de todo o escritor?

Sempre tive essa preocupação. Literatura é linguagem, além de forma e estrutura específicas. A propósito, gosto de outro teórico, o russo Mikhail Bakhtin: - “O conteúdo está na forma”. 

 

Um aspecto que intriga leitores atentos é a capacidade de escritores angolanos em posição de poder escreverem obras a caricaturar esse poder. Isso é indício de liberdade reinante no campo da literatura?

A sua pergunta responde a isso cabalmente.

 

Praticamente não há área da realidade passada, presente ou ansiada do país, em que o melhor da literatura angolana não se tenha debruçado de modo crítico. Mas a literatura repercute pouco ou quase nada na vida das pessoas…

Há uma frase que responde a isso: os livros não mudam o mundo, mas mudam as pessoas e estas mudam o mundo... Não é à toa que os governos autocráticos e o mercado controlam a circulação de livros... Fazem-no de modo diferente, mas ambos fazem-no...

 

Com a publicação cada vez mais difícil, as tiragens tão reduzidas, entre 500 e 1.500 exemplares, e a demorarem anos para esgotar nas livrarias, qual é a motivação para um escritor continuar a escrever?

Além da própria escrita, a motivação do escritor são os leitores, claro. Ao contrário do que nos querem impingir os arautos do neoliberalismo radical, livro não é uma mera commodity. Cabe, pois, aos governos genuinamente interessados em promover o livro adotar políticas globais nesse sentido. Mas desde que o pessoal da London School of Economics e outras aparentadas tomou conta da economia em todo o mundo, a coisa está difícil... O que mais me dói, neste momento, por exemplo, é que os meus últimos livros, publicados desde 2021, não tenham um editor em Angola... 

 

Sabe-se que a comunicação social é um dos elos mais fracos do nosso sistema literário. Enquanto foi ministro da Comunicação Social chegou a diagnosticar e a traçar metas para a comunicação social na sua relação com a literatura, as outras artes e a cultura em geral?

A minha passagem pelo ministério da Comunicação Social foi uma experiência pessoal surpreendente.

 

A sua obra expande-se além fronteiras, com edições de obras suas e referências críticas em revistas e jornais e estudo em universidades em Portugal, Brasil, Estados Unidos, Venezuela… Além do reconhecimento do mérito da obra, certamente teve de investir pessoalmente?

“Investir” tempo, ideias, tentar abrir oportunidades, aproveitar as que surgem... Não tenho agente literário, o que é um problema, mas fui abrindo algumas portas aqui e ali... Outras abriram-se por si, pois, em alguns casos, fui contactado por tradutores que abriram as portas de algumas editoras... Agora, a minha editora portuguesa – Caminho – vai passar a cuidar diretamente da internacionalização do meu trabalho, o que é bom.

Deixe-me acrescentar que, com base nessa experiência e porque gostaria de ajudar a internacionalizar a literatura angolana – e não apenas a minha! -, montei um pequeno projeto que o ministério da Cultura avalizou, mas que não tem verbas para financiar; bati à porta de quatro instituições empresariais e só uma delas respondeu: negativamente... Quem disse que literatura é importante, não é? Lembro-me de um presidente africano que, há poucos anos, criticou aqueles que pensam que a nossa cultura é apenas abanar o rabo... Lamentável! 

 

O que é que os leitores qualificados desses países procuram e encontram na sua obra? Tem esse feedback?

Resumidamente, a história de Angola, em particular a recente (a luta pela independência, a guerra civil, a situação política e social pós-independência); as relações de Angola com o resto do mundo, sobretudo culturais; a estrutura narrativa considerada pós-moderna; o humor e a ironia. Sobre esta última característica, costumo dizer que o mérito não é meu: como caluanda (com costela do Golungo Alto e de Malanje), sou tributário do humor luandense (e angolano em geral).

 

Muitos argumentam que a diversidade linguística é um dos grandes obstáculos à circulação e difusão do livro em África. Mas até nos países africanos de língua oficial portuguesa essa circulação e difusão não existe. Qual é o principal obstáculo, afinal?

O problema – real – da diversidade linguística minimiza-se com traduções. Mas a maka é outra, como está patente na sua correta observação de que essa dificuldade também existe entre os países africanos de língua portuguesa (e lusofalantes em geral). A questão é todos os nossos governos – africanos, da CPLP e outros – estão reféns das crenças e práticas neoliberais, pelo que importar e exportar livros é o mesmo que importar e exportar cebolas, tomates, computadores ou minérios. Aliás, corrijo: se calhar, importar ou exportar minérios é menos oneroso economicamente, pelo menos em termos percentuais, uma vez que, para facilitar os negócios, certas taxas podem ser aliviadas ou isentas...  Não sei se sabe, mas, muitas vezes, um livro enviado pelo correio de Angola ou do Brasil para Portugal – país da União Europeia – paga muito mais de frete, direitos e taxas do que o respetivo custo unitário! E vice-versa... Uma coisa patética... Há ideias simples para facilitar e aumentar a circulação de livros entre os nossos países, mas ninguém quer ouvir.

 

Vive actualmente no estrangeiro. Em que país passa mais tempo?

Desde que me reformei, no final de 2019, decidi dedicar-me em exclusivo à escrita e à internacionalização do meu trabalho. Por causa da Covid, 2020 foi um ano para esquecer em termos de viagens, mas deu para escrever dois livros: “Diário do Medo” (poesia) e o meu primeiro romance, com o título “Será este livro um romance?”. Entretanto, tenho dois filhos a estudar nos EUA (um está a acabar o mestrado em literatura e outra está na Brown University, sendo o primeiro estudante angolano em geral – a primeira, no caso! - a entrar numa Ivy League, até agora) e, por isso, resolvemos ficar mais perto deles; assim, a minha base principal desde essa altura tem sido Lisboa, que funciona como uma espécie de plataforma, a partir de onde posso vir facilmente a Luanda, ir aos EUA e também a outros lugares, principalmente por causa de atividades literárias. Mas essa minha vida de “nómada” tem prazo, pois isso de só comer jinguinga de três em três meses não dá! A minha costela malanjina não aguenta...   

 

É um dos fundadores do Clube Literário Kalunga, que uma vez por mês junta num mesmo espaço escritores africanos de língua portuguesa, de Portugal e América Latina, com destaque para o Brasil, para lerem poesia e falarem de literatura. Sendo o principal mentor desse projecto, pode dizer-nos das suas motivações e objectivos?

Simples. Divulgar, em particular aos leitores portugueses, mas não só, a poesia africana contemporânea, mas fugindo a uma espécie de “lógica de gueto”, misturando-a com a poesia portuguesa (o país europeu que “descobriu” o Atlântico) e americana em geral; como sabe, não se pode falar das américas sem falar de África.

 

Quais os critérios para participar nesses encontros?

Estar ou passar em Lisboa e ter interesse em participar. Aproveito para reiterar publicamente o convite aos poetas angolanos que passarem por Lisboa para participarem nesse evento. O mesmo tem lugar sempre na última quarta-feira de cada mês, numa livraria chamada SNOB. Nem sempre – digo-o – eu participo nesses encontros, mas eles não dependem de mim para acontecer. A poeta colombiana Lauren Mendinueta, o português Luís Castro Mendes, o angolano Zetho Gonçalves e o brasileiro Ronaldo Cagiano, além de outros, mantêm a “máquina” a funcionar.

 

Na sua qualidade de articulista, nos últimos anos, escreve preferencialmente sobre temas da actualidade internacional. Essa opção é para evitar eventuais reacções adversas se abordasse temas da actualidade política nacional?

A interpretação é sua.

 

Sendo uma pessoa muito atenta ao que se passa no mundo, acredita que nunca estivemos tão perto da terceira guerra mundial?

Só não vê quem não quer. A paz deve ser a principal bandeira da humanidade, neste momento. Precisamos de criar um movimento pacifista universal, uma ampla frente anti-belicista e anti-extrema direita.

 

Como compreender a impunidade de Israel que parece empenhada em dizimar a população da Palestina?

Alguns atribuem isso – corretamente – à falência moral do Ocidente e do seu complexo de superioridade civilizacional. Eu vou mais longe: os factos atestam que o Ocidente continua imperialista e colonialista. Os seus alegados “valores” são uma falácia. O Estado de Israel, além de uma criação do anti-semitismo europeu (que, não querendo integrar os judeus, inventou um país onde coloca-los), é um instrumento de limpeza étnica e de domínio colonial na Palestina. Outros países fundados por europeus nasceram assim, como a Austrália, que dizimou praticamente os aborígenes, mas na época ainda não havia satélites, Internet ou Tik Tok e, portanto, o mundo não assistiu a esse genocídio em direto. Voltando a Israel, não podemos esquecer-nos também do seu papel de guardião dos interesses do principal império mundial na Ásia Ocidental (a que chamamos Médio Oriente). 

 

Como é que um partido político tão experiente como a Frelimo, em Moçambique, permitiu que a situação descambasse para a confusão actual? Quais as lições que o MPLA, em Angola, tem a tirar do exemplo da Frelimo em Moçambique?

A questão é muito ampla, mas responderei com uma ideia-chave, que julgo estrutural: quando partidos populares e de esquerda (em sentido amplo, do trabalhismo ao marxismo-leninismo, passando pela social-democracia) descobrem “a cor do dinheiro” e abdicam dos ideais de justiça social, aderindo alegremente ao radicalismo económico neoliberal, essa opção conduz à má governação (por exemplo, priorização de políticas equivocadas, que beneficiam os interesses dos ultra-milionários ou candidatos a sê-lo, mas não resolvem os problemas dos cidadãos) e à corrupção (a qual, em certos contextos, como o africano, pode tornar-se descontrolada); ora, o resultado dessa dupla deriva é só um: o descontentamento popular, o qual, no limite, pode conduzir ao fim da hegemonia dessas forças políticas. Esse fenómeno é literalmente global e começou com o trabalhismo inglês no início dos anos 90. É também uma das explicações para o crescimento da extrema direita no mundo. Os pobres estão a aderir a movimentos populistas e messiânicos. Moçambique (e não só) está a correr esse risco. A principal responsabilidade é da desgovernação e da corrupção.

 

Tem medo da Inteligência Artificial? Ela não pode pôr em causa a arte de escrever tal como a conhecemos e a praticamos?

Medo? Não estou a pensar dar-lhe qualquer confiança. Mas não posso deixar de fazer algumas notas. Primeiro, “inteligência artificial” não existe, pois toda a inteligência é natural. Segundo, o mecanismo designado erroneamente (por pura estratégia de marketing) “inteligência artificial” é um instrumento, logo, é instrumentalizável, pelo que, em última instância, depende de quem o detém e dos respetivos interesses (particulares ou estruturais). Por fim, o único receio que tenho do seu efeito relativamente à literatura, em particular, não é a sua suposta concorrência aos “escritores de carne e osso”, digamos assim, mas – isso, sim! – o uso perverso e até criminoso que alguns indivíduos fizerem da IA. São os casos, por exemplo, do plágio e da fuga ao pagamento dos direitos de autor.

……………………

 

Bio-bibliografia 


João Melo nasceu em 1955, em Luanda (Angola), onde fez os estudos primários e secundários. Estudou Direito em Coimbra (Portugal) e em Luanda (Angola), licenciou-se em Jornalismo em Niterói (Brasil) e fez o mestrado em Comunicação em Cultura no Rio de Janeiro (Brasil). É membro fundador da União de Escritores Angolanos e da Academia Angolana de Letras. Desde 2020, dedica-se em exclusivo à escrita, dividindo o seu tempo entre Angola, Portugal e EUA. Publicou até agora 26 livros, entre poesia, contos, ensaios e um romance. Alguns deles, além de lançados em Angola, Portugal e Brasil, foram publicados nos EUA, Cuba, Itália, Espanha, Reino Unido e Tunísia. Tem poemas traduzidos para inglês e francês, publicados em sites e revistas literárias internacionais. Em 2009, foi-lhe atribuído o Prémio Nacional de Cultura e Artes, categoria de Literatura. Em 2023, com o livro “Diário do Medo”, venceu o Prémio de Literatura DST Angola/Camões.

“O Acumulador” é o seu oitavo livro de contos. Neste novo livro, o autor prossegue o seu projecto político-literário: interrogar-se sobre a sociedade e a política angolanas. Além da história e da política do seu país, as relações interpessoais, marcadas por sentimentos partilhados universalmente, são também tratadas nestes contos. Temas inevitáveis, como identidade e raça, são referidos com naturalidade, sem maiores dramatismos. Um destaque particular para as relações entre homens e mulheres no contexto angolano, topo recorrente na obra ficcional do autor.

(Da nótula da editora Caminho)

MANUEL DOS SANTOS LIMA (1935-2024) - O escritor que “optou sempre pelo lado mais difícil da vida e da História”

Isaquiel Cori

Manuel dos Santos Lima (28/01/1935-17/12/2024) era um dos cidadãos angolanos com muitas histórias ainda para contar e que a morte retirou, inapelavelmente, do convívio dos vivos. Na qualidade de escritor contou muitas histórias, nos seus romances “As Sementes da Liberdade”, 1965, “As Lágrimas e o Vento”, 1975, “Os Anões e os Mendigos”, 1984, e na obra dramática “A Pele do Diabo”, 1984. Publicou ainda o livro de poemas “Kissanje”, 1984



Ele não acreditava no papel dos mais velhos como “bibliotecas vivas”, porque, “justamente, a qualidade da memória é esquecer”. 

“A maior qualidade da memória, ao contrário do que se pensa, não é reter. A grande qualidade da memória é esquecer. Porque se não nos esquecêssemos, ficaríamos todos loucos”.

E como a oralidade assenta na memória, cuja maior qualidade é o esquecimento, Manuel dos Santos Lima tinha reservas quanto ao “grande valor” da oralidade. Por isso reputava a escrita como fundamental para registar a memória e os testemunhos.

O escritor manifestou tais pensamentos numa entrevista concedida em 2013 ao jornalista José Rodrigues, no programa Café da Manhã, da Rádio LAC, e publicada em 2018 no livro “Entrevistas com a História”, Editora Mayamba, que reúne precisamente entrevistas de várias personalidades àquele programa. Nela o escritor, instado a dizer quem ele era, respondeu:

“Um cidadão angolano que tentou ser coerente com aquilo que os meus pais me ensinaram e com as opções que fui fazendo perante a idade histórica em que vivi.

Fui para Portugal aos 12 anos para estudar, depois de ter sido o primeiro aluno negro a ser admitido na Escola Primária do Luau, porque o meu pai se bateu por isso. Os jovens do meu tempo iam para as missões católicas ou missões protestantes e depois tinham como destino serem empregados de comércio, camionistas ou pouco mais do que isso. Tive a sorte de ter o pai que tive, que sempre quis que eu saísse da mediocridade em que ele próprio foi obrigado a viver, pois que, com trinta e tal anos de serviço como recebedor de fazenda, foi subordinado de muitos jovens portugueses a quem ele ensinou a trabalhar e que depois, inclusivamente, foram chefes dele.

O meu pai obrigou-me a jurar aos 12 anos, antes de partir, que eu iria para Portugal não para ser vadio nem futebolista, mas sim para tirar um curso. Eu jurei, e quando em 1977 volto pela primeira vez a Angola, Angola independente, e o meu pai alquebrado pela doença me vai esperar ao aeroporto, eu entreguei-lhe os meus diplomas. Mais do que uma licenciatura, eu vinha com o doutoramento. O meu pai abraçou-se a mim a chorar e disse: obrigado meu Deus, missão cumprida, já posso morrer. E dois anos depois, efectivamente, o meu pai morria.”

Numa entrevista em que se apresentou profundamente afro-pessimista (“Se a vida começou em África, como até agora parece que é geralmente aceite, quem primeiro nasce, primeiro morre. Daí eu pensar que talvez a África não seja o continente do futuro mas o continente que está morrer”), Manuel Lima contou a história da criação, em 1961, do EPLA, o braço armado do MPLA, antecessor das FAPLA. Além de ser o idealizador, criador e organizador do EPLA, Manuel Lima, que quando desertara do exército colonial o fizera com todo o seu esquema de organização, também contribuiu, com essa informação, para a estruturação das forças guerrilheiras da FRELIMO, do PAIGC “e até para a própria África do Sul, para o Nelson Mandela”.

O entrevistado narrou igualmente a circunstância da sua saída do MPLA em 1963. “… Começam os grandes problemas do MPLA e se vai dar a cisão do MPLA que acaba por desmoronar em 1963 com a saída de vários membros do seu Comité Director, entre os quais eu, porque [Agostinho Neto] não me convenceu. Mas fi-lo com toda a honestidade e consciente do meu acto. Porquê? Enquanto que, por exemplo um Viriato da Cruz se quis vingar de todas as maneiras do Agostinho Neto, eu como não concordava com a orientação dele, apenas disse Agostinho Neto eu não concordo com essa orientação, portanto vou-me embora. Aqui está o Exército Popular de Libertação de Angola, a única força organizada do MPLA, vou retomar os meus estudos.”

Ápice da fortuna crítica

O ápice da fortuna crítica da obra literária de Manuel dos Santos Lima é o livro “Manuel dos Santos Lima, Escritor Angolano Tricontinental”, organizado pelos professores Francisco Topa e Irina Vishan, publicado pela Edições Afrontamento, Portugal, em 2016. O livro reúne as  comunicações apresentadas no colóquio “Baobá, pinheiro, ácer: Manuel dos Santos Lima, escritor ‘orgânico’”, realizado em Novembro de 2015 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O escritor tinha então 80 anos e esteve presente no certame. Dificilmente poderá haver maior homenagem a um autor vivo.

Interessa aqui transcrever parte significativa da “Nota de Apresentação” assinada pelos organizadores/coordenadores da obra.

“Em parte pela sua vivência tricontinental (e a sugestão de paralelismo com Glauber Rocha é menos despropositada do que pode parecer à primeira vista), em parte pela sua divergência política, a partir de certa altura, com Agostinho Neto e o MPLA, em parte ainda pela contundência da sua crítica à geração da distopia contida no romance ‘Os anões e os mendigos’, de 1984, a verdade é que Manuel dos Santos Lima não tem sido valorizado como entendemos que merece. E a sua obra, com a qualidade que lhe tem sido reconhecida pelos escassos especialistas que nela atentaram, apresenta uma assinalável diversidade (poesia, teatro, romance e ensaio) e longevidade (o primeiro livro, ‘Kissange’, é de 1961, mas inclui textos escritos na década anterior). Introduzir no título deste volume o adjectivo tricontinental é também uma forma de sublinhar a condição multi-exílica de um autor que, ontem como hoje, tem estado acima do seu tempo, fazendo do mundo o seu espaço, sem com isso abdicar da sua condição de angolano. Na conferência de abertura, Salvato Trigo, abordando o conjunto da obra de Manuel Lima, destaca justamente as cicatrizes dos vários exílios que o marcaram, estabelecendo uma aproximação a ‘Les soleils des indépendances’, de Ahmadou Kouroma, e a ‘The interpreters’, de Wole Soyinka, e concluindo que estamos perante uma ‘escrita fundadora, em que se filiarão mais tarde, nos finais dos anos de 1990, Pepetela e Manuel Rui Monteiro’.

A historiadora Anabela Silveira apresenta-nos uma leitura dos romances de Lima à luz dos acontecimentos que marcaram a recente história de Angola, mostrando que foi ‘essa desilusão, essa desesperança, esse descomprometimento em relação ao poder e regime instituídos que lhe permitiu um olhar sagazmente crítico sobre o longo trajecto percorrido pelos angolanos - do colonialismo à luta de libertação, da independência a outras dependências, em que o sonho de uma sociedade mais justa ficou pelo caminho’.

O também historiador, brasileiro, Fernando Afonso Ferreira Junior aproveita a trilogia romanesca de Santos Lima para abordar a importância estratégia do caminho-de-ferro, tanto no contexto colonial como no período posterior à independência. Ainda no domínio da história económica, segue-se o minucioso trabalho de Maciel Santos, sobre as ‘relações industriais’ da Diamang durante a década de 1960, ao longo do qual o autor faz também um enquadramento comparativo com o antigo Congo belga quanto à evolução da ligação entre capital e trabalho em Angola durante as últimas décadas da administração colonial.

Maria Belém Ribeiro e o jovem estudante Rui Teixeira dedicam os seus trabalhos ao estudo da poesia de Manuel Lima, a primeira fazendo uma leitura semiótica de alguns textos de ‘Kissange’, o segundo analisando a composição ‘África’ à luz do Génesis.

‘A pele do diabo’, publicada em 1977 mas escrita na década anterior, constitui o foco dos trabalhos das estudantes Patrycja Litewnicka e Lara Videira, ao passo que o historiador e romancista Alberto Oliveira Pinto analisa com minúcia a dimensão histórica do romance ‘Os anões e os mendigos’, considerando que ele ‘ficará na história da literatura angolana como uma das primeiras e corajosas denúncias do despotismo forjado, herança do discurso darwinista enselvajador, legitimador das desigualdades sociais e humanas no continente africano, falaciosamente projectado para um período pós-colonial e para um neocolonialismo ainda hoje bem vivo’.

Pires Laranjeira procede a uma leitura de conjunto da obra de Santos Lima, que reputa ‘um pioneiro e uma raridade no campo cultural e político dos países africanos de língua portuguesa’, aproximando-o ‘dos escritores africanos que se têm oposto aos poderes estabelecidos nos seus países, desde Mongo Beti a Chinua Achebe, Ngugi Wa Thiong’o, Soni Labou Tansi ou Christopher Akigbo’.

Monalisa Valente Ferreira reflecte sobre os romances mais recentes do autor, ‘As lágrimas e o vento’ e ‘Os anões e os mendigos’, servindo este último de tema aos três artigos finais.

Cristina Vieira trata com demora da intertextualidade entre a narrativa e a Bíblia, Francisco Topa discute a possibilidade de se tratar de uma obra à clef distópica e Ana T. Rocha mostra como a desilusão e a crítica estão simultaneamente próximas e distantes do romance de Pepetela ‘A geração da utopia’. O volume encerra com um trabalho intitulado ‘Elementos complementares para uma biobibliografia de Manuel dos Santos Lima’, que tenta sistematizar e esclarecer alguns aspectos da vida e da obra do autor, incluindo também algumas fotografias menos conhecidas. Resta-nos esperar que o livro tenha alguma receptividade e ajude a fazer justiça a um escritor e a um homem que optou sempre pelo lado mais difícil da vida e da história.”  

Excerto biográfico

Excertos biográficos de Manuel dos Santos Lima estão disponíveis na internet e ao longo da semana circularam profusamente nas redes sociais. Aqui, e dada a limitação de espaço, resta-nos dizer que ele nasceu aos 28 de Janeiro de 1935 na cidade do Cuito, Bié, indo viver posteriormente no Luau, Moxico. Aos 12 anos foi para Lisboa para estudar no Liceu Camões e, posteriormente, na Faculdade de Direito (1953) da Universidade de Lisboa.  Foi residente da Casa dos Estudantes do Império (CEI), tendo colaborado na revista “Mensagem”. Foi o primeiro oficial negro do exército português. Desertou para participar na luta pela independência de Angola. Trabalhou, em Paris, com Mário Pinto de Andrade, Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire na revista “Présence Africaine”.

Abandonou o MPLA em 1963 por divergências com a liderança de Agostinho Neto. Doutorou-se em Literatura Comparada na Universidade de Lausanne, na Suíça., com a tese sobre a obra de Castro Soromenho (1975). Foi professor universitário no Canadá, França e Portugal, bem como em Angola na Universidade Lusíada, de que foi reitor. Em 1992 fundou o partido político MUDAR (Movimento de Unidade Democrática para a Reconstrução).