terça-feira, 28 de dezembro de 2021

ESCRITOR LUÍS FERNANDO “O cronista é um narrador apressado e animado da História”

Acaba de alcançar um feito porventura inédito: num único acto publicou dez livros. São sete de crónicas, um de contos, um romance (reeditado) e um de ensaios. Mas já tinha uma bibliografia composta por títulos como “A Saúde do Morto”, “Clandestinos no Paraíso”, “Silêncio na Aldeia”, “Notícias do Palácio - O primeiro ano do mandato do Presidente João Lourenço”, e outros. Já era sabido, mas o multilançamento recente confirmou a predilecção do escritor Luís Fernando pela crónica, género de que fala com a paixão e o conhecimento de quem o cultiva há mais de trinta anos. Na entrevista que se segue, iniciada pelo Whatsaap e finalizada por email, Luís Fernando exprime-se sobre a sua escrita e  o desempenho profissional dos jornalistas. E faz uma revelação: “Neste momento, para mim, a criação literária está suspensa (...) pela razão mais do que previsível: não resta muito tempo disponível”

 

Isaquiel Cori

 

É incomum, em qualquer parte do mundo, um autor proceder ao lançamento simultâneo de dez livros. Por que procedeu assim? Não pensou na possibilidade de confundir os leitores, diante de uma oferta tão vasta? 

Observação interessante, de facto! Não sei mesmo se existirá registo de um acontecimento deste noutra latitude da geografia mas deixe-me dizer-lhe que foi uma situação meramente circunstancial. Eu fui produzindo ao longo de anos (doze ao todo, entre 2004 e 2016) textos diversos para livros e que foram chegando à mesa de trabalho do meu editor, Arlindo Isabel. Diversos factores, de entre eles o financeiro, fizeram com que a editora Mayamba não pudesse ir terminando os livros à medida que ia recebendo os originais e tudo se foi acumulando… 



Desta vez, e aproveitando a data expressiva do meu aniversário (60 anos), a editora achou que ficaria bem um esforço especial para se colocar no mercado tudo o que tínhamos de textos engavetados e lançámo-nos à procura de patrocínios. Entidades com alguma folga financeira aceitaram o desafio e usando a sua quota do que se conhece como “responsabilidade social” das empresas, financiaram a produção dos dez livros e, desse modo, foi possível ter, num único acto, a apresentação das dez obras. Foi um record pouco habitual… 

Se os leitores não se confundirão com tão grande oferta em simultâneo? Acredito que não, porque embora tendo sido muitos livros, não foi assim uma diversidade de géneros tão grande. Por exemplo, sete dos dez livros são crónicas. Depois, há a minha estreia no conto, um romance reeditado e, por último, textos de apresentação de livros que resolvi compilar, algo como rápidos ensaios de Literatura.   

 

As suas crónicas são trabalhadas com o sentido de oportunidade, o olhar e a sensibilidade do jornalista, mas o texto resultante é claramente literário, é literatura. É por isso que tem a preocupação de tão logo resgatar as suas crónicas do arquivo dos jornais para o livro? 

Exactamente! As minhas crónicas escrevi-as originalmente para páginas de jornais mas mal ganhavam a forma de mancha impressa, texto impresso, qualquer leitor percebia sem esforço que o que tinha em mãos era Literatura. Por isso, recusei-me sempre a ver as minhas crónicas a morrerem vítimas da doença efémera associada às notícias dos jornais, achava isso uma injustiça e um desprezo ao valor da obra literária. Atenção: não pretendo com isto dizer que se danem os jornais e as suas colunas, os seus escritos, e que viva para sempre a Literatura! Nada disso! Mas a rapidez com que resgato as crónicas que publico em primeira mão em jornais para passarem a livro tem realmente a ver com essa observação que faz com grande acerto: se as crónicas são nitidamente textos literários, então que passem a livro, que é lá o habitat da Literatura! 

 

Enquanto cronista quem são os mestres que o inspiraram ou que ainda o inspiram?  

Fiz-me cronista sem dúvidas depois de descobrir essa vertente criativa no colombiano Gabriel García Márquez em Cuba, na década de 80, no jornal “Juventud Rebelde”, onde partilhava uma coluna ao domingo com outro grande escritor, cubano este último, Enrique Nuñez Rodríguez. Aprendi com ambos a perceber que qualquer tema, facto ou episódio banal do quotidiano pode ser transformado em tesouro de leitura, numa relíquia literária, pois o valor da peça não era tanto ou somente o relato em si mas o modo como tudo era descrito. Indiscutivelmente para mim a crónica tem a sua chave, o seu segredo, o seu lado delicioso, no modo como a palavra é burilada, como a descrição é feita. Tem de existir fascínio no modo como o cronista relata aos outros aquilo que a sua sensibilidade captou e elegeu como motivo bastante para ser narrado.  

Concretizando a resposta: os meus mestres, a minha inspiração mais firme e acabada, chamam-se Gabriel García Márquez (colombiano) e Enrique Nuñez Rodríguez (cubano). 

 

O prazer que deriva da leitura das suas crónicas terá correspondência com o prazer com que as terá escrito? Ou o prazer da leitura esconde muito trabalho e esforço de escrita, algum sofrimento mesmo? 

Acredito que exista um alinhamento perfeito entre o prazer da escrita e o prazer da leitura, da fruição, das crónicas que escrevi e agora estão definitivamente agrupadas em livros. Não se esqueça que só se é cronista se se for apaixonado pelo género e não existe outra maneira de se gostar profundamente da crónica se não for, primeiro, por via da leitura. Ou seja, temos antes de gostar de crónicas lidas algures para nos propormos o desafio de querermos fazer, também, algo que se aproxime, que iguale ou que supere aquilo que nós lemos de outrem. Portanto, é só prazer, é só satisfação plena, no ciclo completo da crónica: feliz ao escrevê-la, feliz em igual proporção ao ler o resultado! 

 

Os factos e as pessoas das suas crónicas são sempre verdadeiros? 

Em 99% das crónicas que escrevi, elas correspondem a factos reais e a pessoas reais, de carne e osso. Pode acontecer que um ou outro detalhe seja apimentado com uma boa dose de ficção mas não é isso que representa a espinha dorsal do texto. O cronista é, em boa verdade, um narrador apressado e animado da história, seja a que faz a mundivivência das comunidades seja a outra, a de interesse global, a História com H maiúscula.  

 

Já lhe aconteceu estar a pensar ou a escrever uma crónica e depois concluir que não, que está diante de matéria para ficção? 

Incontáveis vezes. Há crónicas que percebi desde o primeiro momento que nunca chegariam a sê-lo porque o género tem a característica de ser um relato breve, rápido, e essas, para serem absorvidas, precisariam de maior desenvolvimento, mais espaço, textos mais volumosos com relatos mais detalhados. O meu romance “A Cidade e as Duas Órfãs Malditas” nasceu de uma tentativa inicial de se escrever uma crónica para relatar a saga de duas irmãs que passavam doenças venéreas à rica burguesia da Luanda do século XIX. Entendi que seria puro desperdício esgotar num texto com umas poucas linhas uma história rocambolesca que valia a pena mostrar de forma híbrida: metade factos reais e metade ficção ao sabor da criatividade do escritor.    

 

Quando é que o ficcionista entra em cena? Quando é que sente que é hora do romance acontecer? 

Simples: quando os limites da crónica “alertam” o escritor que não vai conseguir partilhar com os seus leitores a sua experiência. Porque a Literatura não é outra coisa senão o desejo quase irreprimível de contar às pessoas aquilo que sabemos e achamos digno de ser distribuído por todos. Um escritor é, no fundo, um filantropo: dá parte do que tem aos demais! 

Um tema que precise de mais do que uma ou duas crónicas para ser “oferecido” aos leitores é o primeiro sinal de que se pode estar diante de matéria-prima que pode servir para algo maior, mais espaçoso, mais volumoso: um livro!  Não custa muito ao escritor “cheirar” isso, descobrir o ponto em que deve abandonar a ideia da crónica e lançar-se no desafio de escrever um romance, uma novela, um ensaio ou qualquer outro género.   

 

Falemos um pouco de jornalismo. Como vê o desempenho dos seus antigos colegas de profissão? De quando em vez sente saudade de exercer a profissão? 

Sabemos todos que existem profissões viciantes e o Jornalismo é uma delas…no bom sentido, diga-se! É claro que nunca se deixa de ser jornalista, por mais que deixemos de frequentar o mundo fascinante de uma Redacção. Vivemos o Jornalismo de mil maneiras, uma delas é -estando fora do activo -, transformar-se numa espécie de revisor caçando as gralhas dos jornais, ou de leitor-crítico, que não espera apenas encontrar a notícia e a reportagem nas páginas dos diários ou semanários, mas se pergunta se aquela notícia está bem elaborada e se aquela reportagem, se fosse eu a fazê-la, teria tido aquele ângulo de abordagem.  

Mesmo longe do lufa-lufa da Redacção, o nosso vínculo com essa oficina da escrita urgente não se quebra totalmente. Deixamos de estar fisicamente na Redacção, é verdade, mas o nosso espírito viaja para lá e, vez por outra, “vemo-nos” sentados de colete e computador a fazer o que fizemos ao longo de uma vida. Continuo a acompanhar os meus colegas, sobretudo os que fazem rádio e os que publicam em jornais, que são os dois mundos principais daquele que é o meu percurso de mais de 40 anos como jornalista.  

Como os vejo? Do mesmo modo como nos meus tempos de jornalismo activo: os dedicados, os que se esforçam e não olham para a profissão como um mero emprego que dá salário ao cabo de 30 dias a rabiscar o livro do ponto, têm futuro, hão-de singrar na sua caminhada, o futuro falará deles e por eles. Os outros, os que estão na profissão errada e não vivem o Jornalismo do único modo que a profissão permite que se viva – com paixão, com intensidade, com entrega absoluta – hão-de acabar como é esperado que acabem: ignorados, esquecidos, sem glória. Simplesmente desaparecerão do espaço público, por mais que se arrastem nas Redacções por dezenas de anos! 

 

Não acha estranho que o jornalismo angolano actualmente forneça tão poucas individualidades para a literatura? Na sua opinião a que se deverá isso? 

A explicação é simples: reduziu enormemente o rebanho – se me permitirem o termo simpático – dos que viviam as Redacções e a profissão como um sacerdócio. O romantismo dos que consideravam o Jornalismo, como Gabriel García Márquez, a “profissão mais linda do mundo”, anda à míngua, perdeu-se no emaranhado de problemas existenciais do nosso tempo e as Redacções foram invadidas por pessoas em busca de remuneração para as despesas do lar, as contas da família. Não é destes grupos de “operários” do Jornalismo que nascerão os novos David Mestre, Ernesto Lara Filho, Alfredo Bobela Motta, Ernest Hemingway, Machado de Assis, José Saramago, Gabriel García Márquez ou Monteiro Lobato, que tinham as Redacções como espaços oficinais e de cultura, onde o debate era elevado e a tempo inteiro. Nas Redacções, hoje, olha-se para o relógio com pressa de se ir para casa e, no dia seguinte, com o jornal a circular, muitos dos nossos colegas nem sequer se dão ao trabalho de ler o que eles mesmo escreveram, para comparar o que mudou entre a versão entregue ao editor e as alterações que este introduziu eventualmente… 

 

O facto de estar tão próximo do poder político, onde por norma vigora o politicamente correcto, de alguma forma condiciona a sua liberdade de imaginação e de criação literária? 

Neste momento, para mim, a criação literária está suspensa, não por qualquer condicionalismo derivado do que chama de “politicamente correcto em vigor” mas pela razão mais do que previsível: não resta muito tempo disponível. Dirão alguns: mas escreveste o livro Notícias do Palácio? Pois foi precisamente a experiência dura de fixar em livro a experiência governativa de um ano frenético, de muita actividade diária, profundo envolvimento em diplomacia, que me lançou o conselho amigo: poupa a pouca energia que te sobra para a atenção à família e volta a escrever um dia, sem as ocupações profissionais de agora. Acatei o conselho! 

 

Os seus livros “Angola: Memórias da Transição Política - De José Eduardo dos Santos a João Lourenço” e “Notícias do Palácio – O primeiro ano de mandato de João Lourenço” fundam uma narrativa sobre o poder que certamente irá influenciar a visão histórica. Esse projecto terá continuidade enquanto estiver a trabalhar no Palácio? 

Fui motivado, nas duas experiências, pelo exasperante vazio que reconheci existir no relato da nossa vida governativa, do nosso ambiente político. Assustei-me enquanto cidadão não conseguir, por exemplo, encontrar em livro ou outro suporte qualquer, a narrativa de um 15 de Março de 1961 na perspectiva dos protagonistas da acção, um facto histórico de enormíssima repercussão sobre a vida de todo o Norte de Angola, que levou a ter uma estrada asfaltada com mais de 300 km a permanecer fechada por décadas (Luanda-Uíge, via Úkua-Piri…). Tudo o que se pode encontrar é o relato feito por portugueses, a mostrar uma visão unilateral daqueles factos dramáticos… 

É claramente um caminho a prosseguir, o sermos nós próprios enquanto protagonistas ou testemunhas da História fazer o seu relato. Sonho com livros que muitos dizem andar a escrever sobre heróis nossos, grandes figuras das nossas guerras, batalhas, acções épicas… 

O certo é que há muito pouca literatura com esse perfil – relato histórico – a chegar às livrarias, às bibliotecas, e muitos dos que têm coisas a dizer, vemo-los partir uns detrás de outros sem que o legado escrito fique. Com muita pena e muita dor, confesso.  

Eu quero fazer a minha parte, contribuir humildemente com o meu olhar à volta. Neste momento, como já o referi antes, sobra pouco ou nenhum tempo para escrever, pelo que não há, para já, como contar com novo livro meu, naquela linha ou noutra qualquer. Mas dispondo de tempo, um dia no futuro, é evidente que surgirá a sequela de Notícias do Palácio. Até já tem título. Vai chamar-se “Servir”.   

.......................................... 

 


Perguntas de algibeira 

 

Qual foi o último livro que leu? E o que está a ler? 

“Sua Excelência de corpo presente”, de Pepetela. Estou neste momento a ler, na versão original em espanhol, “La Parábola de Pablo”, um ensaio interessantíssimo sobre o narcotraficante Pablo Escobar.  

 

Que livros e autores recomenda para este final de ano? 

“Tio Jorge e outros quês”, contos de Manuel Rui; “Contos de Natal”, de um grupo de autores como Cremilda de Lima, Eduardo Águaboa e Onélio Santiago.  

 

E que discos e cantores? 

 “The Soul Music of Angola”, de Afrikhanita e qualquer disco de Paulo Flores, o cronista da voz 

 

Qual foi a última exposição de arte que visitou? 

Guilherme Guizef, uma combinação de pintura e escultura, no Museu da Cerveja, em Lisboa. 

 

E a última peça de teatro que assistiu? 

“Clandestinos no Paraíso”, pelo grupo Twana Teatro. 

 

Tomessa é um sonho,  uma ideia, um mito, uma história de infância? 

Tudo isso. E mais: o alfa e ómega de Luís Fernando, o princípio e o fim do ser que eu sou!  

 

Quando pensa em Cuba hoje, o que lhe vem à memória? 

A vibrante cidade cultural que é Havana, mesmo faltando o pão e o arroz… 

 

Qual é o lugar em Luanda onde mais gosta ou gostaria de estar? 

Na Ilha do Cabo, virado para o mar infinito. Porque inspira e faz os genes da Literatura “andarem às turras” nos labirínticos caminhos do cérebro. 

 

E fora de Luanda? 

Uíge, em tarde de chuva. 

 

E no estrangeiro? 

Times Square, provavelmente o centro do mundo. Cidade de Nova Iorque, onde João Kyomba se perdeu definitivamente, na sua versão feiticeiro boémio…  

 

............................................................................................................

 

Perfil breve

 

Luís Fernando nasceu na aldeia de Tomessa, província do Uíge, em 1961. Jornalista desde os 17 anos, trabalhou por mais de década e meia na RNA, onde foi sucessivamente sub-chefe de Redacção, re-writer, correspondente em Havana e director de Informação. Durante 12 anos foi director-geral do Jornal de Angola. Dirigiu o semanário O País (hoje diário) por cinco anos, desde a sua fundação em 2008. Foi administrador executivo do grupo Media Nova.

Em 2011 foi vencedor do Prémio Maboque de Jornalismo.

Membro da União dos Escritores Angolanos, actualmente Luís Fernando é secretário para os Assuntos de Comunicação Institucional e Imprensa do Presidente da República.

Sem comentários:

Enviar um comentário