quarta-feira, 29 de agosto de 2012

KANDENGUES ONTEM, KOTAS HOJE


ISAQUIEL CORI
 
 

Envolvidos profundamente na aventura de viver, mergulhados no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido por minutos e horas, nos transforma. Mas chega finalmente o dia em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.

Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de uma esgotante jornada de trabalho, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem. Está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.

Foi como se me tivessem acertado com um soco no peito. “Kota eu, desde quando!”, exclamei, quase a cambalear.

Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um repentino e profundo olhar sobre a minha existência. Uma profusão de pensamentos e imagens tomou conta da minha cabeça e fui dominado por um sentimento misto de saudade, dor, perda e exaltação.

Submisso, entregue à vida com a vontade de a viver sem queixumes, não reparara que ela, aos poucos, de modo insidioso e silencioso, me foi corroendo a inocência e pondo calos na minha alma. A anteriormente densa e enorme floresta em que cada árvore era um amigo, ou em que cada amigo era uma árvore, estava, via eu agora com uma nitidez estonteante, repleta de clareiras. E era mais difícil respirar.

 “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”, interroguei-me.

Lutando pela vida, a vida transcorrera em mim e até aqui não me apercebera do quanto o tempo me transformara. Sempre a viver na desportiva, com muito “fair play”, apesar de já ter constituído um lar, de ter sido sacudido por muitos embates da vida, de possuir a cabeça ornamentada por uns quantos cabelos brancos e ter sido prematuramente “premiado” com umas doenças típicas de mais velhos, jamais, verdadeiramente, me sentira “kota”.

Mas agora, ante a solicitude confiante e infantil do rapaz, da candura com que se dirigiu a mim, abriu-se-me uma nova perspectiva e, como nunca antes, assumi, na intimidade e em toda a plenitude, a minha condição de mais velho. Afinal, o tempo não perdoa. A vida chamava-me à responsabilidade.

 “Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, já no papel de “kota da banda”.

 

 

Kota da banda – Mais velho do bairro

Kandengue da banda – Miúdo do bairro

PS: Esta crónica está publicada algures neste blog. Acabo de revê-la com algumas alterações.

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