quarta-feira, 20 de abril de 2022

“Angola: Um Intelectual na Rebelião”

 Isaquiel Cori




“Angola – Um Intelectual na Rebelião” - (420 páginas) -, livro de memórias do médico angolano Manuel Videira, publicado no ano passado em Portugal pela editora Guerra & Paz (disponível em Angola pela mão do autor), surge numa altura em que muitos já pensavam que tudo estava contado a respeito do processo de luta de libertação nacional. Este livro não trazendo, em termos do quadro geral, nada de que não se soubesse já, revela-se riquíssimo em detalhes na descrição do carácter de personalidades que se cruzaram e conviveram com o autor e que se destacaram naquele processo. Figuras como Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Deolinda Rodrigues, Comandante Benedito, Manuel dos Santos Lima, Gentil Viana, Eduardo Macedo dos Santos e várias outras aparecem retratadas no livro na força e nas fragilidades da sua humanidade. Referindo-se, por exemplo, ao primeiro encontro com Viriato da Cruz, em 1961, em Paris, escreve o autor que já então notara nele um “grande carisma que seduzia e subjugava”.

Manuel Videira sem qualquer tipo de auto-censura vai ao âmago das sucessivas crises vividas pelo MPLA e disseca as suas causas. A saber, as contradições raciais e tribais (transportadas da própria sociedade colonial angolana), de visão estratégica e o puro choque de personalidades vocacionadas pelo poder sem contestação.

A chegada de Agostinho Neto a Léopoldville em 1962, depois da fuga da cadeia em Portugal em Junho desse mesmo ano (com o apoio da rede clandestina do PCP)  e as medidas imediatas que tomou para relançar a acção do Movimento, então mergulhado numa relativa apatia e desavenças intestinas que culminariam, em Julho de 1963, com a expulsão de José Bernardo Domingos, Viriato da Cruz, Matias Miguéis e José Miguel, é narrada ao pormenor. A difícil situação do MPLA fica muitíssimo mais complicada quando uma comissão da OUA, naquele mesmo ano, reconhece as forças combatentes da FNLA como sendo “de longe, maiores do que qualquer outra”, sendo as “mais eficazes” e constituírem “de facto a única verdadeira frente de combate em Angola”. Naquela altura o MPLA tinha como um dos seus principais activos o CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados, idealizado por Mário Pinto de Andrade) cujo contingente de médicos angolanos chegou a ser em maior número que o total de médicos congoleses em todo o território do Congo-Léopoldville.

Através do percurso de vida do autor, das peripécias por que passou, e pelo facto de ter estado no centro de muitos acontecimentos decisivos, o leitor é transportado, na primeira pessoa, como se estivesse a viajar em primeira classe, através de uma escrita límpida, directa, sem grandes circunlóquios, para a História da Luta de Libertação Nacional. Uma história feita de heróis, sem dúvida, mas de carne e osso, por isso falíveis. Tão falíveis que, por exemplo, o próprio Manuel Videira viu-se, quatro meses depois da Independência, atirado para a prisão onde ficou dois anos e sete meses sem processo judicial e muito menos julgamento. O riso com que hoje o médico e nacionalista responde à pergunta sobre as verdadeiras causas da sua prisão diz tudo sobre o absurdo da situação.

Manuel Videira com este livro responde, no que lhe cabe, à demanda social aos integrantes da sua geração para que escrevam e transmitam às gerações posteriores  o legado da sua vida em prol da criação da nacionalidade angolana. Por isso, é um Manuel Videira aliviado, com sentimento do dever cumprido, que disse ao Jornal de Angola: “Eu escrevi o livro (...) porque muita gente insiste que os mais-velhos têm que escrever”.

Efectivamente, é cada vez mais imperioso escrever, meter no papel as memórias, os sonhos, as aspirações. No fim de tudo, no somatório do que vai permanecer ou ser esquecido na posteridade, o que estiver escrito será fadado a ser considerado “verdade”. E através desses escritos se vão perpetuar visões, percepções, narrativas de grupos que histórica e culturalmente serão considerados hegemónicos.

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