ISAQUIEL CORI
Envolvidos profundamente na aventura de viver, mergulhados
no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo
que vivemos, repartido por minutos e horas, nos transforma. Mas chega
finalmente o dia em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente
catapultados para a visão da nossa existência passageira.
Foi o que aconteceu comigo, num desses dias
cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de uma esgotante jornada de
trabalho, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate
inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem. Está
aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.
Foi como se me tivessem acertado com um soco no
peito. “Kota eu, desde quando!”, exclamei, quase a cambalear.
Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e
tédio, e lancei um repentino e profundo olhar sobre a minha existência. Uma
profusão de pensamentos e imagens tomou conta da minha cabeça e fui dominado
por um sentimento misto de saudade, dor, perda e exaltação.
Submisso, entregue à vida com a vontade de a viver
sem queixumes, não reparara que ela, aos poucos, de modo insidioso e
silencioso, me foi corroendo a inocência e pondo calos na minha alma. A anteriormente
densa e enorme floresta em que cada árvore era um amigo, ou em que cada amigo
era uma árvore, estava, via eu agora com uma nitidez estonteante, repleta de
clareiras. E era mais difícil respirar.
“Ainda ontem
criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo,
meu Deus?”, interroguei-me.
Lutando pela vida, a vida transcorrera em mim e até
aqui não me apercebera do quanto o tempo me transformara. Sempre a viver na
desportiva, com muito “fair play”, apesar de já ter constituído um lar, de ter
sido sacudido por muitos embates da vida, de possuir a cabeça ornamentada por
uns quantos cabelos brancos e ter sido prematuramente “premiado” com umas
doenças típicas de mais velhos, jamais, verdadeiramente, me sentira “kota”.
Mas agora, ante a solicitude confiante e infantil
do rapaz, da candura com que se dirigiu a mim, abriu-se-me uma nova perspectiva
e, como nunca antes, assumi, na intimidade e em toda a plenitude, a minha
condição de mais velho. Afinal, o tempo não perdoa. A vida chamava-me à
responsabilidade.
“Qual é a
vossa dúvida, kandengues”, perguntei, já no papel de “kota da banda”.
Kota da banda – Mais velho do bairro
Kandengue da banda – Miúdo do bairro
PS: Esta crónica está publicada algures neste blog.
Acabo de revê-la com algumas alterações.
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