Mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa, licenciado
em Ciências da Educação pela Universidade Agostinho Neto, jornalista,
escritor, entre outras coisas, António Quino publicou em 2014, no âmbito do
FENACULT, o livro “Duas Faces da Esperança – Agostinho
Neto e António Nobre num estudo comparado”, um ensaio resultante precisamente dos
seus estudos de mestrado em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa. Em 2015
voltaria aos escaparates com o livro “República do Vírus”, ficção. No espaço de
tempo que transcorreu entre a publicação de um e outro livro o autor deste
blogue teve uma conversa com A. Quino, que por razões de força maior, alheias à
minha vontade, só agora dou à estampa. [Do
segundo livro darei certamente conta aqui, num futuro breve]. O tema da esperança, como bem o título
mostra, é o traço de união dos dois autores, Agostinho Neto e António Nobre,
poetas gigantes no sistema literário a que cada um pertenceu. No seu livro,
António Quino trata de assinalar, ao detalhe, os pontos de contacto (e de
afastamento) da obra dos poetas em causa, sublinhando, entretanto, a
singularidade de cada um. Leia então, caro internauta, a esclarecedora entrevista
de António Quino a este blogue.
Pergunta – Que intuição ou conhecimento o levou a dedicar-se a um estudo
comparado tão aprofundado sobre Agostinho Neto e António Nobre?
Resposta - No meu projecto de mestrado, até chegar
ao método de investigação e aos autores eleitos, divaguei um bom bocado. É bem
verdade que tinha acumulado um conjunto de leituras de poemas que me enchiam a
cabeça, e todas elas convergiam na ideia de esperança ou liberdade do ser
poético, um sentido até certo ponto filosófico. Comecei por eleger a sociologia
da literatura como foco. E nas minhas pesquisas deparei-me com a literatura
comparada e os seus fundamentos, paradigmas e desafios. Assim elegi a
literatura comparada. Comecei então a pensar nos autores. Pela afinidade que
tenho com a poesia de Agostinho Neto, só precisava encontrar outro ou outros
poetas para estabelecer os propósitos comparativos. Até chegar ao António Nobre
foram longas horas e buscas de incessantes equilíbrios nos textos.
Curiosamente, quem me deu a certeza dessa possibilidade de estudo comparado
entre Agostinho Neto e António Nobre foi o meu orientador, o Professor Doutor
Francisco Soares. Quando o vi a franzir o sobrolho em jeito de dúvida pelo
êxito do trabalho com tais escolhas, pelas diferenças entre os dois, senti que
aquele seria realmente o caminho a seguir. O desafio recompôs a segurança que
eu necessitava para avançar. E iniciei então a peregrinação para descobrir as
afinidades e dissemelhanças entre os dois poetas que, como se pode ver no
livro, aparentemente nada os ligava. Hoje, com as ideias mais arrumadas, posso
sem receio afirmar que queria mostrar vários ângulos que podem ser apresentados
pela esperança, tirando-a do plano meramente filosófico ao da vida vivida pelo
sujeito poético. Portanto, só precisei encontrar os poetas certos para
transmitir isso.
P - Se Agostinho Neto é conhecidíssimo em Angola, o
mesmo não diria de António Nobre. Como chegou a este autor português?
R - Como disse, foram buscas para encontrar um poeta
que, não confirmando a esperança como em Neto, enriquecesse o ensaio que
rondava pela minha cabeça em ideias. Finalmente, simpatizei-me com a sua
história e vida e, por ser um grande desafio, embrenhei-me na nobreza da poesia
de Nobre. Também devo referir que me aguçou o sentido por Nobre “profetizar” o
seu destino, o que leva às vezes as pessoas a pensarem que ele escreveu o
conjunto de poemas do seu livro “Só” na aflição da doença que o matou. Também,
o simbolismo foi sempre um mundo enigmático, cavernoso e entrar nele também
representava um desafio. Portanto, são várias as razões que me levaram a
apostar nesse outro António que, tal como o referiu o meu orientador, viríamos
a constituir o trio de Antónios.
P
– Em literatura a que levam os estudos comparados?
R - Os estudos
comparados, duma forma geral, são um instrumento analítico muito importante
para o estabelecimento de planos de confrontação, equiparação e comparação de
sistemas a fim de buscar analogias, conhecer
semelhanças e diferenças ou as relações entre sistemas. Com base num estudo
comparado se pode compreender e respeitar melhor o próximo.
A literatura comparada não é
diferente. Ela convoca rumos e relações das dimensões locais e planetárias e faz do
local mais planetário, e do planetário mais local. Como diz uma referência da
área, a brasileira Sandra Nitrini, a literatura comparada rebate os cruzamentos
de limites críticos consagrados, questionamentos de paradigmas estabelecidos e
trânsitos de textualidades e linguagens. Portanto, a literatura comparada é um
campo privilegiado para o estabelecimento de inter-relações de movimentos,
estilos, autores, lugares, nações, povos. Outro aspecto que acho relevante é
que pela literatura comparada podemos inclusive perceber que não há hierarquizações
ou degraus pré-definidos para se qualificar estilos, obras, autores, correntes,
etc. Relativizar permite aproximar, pelo conhecimento do outro a partir de nós
mesmos.
P - “A alma das nações nem sempre é acessível às
ciências mas sim à literatura” (pág. 26). A literatura, mais concretamente a
poesia, é capaz de fazer o catálogo da alma humana?
R - Sem dúvida. A
arte é muito mais do que um elemento simbólico para as consciências colectivas
definidas por Émile
Durkheim. Na arte literária, ao envolvermos a semiótica, a estética e a
linguística, estabelecemos um triângulo que envolve agrupamentos culturais de
sentimentos, pensamentos e ideias morais e normativas duma comunidade. É essa
alma que a poesia cataloga. O próprio Umberto Eco reconhece essa capacidade da
arte ampliar o universo semântico provável, em cuja memória
cultural colectiva joga um papel preponderante nas infinitas interpretações
sobre os jogos semióticos invocados por nós, intérpretes. Essa perspectiva é
inversamente proporcional às ciências, que são metódicas, formais,
sincronizadas e universalizantes. Numa conversa que mantive com o professor
Eduardo Fonseca, e reproduzida no livro na íntegra, ficou claro que a literatura tem uma importância fundamentalíssima no
procurar e divulgar a identidade duma nação.
P –
No seu livro fala em esperança activa e passiva. Quando é que a esperança é
activa ou passiva?
R - Há duas
perspectivas díspares, que se complementam, que procurei traduzir num quadro,
na pág. 198, penso. De um lado está a esperança activa, materializada por
Agostinho Neto, consubstanciada no desejo de lutar para atingir os seus anseios
de liberdade; vista no seu sentido dinâmico. Sem luta, nada se consegue, parece
querer reafirmar Neto. No outro lado está a esperança passiva, apresentada no
aceitar dos desígnios; no acreditar que a morte trará a ansiada liberdade.
Nobre vive-a numa contagiante estática. Ambos alimentam as suas esperanças pela
liberdade nos seus poemas, mas na confluência entre o poeta e o sujeito poeta,
não comungam no tempero a dar ao alimento liberdade.
P -
Uma das lições do seu livro é que não há literatura isolada (mesmo as
supostamente mais regionalistas ou nacionalistas) e que é sempre possível
encontrar pontos de contacto com outras literaturas. Concorda com essa leitura?
R - Completamente.
Nada nasce do nada. As obras literárias são um emaranhado de pontos em
permanente contacto e contágios. Os contágios são activos importantes na
literatura. Há uma permanente renovação de sangue azul, fazendo do marginal um
promissor original utente do traço da inovação e criatividade. Um aspecto
extremamente positivo na literatura é que ela nunca está só; traz sempre
consigo pedaços informes de outras literaturas, embora nem sempre identificáveis
ou identificadas. Mas está lá. Se não pelo texto, talvez pela implícita leitura
produtora da experiência congregada no eu do poeta.
P - Agostinho Neto era um intelectual e homem de acção e António Nobre
um intelectual mais compassivo, sonhador, utópico?
R - Não sei se
diria exactamente nestes termos. Não será todo o sonho uma utopia? A
independência não era uma utopia? A perspectiva de liberdade em Agostinho Neto,
a sua Sagrada Esperança, não será uma utopia? Prefiro continuar a pensar que
ambos foram intelectuais activos nas suas respectivas épocas, construtores de
sonhos e utopias. Penso que a diferença está não só no carácter, mas na forma
como cada um procurou atingir ou lutar pelos seus sonhos. Muito influenciados
pelas respectivas correntes artísticas em voga, mesmo nos seus textos revelam
contágios na tematização ou na abordagem de assuntos polemizados na época.
Estaria eu errado se afirmasse que todo o intelectual é um fomentador de
utopias?
P - Na nota de agradecimentos,
estende os seus votos ao seu pai, “que inundou a casa da minha infância de
livros”. É o conselho que dá aos pais: “inundar” a casa de livros?
R - Comigo funcionou. Ter a casa
cheia de livros, a estante na sala enfeitada com livros, com a não autorização
da minha finada mãe. Hoje percebo a relevância daquele permanente contacto com
os livros. Foi um hábito construído na imprecisão do tempo,
desintencionadamente. Se com estantes de livros na sala não for mais moderno
devido à modernidade das casas que exigem outras domésticas arrumações, mas
jornais e livros ajudam sempre a valorizar o homem do futuro. Os aparelhos
alimentados pelas tecnologias de informação, como computadores, Ipad’s,
telemóveis, etc., são valiosos instrumentos de incentivo à leitura. O nosso
desafio é sempre conduzir o veículo da modernidade para os caminhos que
pretendemos, contra a rota traçada pelas gerações da simplificação; que da
internet só limitam o olhar à sombra, dispensando a luz que alimenta a
penumbra.
P – Na vertente da pesquisa académica quais são as suas próximas metas?
R - Continuo a trabalhar em literatura
comparada, procurando aprofundar uma pesquisa, ainda imberbe, sobre uma
aplicação do ponto de vista da geometria, mais
concretamente matemático, na análise e interpretação de textos literários.
Trata-se de uma técnica matemática baseada na aproximação poligonal do contorno
do objecto. A escolha das características adequadas torna-se mais natural e
simples conforme o usuário adquire progressivamente mais familiaridade e
experiência com a área da classificação e os problemas
específicos. Tenho estado a trabalhar nisso, embora empiricamente, num conceito
desenvolvido por Claude Lévi-Strauss. Falo do invariante, que reclama pela
existência, sempre, de uma base de caráter binário, de sustentação da
estrutura. Ou seja, esse invariante vai gerar variáveis, assumindo novas
formas, mas o invariante é, logicamente, o mesmo. Portanto, essa variedade
literária introduz um certo princípio de ordem nos estudos comparados e nos
permite olhar o individual sem perder de vista o universal.
P
– A partir da sua condição de professor e estudioso da literatura angolana está
bem colocado para responder a esta pergunta: nota tendências novas na escrita
que se vai publicando hoje?
R - Creio ser muito cedo para essa
conjunturação. A escrita literária em si é produto duma realidade social; e a
sua inovação, ou chamemos revolução, traduz a dinâmica das sociedades. E tal
como outras ciências, os estudos literários também anseiam por se distanciar
dos vícios envolventes do contexto para análises frias do produto literário.
Análises, interpretações ou ensaios são produzidos para enquadramento da obra.
No entanto, os estudos desses fenómenos são feitos noutros amanhãs. Os
escritores são inimigos do conformismo. Andam sempre atrás da criatividade, que
só em si é sinónimo de revolução e inovação. Há temáticas universais, como o
amor, a riqueza, a pobreza, a guerra, os congestionamentos do tráfego
rodoviário, etc. Mas dessas tematizações universais nascem as particularizações
assentes em realidades muito concretas que tendem para a alma das nações. E,
tal como no passado aconteceu, por esse caminho tenderá certamente a literatura
dessa geração.
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