Tem novo livro no mercado, o poemário “Software Carnal”, com chancela da editora Kalunga. José Luís Mendonça, em nótula autobiográfica constante do livro em referência, apresenta-se assim: “homem de profissão, jornalista por concessão e poeta por distracção”. É detentor de vários prémios literários, nomeadamente Prémio Sagrada Esperança (Chuva Novembrina”, 1981, e “Quero Acordar a Alva”, 1996); Prémio Sonangol de Literatura (“Respirar as Mãos na Pedra”, 1990); Prémio dos Jogos Florais do Caxinde (“Se a Água Falasse”, 1997); e Prémio Angola 30 Anos (“Um Voo de Borboleta no Mecanismo Inerte do Tempo”, 2005). Actualmente consultor na empresa Edições Novembro, dirigiu e editou, durante sete anos, o jornal Cultura. Licenciado em Direito, José Luís Mendonça é o vencedor do Prémio SADC de Jornalismo 2021. Na entrevista que se segue Mendonça fala do seu novo poemário, do possível impacto das redes sociais e da Internet na evolução humana e na própria poesia. E explica as razões que o fizeram abandonar tanto a União dos Escritores Angolanos como a Academia Angolana de Letras
Isaquiel Cori
“Software Carnal”, o título do seu novo poemário,
suscita logo à partida várias questões sobre a interligação do humano com a
inteligência artificial ou a influência da computação nas nossas vidas. E faz
lembrar aqueles personagens do cinema, os cyborg, meio humanos meio máquinas. É
sua opinião que a humanidade realmente caminha para aí?
Obviamente. Vivemos num contexto global
dominado pela hipermídia digital e o seu fruto civilizacional, o
Homo Zappiens (nome proposto por Wim Veen e Bem Vrakking, 2009, para aqueles
que nasceram a partir do início da década de 1990) – “primeiros seres
digitais”. Por força desta realidade, que o próprio Homem criou, toda a nossa
evolução, agora, suscita em nós, um processo de automatismo. Como um chip
incrustado no olhar. Em “Software Carnal” eu digitalizo os versos, com recurso
ao software inamovível e desconhecido da origem da Vida, misteriosamente oculto
no corpo humano, mas com maior representação no da Mulher. O corpo da mulher é
um hino à misteriosa e infinita expansão do Universo que aqui, neste lugar
chamado Terra, se reedita no ventre expansivo em tempo de gravidez, nos olhos
húmidos e luminosos da Mulher dotados da ciência maternal de ver e na sede dos
dedos a tactear a liquidez das coisas que nos rodeiam.
Vozes há que se interrogam sobre o verdadeiro
impacto das redes sociais na evolução humana, que passaria a depender
sobremaneira de imagens projectadas e de associações determinadas por
algoritmos, esvaziando-se cada vez mais a vida de relação e de proximidade
física. Você também vê assim as coisas?
Vejo e não vejo. Vejo, porque paulatinamente me
vejo submerso nessa onda universal de decomposição electrónica dos afectos.
Hoje, a sociedade humana caiu na monetarização do pensamento. Tudo é vendável.
Até a própria alma. Porque se perdeu muito do humanismo próprio do Sapiens, (trans)ferido
para o Zappiens. O Zappiens é perigoso contra si mesmo.
Um amigo jornalista, comentando o caso de vários
jornalistas forçados a aposentar-se, um
dia disse que eles estariam mortos se as redes sociais não existissem.
Pessoalmente sente que as redes sociais lhe deram um novo fôlego?
Verdade absoluta. Veja que eu ganhei o prémio SADC
de jornalismo pelo meu artigo publicado num órgão online. Embora não ganhe
nada, em termos salariais.
O mundo e a vida tal como se apresentam nas redes
sociais têm um viés bastante fragmentado e o conjunto de postagens é comparável
a um interminável fluxo de consciência, a mais das vezes surrealista. São as
redes sociais verdadeiramente o reino da liberdade humana?
No caso de Angola, onde o ANGOSAT se perdeu e ninguém
diz como não foi possível reproduzir outro satélite com o reembolso do dinheiro
pago, onde o público maioritário não tem acesso às redes sociais por falta de
internet, aqui esse reino da liberdade é acessível a uma pequena franja de
pessoas, mas essa pequena franja reproduz o pensamento da maioria e os
interesses dos grupos político-religiosos. É uma espécie de selva
contemporânea, onde se digladiam verdades, horrores e mentiras sem paralelo…
Não teme que algum dia os poetas venham a ser
substituídos por programas de computador?
Temo e bastante. O plágio é um indício dessa
transformação computacional. Você observa como o livro perdeu o seu valor de
artefacto do conhecimento em Angola e quase por todo o lado. Até já se fazem
pinturas e comida pelo computador. É o progresso. Só falta criar o ser humano numa
máquina, com um cérebro de chip electrónico. A Poesia só pode ser salva pelos
verdadeiros poetas, os homens e mulheres hiper-sensíveis, que ainda a cantam e
escrevem à mão.
“Software
Carnal” é mais um tributo seu à mulher. Está visto que para si a mulher é um
tema absolutamente inesgotável...
Na
verdade, é inesgotável. O primeiro deus na Terra, há mais de 30 mil anos, foi a
Mulher. O ser humano espantava-se de ver a mulher parir filhos. Dos seus seios
brotava leite para amamentar esses filhos. Nessa época, a Mulher foi endeusada.
Foi a Revolução Agrícola, há 15 mil anos, que destronou a Mulher do seu templo
de adoração. Com o sedentarismo e a criação de animais, o homem observou que,
no reino animal, o macho tem uma função seminal e que os filhos não eram apenas
obra de forças misteriosas. Foi quando nasceu o sentimento de paternidade e a
apropriação, pelo homem do lugar divino. Por isso é que Deus é macho, é
representado como um Pai. E o Filho de Deus nunca podia ser do sexo feminino.
Eva sairia de uma costela de Adão. Mas o rei Salomão volta a adorar a deusa
chamada Mulher, nos seus cantares. E do mesmo modo, eu assim a represento em “Software
Carnal”.
A
mulher nos seus poemas aparece ora como objecto de desejo, a detentora do
“software carnal da origem da vida”, ora como a expressão da beleza ancestral.
Há na sua vida uma musa inspiradora, ou os seus versos partem de um olhar para
a mulher no geral?
Muitos
dos meus versos têm uma fonte carnal, palpável, sangrante. Outros têm uma fonte
onírica, é o imaginário apenas. Se eu não fosse um ser vivente e pensante não
haveria os poemas do sujeito poético que me nasce a todo o instante. É verdade
que certas mulheres, em determinadas fases da minha vida me encheram o coração
de maresia, outras me beberam o tutano dos ossos, como se eu fosse um javali
leiloado na savana pelo êxtase feminino. Hoje, nem sei mais onde se acumula
todo o pó dessas atracções súbitas, umas, diferidas no tempo, outras,
inacontecidas, outras ainda, a memória que me assola é de uma monumental
geometria, parece Deus se repetindo em Criação.
Quais
são, na sua opinião, os pontos fortes e os pontos fracos da instituição
Literatura Angolana?
A
instituição Literária Angolana subsiste submersa em mitologias pré-fabricadas
na Casa dos Estudantes do Império, subvertidas pelo Movimento dos Novos
Intelectuais de Angola e pela revista Mensagem, de pouca duração, e recicladas
com a independência e o slogan da arte ao serviço da revolução. Portanto, a
Instituição Literária Angolana, cá dentro, tem um templo chamado UEA fundado
sobre alicerces político-partidários, e esse electrólito disfuncional, para
além de ficcionar lugares cimeiros no campo da literatura angolana, é um
elemento de decomposição da criatividade do escritor autóctone. Tal como o
jornalismo, a literatura só produz excelência num ambiente de liberdade de
expressão e de alta tecnologia do artefacto chamado texto. Perante esta
realidade (e já terei o troco dos Guardiões do Templo daqui a pouco),
ergueram-se vozes criadoras contrárias ao status quo, que usaram e abusaram
desse estatuto, tendo, na sua maioria, produzido outras lavras literárias com
reconhecimento exógeno, visto que, aqui no país, há, até hoje, uma certa
aversão ao escritor “rebelde”, quando, sem rebelião, não pode haver literatura
digna desse nome.
Está
na reforma, fechou-se um longo ciclo da sua vida profissional. E parece que
inaugurou um novo ciclo na sua vida, mais libertário e voltado para as
realidades da sociedade civil...
O jornalista, tal como o professor, não vai nunca
para a reforma. Se não escrever para os órgãos das Edições Novembro, minha
empregadora, hei-de escrever para outros. Mas, na realidade, fabriquei
recentemente um novo romance histórico e, para além, do “Software”, um novo
livro de poemas.
Se debruça sobre que época histórica, o seu novo romance?
Outra vez a
Independência, o 27 de Maio e a Covid de hoje com as suas nuances totalitárias.
É que está muita coisa por resolver na nossa
Independência e está muitíssima coisa por assacar do 27 de Maio, a sua
essência, o seu fundamento sociológico e humano, que foi a inauguração do
sistema de tortura legalizada pelo seu não reconhecimento oficial. Sobre a
Independência, o romance explora o poema “Havemos de Voltar”, de Agostinho
Neto, para mostrar até que ponto existe uma extrema dissonância entre os
conceitos e imagens ali expressos e ao que realmente não houve até hoje o Povo
de voltar. De igual modo, o problema já aflorado em “O Reino das Casuarinas” e
em “Se os Ministros Morassem no Musseque” (um e não o mesmo romance) de não
haver Independência nem desenvolvimento sem a verdadeira integração e inclusão
económica e política de todas as ex-nações que o colonialismo ficcionou num só
mapa sob o império da língua portuguesa.
O JLM nos últimos anos tomou decisões fundamentais
na sua vida, que não sei se já terá tido a ocasião de explicar publicamente.
Refiro-me ao facto de ter abandonado a condição de membro da União dos
Escritores Angolanos e de se ter afastado da Academia Angolana de Letras. A que
se deve esse recuo?
Não foi um recuo. Foi uma conquista para a minha
liberdade de pensamento e de criação. A UEA, tal como as outras agremiações
criadas na era inicial da Independência, continuam a ser apêndices do partido
no poder e, até, estrictamente vigiadas pelos Serviços de Inteligência. Para
provar o que digo, é só ver que a UNAP (União Nacional dos Artistas Plásticos)
tem, à frente da Assembleia Geral, um escritor, membro da UEA. Para
salvaguardar o quê?
Deve-se então inferir que, supostamente, os membros
da UEA têm ligações aos Serviços de Inteligência, ao ponto de alguns deles
serem “destacados” para vigiarem outras classes de artistas?
A questão não é assim
tão directa! Não se trata de uma delegação dos Serviços de Inteligência dentro
da UEA ou das outras associações como a UNAP, que já citei. Trata-se, isso sim,
de um controlo partidário, coadjuvado pela Inteligência. O caso do meu irmão
Zacarias Musango é paradigmático. Em 2018, a UEA fez de tudo para que a minha
pretensão – de fazer justiça a um inocente – não fosse avante, para
salvaguardar a Polícia. Para que se fazem coisas deste género? É preciso
chegarmos a este ponto, porquê? Até ficaria bem para a corporação desligar-se
desse crime, condenando os seus verdadeiros autores! Veja que, quando eu pedi
assinaturas dos membros da UEA para realizarmos a assembleia extraordinária
para redigirmos a moção de repúdio, tive o apoio de 13 confrades, incluindo
Pepetela e Maria Eugénia Neto. Mesmo assim, faltaram 2 assinaturas, para as 15
necessárias e não fizemos a assembleia extraordinária. Nessa ocasião, o
ex-secratário-geral convocou a TPA para uma conferência de imprensa na UEA, onde
pôs a falar a pobre da viúva – vejam lá! – ladeada por um familiar desta, das
FAA e fardado – mas que aberração! – e este oficial das FAA é que falou o
seguinte: “Nós, familiares do falecido, não queremos que usem o nosso irmão
para resolverem os vossos conflitos na UEA” (mais ou menos isso). Eu e o irmão
do falecido, que também é guarda e nunca foi entrevistado, ainda tentamos pedir
à TPA para usar o contraditório, mas a TPA não aceitou. Este foi também outro
motivo que me levou a sair da UEA. As pessoas que me conhecem sabem que eu não
sou desse género, de convocar uma assembleia extraordinária para tomar o poder
seja lá onde for, não tenho esse feitio, nem sequer me vejo a dirigir a UEA,
não me interessa, o assunto resvalou, por criação conjunta da UEA-TPA, de um
assunto de crime de homicídio preterintencional, para um assunto de luta pelo
poder na UEA. Mas que imbecilidade! Com todo esse imbróglio, é fácil de ver
como há interesses do Estado (que também desconheço!) inseridos na gestão de
uma associação meramente literária. Valha-nos Deus, Virgem Santíssima! Mas para
quê mantermos este estado de coisas, 40 anos depois da independência, quando o
Muro de Berlim há muito foi derrubado! É preciso ter tomates para libertar a
Arte!
Voltando
à questão do abandono da UEA...
Eu abandonei a UEA, e não entro no seu quintal
sequer, porque um meu irmão, Zacarias Musangu, guarda daquela associação foi
torturado até à morte numa esquadra da Polícia no Cassequel. Foi acusado pelo
chefe da polícia de ter roubado a placa
de uma viatura estacionada na UEA. Durante o dia. E foi raptado pelo chefe da
esquadra do Cassequel, porque se a autoridade leva detido um cidadão, sem
mnandado de captura, está a violar a Constituição e Lei Penal. Está a violar um
direito fundamental do cidadão. É rapto. E o meu irmão ficou lá detido três
dias e não apareceu nenhum procurador da PGR, nem advogado. Estes só apareceram
um mês depois da morte da Zacarias Musangu, porque eu, que estive fora na
altura da detenção e morte do meu irmão, no meu regresso fiz um certo
“barulho”, na minha coluna do Jornal de
Angola. Só assim é que entraram em cena uma procuradora e o advogado da
UEA. Para fazer nada. Simplesmente para consolidar a “pureza” da autoridade
policial. Mas nunca se provou que Zacarias foi realmente culpado. Neste caso,
como Zacarias esteve sob custódia do Estado, o Estado, através da PGR ou do Ministério
do Interior, tem a obrigação de indemnizar a viúva e os quatro filhos do meu
irmão Musangu. Só depois dessa indemnização é que talvez eu entre na UEA. A
indeminização deve atingir a soma de 80 milhões de kwanzas. O Estado deve pagar
80 milhões de kwanzas, 40 milhões pelo nojo da viúva, para ela acabar a casa
que o marido não concluiu e uma espécie de compensação pela perda irreparável
da vida do seu marido. Dez milhões para cada filho órfão, para continuarem os
estudos e se formarem. Quando eu regressei do exterior, em 2018, e sugeri a tal
moção dirigida ao Ministério do Interior, de repúdio pela morte sem necessidade
de um homem sem culpa provada, a direcção da UEA insurgiu-se contra mim. Eu não
ponho os meus pés na UEA, porque, segundo a nossa tradição, o meu irmão virou
Kanzumbi, quando por lá passo, vejo-o a chorar lágrimas de sangue no parque de
estacionamento onde foi detido pela Polícia. Enquanto não se fizer justiça para
com a viúva e os filhos (indemnização do Estado), ele lá estará a chorar, já
não pela própria morte, mas pela sorte da mulher e dos filhos.
E por
que saiu da Academia Angolana de Letras?
Saí também da AAL, porque não podia encarar os
mesmos membros que também são da UEA, os que se opuseram à minha proposta. Não
concebo um escritor que não seja humanista. Um escritor conivente com a morte
gratuita de pessoas é tudo, menos escritor. Esta sua pergunta levanta uma das
questões mais cruciais da História da nossa Angola: a tortura. A tortura,
proibida pela Declaração dos Direitos do Homem, é um assunto que deve ser
amplamente e exaustivamente debatido e resolvido pelo MPLA, que é quem manda em
Angola.
Naturalmente não se pode impor uma suposta maneira
ideal de se ser escritor. Mas, na sua visão, hoje, em Angola, como é que os
escritores deveriam exercer o seu papel?
O escritor é uma voz crítica. Se recordarmos o
papel que o romance de Luandino Vieira, “A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”,
teve no contexto da luta de libertação, como se pode, hoje, em país
independente, ver repetir-se a mesma morte de outro Domingos Xavier (Zacarias
Musangu) na cadeia, e ficar indiferente? Não há duas versões da forma de ser-se
escritor. Ou se é pela Vida, ou se é um fantoche do sistema, pelo dinheiro.
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software
carnal
a expansão do universo
se convalida em cada átomo
da tua bunda astronómica
beijo cada partícula
desse cosmos liquefeito
onde gravitam dois planetas exóticos
em simétrica rotação
mordo essa beleza ancestral
esse registo abobadado
de trezentos milhões de anos de evolução.
na tua bunda lateja
o software carnal da origem da vida.
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o anjo e o pão
vi-te passar de mabela
como se foras um anjo
vi-te deixar a estrada
como se foras um anjo
vi-te chegar de mansinho
como se foras um anjo
e te olhei sem te ver
como se foras um anjo
e te beijei de lencinho
como se foras um anjo
abriste as portas do templo
como se foras um anjo
me rasgaste os vestidos
como se foras um anjo
me deitaste na mesa
como se foras um anjo
e me comeste ali mesmo
como se eu fora o teu pão
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