terça-feira, 28 de dezembro de 2021

JOSÉ LUÍS MENDONÇA “O primeiro deus na Terra foi a Mulher”

 


Tem novo livro no mercado, o poemário “Software Carnal”, com chancela da editora Kalunga. José Luís Mendonça, em nótula autobiográfica constante do livro em referência, apresenta-se assim: “homem de profissão, jornalista por concessão e poeta por distracção”. É detentor de vários prémios literários, nomeadamente Prémio Sagrada Esperança (Chuva Novembrina”, 1981, e “Quero Acordar a Alva”, 1996);  Prémio Sonangol de Literatura (“Respirar as Mãos na Pedra”, 1990); Prémio dos Jogos Florais do Caxinde (“Se a Água Falasse”, 1997); e Prémio Angola 30 Anos (“Um Voo de Borboleta no Mecanismo Inerte do Tempo”, 2005). Actualmente  consultor na empresa Edições Novembro,  dirigiu e editou, durante sete anos, o jornal Cultura. Licenciado em Direito, José Luís Mendonça é o vencedor do Prémio SADC de Jornalismo 2021. Na entrevista que se segue Mendonça fala do seu novo poemário, do possível impacto das redes sociais e da Internet na evolução humana e na própria poesia. E explica as razões que o fizeram abandonar tanto a União dos Escritores Angolanos como a Academia Angolana de Letras

Isaquiel Cori

“Software Carnal”, o título do seu novo poemário,  suscita logo à partida várias questões sobre a interligação do humano com a inteligência artificial ou a influência da computação nas nossas vidas. E faz lembrar aqueles personagens do cinema, os cyborg, meio humanos meio máquinas. É sua opinião que a humanidade realmente caminha para aí?

Obviamente. Vivemos num contexto global dominado pela hipermídia digital e o seu fruto civilizacional, o Homo Zappiens (nome proposto por Wim Veen e Bem Vrakking, 2009, para aqueles que nasceram a partir do início da década de 1990) – “primeiros seres digitais”. Por força desta realidade, que o próprio Homem criou, toda a nossa evolução, agora, suscita em nós, um processo de automatismo. Como um chip incrustado no olhar. Em “Software Carnal” eu digitalizo os versos, com recurso ao software inamovível e desconhecido da origem da Vida, misteriosamente oculto no corpo humano, mas com maior representação no da Mulher. O corpo da mulher é um hino à misteriosa e infinita expansão do Universo que aqui, neste lugar chamado Terra, se reedita no ventre expansivo em tempo de gravidez, nos olhos húmidos e luminosos da Mulher dotados da ciência maternal de ver e na sede dos dedos a tactear a liquidez das coisas que nos rodeiam.

 

Vozes há que se interrogam sobre o verdadeiro impacto das redes sociais na evolução humana, que passaria a depender sobremaneira de imagens projectadas e de associações determinadas por algoritmos, esvaziando-se cada vez mais a vida de relação e de proximidade física. Você também vê assim as coisas?

Vejo e não vejo. Vejo, porque paulatinamente me vejo submerso nessa onda universal de decomposição electrónica dos afectos. Hoje, a sociedade humana caiu na monetarização do pensamento. Tudo é vendável. Até a própria alma. Porque se perdeu muito do humanismo próprio do Sapiens, (trans)ferido para o Zappiens. O Zappiens é perigoso contra si mesmo.

 

Um amigo jornalista, comentando o caso de vários jornalistas forçados a aposentar-se,  um dia disse que eles estariam mortos se as redes sociais não existissem. Pessoalmente sente que as redes sociais lhe deram um novo fôlego?

Verdade absoluta. Veja que eu ganhei o prémio SADC de jornalismo pelo meu artigo publicado num órgão online. Embora não ganhe nada, em termos salariais.

 

O mundo e a vida tal como se apresentam nas redes sociais têm um viés bastante fragmentado e o conjunto de postagens é comparável a um interminável fluxo de consciência, a mais das vezes surrealista. São as redes sociais verdadeiramente o reino da liberdade humana?

No caso de Angola, onde o ANGOSAT se perdeu e ninguém diz como não foi possível reproduzir outro satélite com o reembolso do dinheiro pago, onde o público maioritário não tem acesso às redes sociais por falta de internet, aqui esse reino da liberdade é acessível a uma pequena franja de pessoas, mas essa pequena franja reproduz o pensamento da maioria e os interesses dos grupos político-religiosos. É uma espécie de selva contemporânea, onde se digladiam verdades, horrores e mentiras sem paralelo…

 

Não teme que algum dia os poetas venham a ser substituídos por programas de computador?

Temo e bastante. O plágio é um indício dessa transformação computacional. Você observa como o livro perdeu o seu valor de artefacto do conhecimento em Angola e quase por todo o lado. Até já se fazem pinturas e comida pelo computador. É o progresso. Só falta criar o ser humano numa máquina, com um cérebro de chip electrónico. A Poesia só pode ser salva pelos verdadeiros poetas, os homens e mulheres hiper-sensíveis, que ainda a cantam e escrevem à mão.

 

“Software Carnal” é mais um tributo seu à mulher. Está visto que para si a mulher é um tema absolutamente inesgotável...

Na verdade, é inesgotável. O primeiro deus na Terra, há mais de 30 mil anos, foi a Mulher. O ser humano espantava-se de ver a mulher parir filhos. Dos seus seios brotava leite para amamentar esses filhos. Nessa época, a Mulher foi endeusada. Foi a Revolução Agrícola, há 15 mil anos, que destronou a Mulher do seu templo de adoração. Com o sedentarismo e a criação de animais, o homem observou que, no reino animal, o macho tem uma função seminal e que os filhos não eram apenas obra de forças misteriosas. Foi quando nasceu o sentimento de paternidade e a apropriação, pelo homem do lugar divino. Por isso é que Deus é macho, é representado como um Pai. E o Filho de Deus nunca podia ser do sexo feminino. Eva sairia de uma costela de Adão. Mas o rei Salomão volta a adorar a deusa chamada Mulher, nos seus cantares. E do mesmo modo, eu assim a represento em “Software Carnal”.

 

A mulher nos seus poemas aparece ora como objecto de desejo, a detentora do “software carnal da origem da vida”, ora como a expressão da beleza ancestral. Há na sua vida uma musa inspiradora, ou os seus versos partem de um olhar para a mulher no geral?

Muitos dos meus versos têm uma fonte carnal, palpável, sangrante. Outros têm uma fonte onírica, é o imaginário apenas. Se eu não fosse um ser vivente e pensante não haveria os poemas do sujeito poético que me nasce a todo o instante. É verdade que certas mulheres, em determinadas fases da minha vida me encheram o coração de maresia, outras me beberam o tutano dos ossos, como se eu fosse um javali leiloado na savana pelo êxtase feminino. Hoje, nem sei mais onde se acumula todo o pó dessas atracções súbitas, umas, diferidas no tempo, outras, inacontecidas, outras ainda, a memória que me assola é de uma monumental geometria, parece Deus se repetindo em Criação.

 

Quais são, na sua opinião, os pontos fortes e os pontos fracos da instituição Literatura Angolana?

A instituição Literária Angolana subsiste submersa em mitologias pré-fabricadas na Casa dos Estudantes do Império, subvertidas pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola e pela revista Mensagem, de pouca duração, e recicladas com a independência e o slogan da arte ao serviço da revolução. Portanto, a Instituição Literária Angolana, cá dentro, tem um templo chamado UEA fundado sobre alicerces político-partidários, e esse electrólito disfuncional, para além de ficcionar lugares cimeiros no campo da literatura angolana, é um elemento de decomposição da criatividade do escritor autóctone. Tal como o jornalismo, a literatura só produz excelência num ambiente de liberdade de expressão e de alta tecnologia do artefacto chamado texto. Perante esta realidade (e já terei o troco dos Guardiões do Templo daqui a pouco), ergueram-se vozes criadoras contrárias ao status quo, que usaram e abusaram desse estatuto, tendo, na sua maioria, produzido outras lavras literárias com reconhecimento exógeno, visto que, aqui no país, há, até hoje, uma certa aversão ao escritor “rebelde”, quando, sem rebelião, não pode haver literatura digna desse nome.

 

Está na reforma, fechou-se um longo ciclo da sua vida profissional. E parece que inaugurou um novo ciclo na sua vida, mais libertário e voltado para as realidades da sociedade civil...

O jornalista, tal como o professor, não vai nunca para a reforma. Se não escrever para os órgãos das Edições Novembro, minha empregadora, hei-de escrever para outros. Mas, na realidade, fabriquei recentemente um novo romance histórico e, para além, do “Software”, um novo livro de poemas.

 

Se debruça sobre que época histórica, o seu novo romance?

Outra vez a Independência, o 27 de Maio e a Covid de hoje com as suas nuances totalitárias. É que está muita coisa por resolver na nossa Independência e está muitíssima coisa por assacar do 27 de Maio, a sua essência, o seu fundamento sociológico e humano, que foi a inauguração do sistema de tortura legalizada pelo seu não reconhecimento oficial. Sobre a Independência, o romance explora o poema “Havemos de Voltar”, de Agostinho Neto, para mostrar até que ponto existe uma extrema dissonância entre os conceitos e imagens ali expressos e ao que realmente não houve até hoje o Povo de voltar. De igual modo, o problema já aflorado em “O Reino das Casuarinas” e em “Se os Ministros Morassem no Musseque” (um e não o mesmo romance) de não haver Independência nem desenvolvimento sem a verdadeira integração e inclusão económica e política de todas as ex-nações que o colonialismo ficcionou num só mapa sob o império da língua portuguesa.

 

O JLM nos últimos anos tomou decisões fundamentais na sua vida, que não sei se já terá tido a ocasião de explicar publicamente. Refiro-me ao facto de ter abandonado a condição de membro da União dos Escritores Angolanos e de se ter afastado da Academia Angolana de Letras. A que se deve esse recuo?

Não foi um recuo. Foi uma conquista para a minha liberdade de pensamento e de criação. A UEA, tal como as outras agremiações criadas na era inicial da Independência, continuam a ser apêndices do partido no poder e, até, estrictamente vigiadas pelos Serviços de Inteligência. Para provar o que digo, é só ver que a UNAP (União Nacional dos Artistas Plásticos) tem, à frente da Assembleia Geral, um escritor, membro da UEA. Para salvaguardar o quê?

 

Deve-se então inferir que, supostamente, os membros da UEA têm ligações aos Serviços de Inteligência, ao ponto de alguns deles serem “destacados” para vigiarem outras classes de artistas?

A questão não é assim tão directa! Não se trata de uma delegação dos Serviços de Inteligência dentro da UEA ou das outras associações como a UNAP, que já citei. Trata-se, isso sim, de um controlo partidário, coadjuvado pela Inteligência. O caso do meu irmão Zacarias Musango é paradigmático. Em 2018, a UEA fez de tudo para que a minha pretensão – de fazer justiça a um inocente – não fosse avante, para salvaguardar a Polícia. Para que se fazem coisas deste género? É preciso chegarmos a este ponto, porquê? Até ficaria bem para a corporação desligar-se desse crime, condenando os seus verdadeiros autores! Veja que, quando eu pedi assinaturas dos membros da UEA para realizarmos a assembleia extraordinária para redigirmos a moção de repúdio, tive o apoio de 13 confrades, incluindo Pepetela e Maria Eugénia Neto. Mesmo assim, faltaram 2 assinaturas, para as 15 necessárias e não fizemos a assembleia extraordinária. Nessa ocasião, o ex-secratário-geral convocou a TPA para uma conferência de imprensa na UEA, onde pôs a falar a pobre da viúva – vejam lá! – ladeada por um familiar desta, das FAA e fardado – mas que aberração! – e este oficial das FAA é que falou o seguinte: “Nós, familiares do falecido, não queremos que usem o nosso irmão para resolverem os vossos conflitos na UEA” (mais ou menos isso). Eu e o irmão do falecido, que também é guarda e nunca foi entrevistado, ainda tentamos pedir à TPA para usar o contraditório, mas a TPA não aceitou. Este foi também outro motivo que me levou a sair da UEA. As pessoas que me conhecem sabem que eu não sou desse género, de convocar uma assembleia extraordinária para tomar o poder seja lá onde for, não tenho esse feitio, nem sequer me vejo a dirigir a UEA, não me interessa, o assunto resvalou, por criação conjunta da UEA-TPA, de um assunto de crime de homicídio preterintencional, para um assunto de luta pelo poder na UEA. Mas que imbecilidade! Com todo esse imbróglio, é fácil de ver como há interesses do Estado (que também desconheço!) inseridos na gestão de uma associação meramente literária. Valha-nos Deus, Virgem Santíssima! Mas para quê mantermos este estado de coisas, 40 anos depois da independência, quando o Muro de Berlim há muito foi derrubado! É preciso ter tomates para libertar a Arte!

 

Voltando à questão do abandono da UEA...

Eu abandonei a UEA, e não entro no seu quintal sequer, porque um meu irmão, Zacarias Musangu, guarda daquela associação foi torturado até à morte numa esquadra da Polícia no Cassequel. Foi acusado pelo chefe da polícia de ter  roubado a placa de uma viatura estacionada na UEA. Durante o dia. E foi raptado pelo chefe da esquadra do Cassequel, porque se a autoridade leva detido um cidadão, sem mnandado de captura, está a violar a Constituição e Lei Penal. Está a violar um direito fundamental do cidadão. É rapto. E o meu irmão ficou lá detido três dias e não apareceu nenhum procurador da PGR, nem advogado. Estes só apareceram um mês depois da morte da Zacarias Musangu, porque eu, que estive fora na altura da detenção e morte do meu irmão, no meu regresso fiz um certo “barulho”, na minha coluna do Jornal de Angola. Só assim é que entraram em cena uma procuradora e o advogado da UEA. Para fazer nada. Simplesmente para consolidar a “pureza” da autoridade policial. Mas nunca se provou que Zacarias foi realmente culpado. Neste caso, como Zacarias esteve sob custódia do Estado, o Estado, através da PGR ou do Ministério do Interior, tem a obrigação de indemnizar a viúva e os quatro filhos do meu irmão Musangu. Só depois dessa indemnização é que talvez eu entre na UEA. A indeminização deve atingir a soma de 80 milhões de kwanzas. O Estado deve pagar 80 milhões de kwanzas, 40 milhões pelo nojo da viúva, para ela acabar a casa que o marido não concluiu e uma espécie de compensação pela perda irreparável da vida do seu marido. Dez milhões para cada filho órfão, para continuarem os estudos e se formarem. Quando eu regressei do exterior, em 2018, e sugeri a tal moção dirigida ao Ministério do Interior, de repúdio pela morte sem necessidade de um homem sem culpa provada, a direcção da UEA insurgiu-se contra mim. Eu não ponho os meus pés na UEA, porque, segundo a nossa tradição, o meu irmão virou Kanzumbi, quando por lá passo, vejo-o a chorar lágrimas de sangue no parque de estacionamento onde foi detido pela Polícia. Enquanto não se fizer justiça para com a viúva e os filhos (indemnização do Estado), ele lá estará a chorar, já não pela própria morte, mas pela sorte da mulher e dos filhos.

 

E por que saiu da Academia Angolana de Letras?

Saí também da AAL, porque não podia encarar os mesmos membros que também são da UEA, os que se opuseram à minha proposta. Não concebo um escritor que não seja humanista. Um escritor conivente com a morte gratuita de pessoas é tudo, menos escritor. Esta sua pergunta levanta uma das questões mais cruciais da História da nossa Angola: a tortura. A tortura, proibida pela Declaração dos Direitos do Homem, é um assunto que deve ser amplamente e exaustivamente debatido e resolvido pelo MPLA, que é quem manda em Angola.

   

Naturalmente não se pode impor uma suposta maneira ideal de se ser escritor. Mas, na sua visão, hoje, em Angola, como é que os escritores deveriam exercer o seu papel?

O escritor é uma voz crítica. Se recordarmos o papel que o romance de Luandino Vieira, “A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, teve no contexto da luta de libertação, como se pode, hoje, em país independente, ver repetir-se a mesma morte de outro Domingos Xavier (Zacarias Musangu) na cadeia, e ficar indiferente? Não há duas versões da forma de ser-se escritor. Ou se é pela Vida, ou se é um fantoche do sistema, pelo dinheiro.

 

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software carnal

 

a expansão do universo

se convalida em cada átomo

da tua bunda astronómica

 

beijo cada partícula

desse cosmos liquefeito

onde gravitam dois planetas exóticos

em simétrica rotação 

 

mordo essa beleza ancestral

esse registo abobadado

de trezentos milhões de anos de evolução.

 

na tua bunda lateja

o software carnal da origem da vida.

 

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o anjo e o pão

 

vi-te passar de mabela

como se foras um anjo

 

vi-te deixar a estrada

como se foras um anjo

 

vi-te chegar de mansinho

como se foras um anjo

 

e te olhei sem te ver

como se foras um anjo

 

e te beijei de lencinho

como se foras um anjo

 

abriste as portas do templo

como se foras um anjo

 

me rasgaste os vestidos

como se foras um anjo

 

me deitaste na mesa

como se foras um anjo

 

e me comeste ali mesmo

como se eu fora o teu pão




 

 

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