Acaba de alcançar um feito porventura inédito: num único acto publicou dez livros. São sete de crónicas, um de contos, um romance (reeditado) e um de ensaios. Mas já tinha uma bibliografia composta por títulos como “A Saúde do Morto”, “Clandestinos no Paraíso”, “Silêncio na Aldeia”, “Notícias do Palácio - O primeiro ano do mandato do Presidente João Lourenço”, e outros. Já era sabido, mas o multilançamento recente confirmou a predilecção do escritor Luís Fernando pela crónica, género de que fala com a paixão e o conhecimento de quem o cultiva há mais de trinta anos. Na entrevista que se segue, iniciada pelo Whatsaap e finalizada por email, Luís Fernando exprime-se sobre a sua escrita e o desempenho profissional dos jornalistas. E faz uma revelação: “Neste momento, para mim, a criação literária está suspensa (...) pela razão mais do que previsível: não resta muito tempo disponível”
Isaquiel Cori
É incomum, em qualquer
parte do mundo, um autor proceder ao lançamento simultâneo de dez livros. Por
que procedeu assim? Não pensou na possibilidade de confundir os leitores,
diante de uma oferta tão vasta?
Observação interessante, de facto! Não sei mesmo
se existirá registo de um acontecimento deste noutra latitude da geografia mas
deixe-me dizer-lhe que foi uma situação meramente circunstancial. Eu fui
produzindo ao longo de anos (doze ao todo, entre 2004 e 2016) textos
diversos para livros e que foram chegando à mesa de trabalho do meu editor,
Arlindo Isabel. Diversos factores, de entre eles o financeiro, fizeram com que
a editora Mayamba não pudesse ir terminando os livros à medida que ia recebendo
os originais e tudo se foi acumulando…
Desta vez, e aproveitando a data expressiva do
meu aniversário (60 anos), a editora achou que ficaria bem um esforço especial
para se colocar no mercado tudo o que tínhamos de textos engavetados e
lançámo-nos à procura de patrocínios. Entidades com alguma folga
financeira aceitaram o desafio e usando a sua quota do que se conhece como
“responsabilidade social” das empresas, financiaram a produção dos dez livros
e, desse modo, foi possível ter, num único acto, a apresentação das dez obras.
Foi um record pouco habitual…
Se os leitores não se confundirão com tão grande
oferta em simultâneo? Acredito que não, porque embora tendo sido muitos livros,
não foi assim uma diversidade de géneros tão grande. Por exemplo, sete dos dez
livros são crónicas. Depois, há a minha estreia no conto, um romance
reeditado e, por último, textos de apresentação de livros que resolvi compilar,
algo como rápidos ensaios de Literatura.
As suas crónicas são
trabalhadas com o sentido de oportunidade, o olhar e a sensibilidade do
jornalista, mas o texto resultante é claramente literário, é literatura. É
por isso que tem a preocupação de tão logo resgatar as suas crónicas do arquivo
dos jornais para o livro?
Exactamente! As minhas crónicas escrevi-as
originalmente para páginas de jornais mas mal ganhavam a forma de
mancha impressa, texto impresso, qualquer leitor percebia sem esforço que
o que tinha em mãos era Literatura. Por isso, recusei-me sempre a ver as minhas
crónicas a morrerem vítimas da doença efémera associada às notícias dos
jornais, achava isso uma injustiça e um desprezo ao valor da obra
literária. Atenção: não pretendo com isto dizer que se danem os jornais e as
suas colunas, os seus escritos, e que viva para sempre a Literatura! Nada
disso! Mas a rapidez com que resgato as crónicas que publico em primeira
mão em jornais para passarem a livro tem realmente a ver com essa
observação que faz com grande acerto: se as crónicas são nitidamente textos
literários, então que passem a livro, que é lá o habitat da Literatura!
Enquanto cronista quem
são os mestres que o inspiraram ou que ainda o inspiram?
Fiz-me cronista sem dúvidas depois de descobrir
essa vertente criativa no colombiano Gabriel García Márquez em Cuba, na década
de 80, no jornal “Juventud Rebelde”, onde partilhava uma coluna ao domingo com
outro grande escritor, cubano este último, Enrique Nuñez Rodríguez.
Aprendi com ambos a perceber que qualquer tema, facto ou episódio banal do
quotidiano pode ser transformado em tesouro de leitura, numa relíquia
literária, pois o valor da peça não era tanto ou somente o relato em si mas o
modo como tudo era descrito. Indiscutivelmente para mim a crónica tem a
sua chave, o seu segredo, o seu lado delicioso, no modo como a palavra é burilada,
como a descrição é feita. Tem de existir fascínio no modo como o cronista
relata aos outros aquilo que a sua sensibilidade captou e elegeu como
motivo bastante para ser narrado.
Concretizando a resposta: os meus mestres, a
minha inspiração mais firme e acabada, chamam-se Gabriel García
Márquez (colombiano) e Enrique Nuñez Rodríguez (cubano).
O prazer que deriva da
leitura das suas crónicas terá correspondência com o prazer com que as terá
escrito? Ou o prazer da leitura esconde muito trabalho e esforço de
escrita, algum sofrimento mesmo?
Acredito que exista um alinhamento perfeito
entre o prazer da escrita e o prazer da leitura, da fruição, das
crónicas que escrevi e agora estão definitivamente agrupadas em livros.
Não se esqueça que só se é cronista se se for apaixonado pelo género e não
existe outra maneira de se gostar profundamente da crónica se não for,
primeiro, por via da leitura. Ou seja, temos antes de gostar de crónicas
lidas algures para nos propormos o desafio de querermos fazer, também, algo que
se aproxime, que iguale ou que supere aquilo que nós lemos de outrem. Portanto,
é só prazer, é só satisfação plena, no ciclo completo da crónica: feliz
ao escrevê-la, feliz em igual proporção ao ler o resultado!
Os factos e as pessoas
das suas crónicas são sempre verdadeiros?
Em 99% das crónicas que escrevi, elas
correspondem a factos reais e a pessoas reais, de carne e osso. Pode
acontecer que um ou outro detalhe seja apimentado com uma boa dose de
ficção mas não é isso que representa a espinha dorsal do texto. O cronista é,
em boa verdade, um narrador apressado e animado da história, seja a que faz a
mundivivência das comunidades seja a outra, a de interesse global, a
História com H maiúscula.
Já lhe aconteceu estar a
pensar ou a escrever uma crónica e depois concluir que não, que está diante de
matéria para ficção?
Incontáveis vezes. Há crónicas que percebi desde
o primeiro momento que nunca chegariam a sê-lo porque o género tem a
característica de ser um relato breve, rápido, e essas, para serem absorvidas,
precisariam de maior desenvolvimento, mais espaço, textos mais volumosos com
relatos mais detalhados. O meu romance “A Cidade e as Duas Órfãs Malditas”
nasceu de uma tentativa inicial de se escrever uma crónica para relatar a
saga de duas irmãs que passavam doenças venéreas à rica burguesia da Luanda do
século XIX. Entendi que seria puro desperdício esgotar num texto com umas
poucas linhas uma história rocambolesca que valia a pena mostrar de forma
híbrida: metade factos reais e metade ficção ao sabor da criatividade do
escritor.
Quando é que o
ficcionista entra em cena? Quando é que sente que é hora do romance
acontecer?
Simples: quando os limites da crónica “alertam”
o escritor que não vai conseguir partilhar com os seus leitores a sua
experiência. Porque a Literatura não é outra coisa senão o desejo quase
irreprimível de contar às pessoas aquilo que sabemos e achamos digno de
ser distribuído por todos. Um escritor é, no fundo, um filantropo: dá parte do
que tem aos demais!
Um tema que precise de mais do que uma ou duas
crónicas para ser “oferecido” aos leitores é o primeiro sinal de que se
pode estar diante de matéria-prima que pode servir para algo maior, mais
espaçoso, mais volumoso: um livro! Não custa muito ao escritor
“cheirar” isso, descobrir o ponto em que deve abandonar a ideia da crónica e
lançar-se no desafio de escrever um romance, uma novela, um ensaio ou qualquer
outro género.
Falemos um pouco de
jornalismo. Como vê o desempenho dos seus antigos colegas de profissão? De
quando em vez sente saudade de exercer a profissão?
Sabemos todos que existem profissões viciantes e
o Jornalismo é uma delas…no bom sentido, diga-se! É claro que nunca se
deixa de ser jornalista, por mais que deixemos de frequentar o mundo fascinante
de uma Redacção. Vivemos o Jornalismo de mil maneiras, uma delas é -estando
fora do activo -, transformar-se numa espécie de revisor caçando as gralhas dos
jornais, ou de leitor-crítico, que não espera apenas encontrar a notícia e
a reportagem nas páginas dos diários ou semanários, mas se pergunta se aquela
notícia está bem elaborada e se aquela reportagem, se fosse eu a fazê-la, teria
tido aquele ângulo de abordagem.
Mesmo longe do lufa-lufa da Redacção, o nosso
vínculo com essa oficina da escrita urgente não se quebra totalmente. Deixamos
de estar fisicamente na Redacção, é verdade, mas o nosso espírito viaja para lá
e, vez por outra, “vemo-nos” sentados de colete e computador a fazer o que
fizemos ao longo de uma vida. Continuo a acompanhar os meus colegas, sobretudo
os que fazem rádio e os que publicam em jornais, que são os dois mundos
principais daquele que é o meu percurso de mais de 40 anos como
jornalista.
Como os vejo? Do mesmo modo como nos meus tempos
de jornalismo activo: os dedicados, os que se esforçam e não olham para a
profissão como um mero emprego que dá salário ao cabo de 30 dias a rabiscar o
livro do ponto, têm futuro, hão-de singrar na sua caminhada, o futuro
falará deles e por eles. Os outros, os que estão na profissão errada e não
vivem o Jornalismo do único modo que a profissão permite que se viva – com
paixão, com intensidade, com entrega absoluta – hão-de acabar como é esperado
que acabem: ignorados, esquecidos, sem glória. Simplesmente desaparecerão
do espaço público, por mais que se arrastem nas Redacções por dezenas de
anos!
Não acha estranho que o
jornalismo angolano actualmente forneça tão poucas individualidades para a
literatura? Na sua opinião a que se deverá isso?
A explicação é simples: reduziu enormemente o
rebanho – se me permitirem o termo simpático – dos que viviam as Redacções
e a profissão como um sacerdócio. O romantismo dos que consideravam o
Jornalismo, como Gabriel García Márquez, a “profissão mais linda do mundo”,
anda à míngua, perdeu-se no emaranhado de problemas existenciais do nosso
tempo e as Redacções foram invadidas por pessoas em busca de remuneração para
as despesas do lar, as contas da família. Não é destes grupos de “operários” do
Jornalismo que nascerão os novos David Mestre, Ernesto Lara Filho, Alfredo
Bobela Motta, Ernest Hemingway, Machado de Assis, José Saramago, Gabriel
García Márquez ou Monteiro Lobato, que tinham as Redacções como espaços
oficinais e de cultura, onde o debate era elevado e a tempo inteiro. Nas
Redacções, hoje, olha-se para o relógio com pressa de se ir para casa e,
no dia seguinte, com o jornal a circular, muitos dos nossos colegas nem sequer
se dão ao trabalho de ler o que eles mesmo escreveram, para comparar o que
mudou entre a versão entregue ao editor e as alterações que este introduziu
eventualmente…
O facto de estar tão
próximo do poder político, onde por norma vigora o politicamente correcto, de
alguma forma condiciona a sua liberdade de imaginação e de criação
literária?
Neste momento, para mim, a criação literária
está suspensa, não por qualquer condicionalismo derivado do que chama de
“politicamente correcto em vigor” mas pela razão mais do que previsível: não
resta muito tempo disponível. Dirão alguns: mas escreveste o livro Notícias do
Palácio? Pois foi precisamente a experiência dura de fixar em livro a
experiência governativa de um ano frenético, de muita actividade diária,
profundo envolvimento em diplomacia, que me lançou o conselho amigo: poupa a
pouca energia que te sobra para a atenção à família e volta a escrever um dia,
sem as ocupações profissionais de agora. Acatei o conselho!
Os seus livros “Angola:
Memórias da Transição Política - De José Eduardo dos Santos a João Lourenço” e
“Notícias do Palácio – O primeiro ano de mandato de João Lourenço” fundam uma
narrativa sobre o poder que certamente irá influenciar a visão histórica. Esse
projecto terá continuidade enquanto estiver a trabalhar no Palácio?
Fui motivado, nas duas experiências, pelo
exasperante vazio que reconheci existir no relato da nossa vida
governativa, do nosso ambiente político. Assustei-me enquanto cidadão não
conseguir, por exemplo, encontrar em livro ou outro suporte qualquer, a
narrativa de um 15 de Março de 1961 na perspectiva dos protagonistas da acção,
um facto histórico de enormíssima repercussão sobre a vida de todo o Norte
de Angola, que levou a ter uma estrada asfaltada com mais de 300 km a
permanecer fechada por décadas (Luanda-Uíge, via Úkua-Piri…). Tudo o que se
pode encontrar é o relato feito por portugueses, a mostrar uma visão unilateral
daqueles factos dramáticos…
É claramente um caminho a prosseguir, o sermos
nós próprios enquanto protagonistas ou testemunhas da História fazer o seu
relato. Sonho com livros que muitos dizem andar a escrever sobre heróis nossos,
grandes figuras das nossas guerras, batalhas, acções épicas…
O certo é que há muito pouca literatura com esse
perfil – relato histórico – a chegar às livrarias, às bibliotecas, e
muitos dos que têm coisas a dizer, vemo-los partir uns detrás de outros sem que
o legado escrito fique. Com muita pena e muita dor, confesso.
Eu quero fazer a minha parte, contribuir
humildemente com o meu olhar à volta. Neste momento, como já o
referi antes, sobra pouco ou nenhum tempo para escrever, pelo que não há,
para já, como contar com novo livro meu, naquela linha ou noutra qualquer. Mas
dispondo de tempo, um dia no futuro, é evidente que surgirá a sequela de
Notícias do Palácio. Até já tem título. Vai chamar-se
“Servir”.
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Perguntas de
algibeira
Qual foi o último livro
que leu? E o que está a ler?
“Sua Excelência de corpo presente”, de Pepetela.
Estou neste momento a ler, na versão original em espanhol, “La Parábola de
Pablo”, um ensaio interessantíssimo sobre o narcotraficante Pablo
Escobar.
Que livros e autores
recomenda para este final de ano?
“Tio Jorge e outros quês”, contos de Manuel
Rui; “Contos de Natal”, de um grupo de autores como Cremilda de Lima,
Eduardo Águaboa e Onélio Santiago.
E que discos e
cantores?
“The Soul Music of Angola”, de Afrikhanita
e qualquer disco de Paulo Flores, o cronista da voz
Qual foi a última
exposição de arte que visitou?
Guilherme Guizef, uma combinação de pintura e
escultura, no Museu da Cerveja, em Lisboa.
E a última peça de teatro
que assistiu?
“Clandestinos no Paraíso”, pelo grupo Twana
Teatro.
Tomessa é um
sonho, uma ideia, um mito, uma história de infância?
Tudo isso. E mais: o alfa e ómega de Luís
Fernando, o princípio e o fim do ser que eu sou!
Quando pensa em Cuba
hoje, o que lhe vem à memória?
A vibrante cidade cultural que é Havana, mesmo
faltando o pão e o arroz…
Qual é o lugar em Luanda
onde mais gosta ou gostaria de estar?
Na Ilha do Cabo, virado para o mar infinito.
Porque inspira e faz os genes da Literatura “andarem às turras” nos
labirínticos caminhos do cérebro.
E fora de Luanda?
Uíge, em tarde de chuva.
E no estrangeiro?
Times Square, provavelmente o centro do mundo.
Cidade de Nova Iorque, onde João Kyomba se perdeu definitivamente, na sua
versão feiticeiro boémio…
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Perfil breve
Luís Fernando nasceu na aldeia de Tomessa,
província do Uíge, em 1961. Jornalista desde os 17 anos, trabalhou por mais de
década e meia na RNA, onde foi sucessivamente sub-chefe de Redacção, re-writer,
correspondente em Havana e director de Informação. Durante 12 anos foi
director-geral do Jornal de Angola. Dirigiu o semanário O País (hoje diário)
por cinco anos, desde a sua fundação em 2008. Foi administrador executivo do
grupo Media Nova.
Em 2011 foi vencedor do Prémio Maboque de
Jornalismo.
Membro da União dos Escritores Angolanos,
actualmente Luís Fernando é secretário para os Assuntos de Comunicação
Institucional e Imprensa do Presidente da República.