quarta-feira, 7 de julho de 2010

Por que recomendo o “Último recuo”





António Quino *

Por que razão julgo que seria interessante e oportuno ler “O último recuo”, de Isaquiel Cori?
Para início de conversa, permitam-me que me apoie em algumas fundamentações teóricas. Prometo não cansar.
Na sua “Teoria do romance”, Donaldo Schuler afirma que “Podemos teorizar o romance de muitas maneiras. (...) Podemos investigar as relações com o contexto. Podemos inquerir o trabalho autorial. Podemos investigar a experiência da leitura. Podemos nos colocar na posição do leitor”.
Tal como Schuler sugere, coloco-me na posição do leitor. E é como leitor que vos falo, fazendo uma, dentre milhares de leituras possíveis.
Uma sociedade, um problema, um livro, um objecto, uma realidade, um espaço físico ou mesmo uma personagem podem ser vistos de diferentes pontos de vista, resultando em imagens diferentemente deformadas.
Por exemplo, a descrição que encontramos no livro , na sua página 17, pode ser vista como imagem com características globais, próprias de situação que o contexto padroniza:
“De olhares longínquos e sem brilho, vestiam ridículas roupas de fardo e pareciam objectos de exposição de um exótico museu vivo, a denunciarem, de modo patético, a violência e a estupidez de uma guerra que lhes invadira as terras, penetrara-lhes na alma e esvaziara-lhes o olhar e o futuro”.
Ou ainda (p.16):
“... apesar de tudo, antes de dormir, de toda a incerteza que o atormentava, ainda estava vivo”.
São exemplos de imagens globais que podem ser projectadas e deformadas em função dos pontos de vista dos leitores.
No caso concreto das imagens locais, elas apresentam-nos características mais suaves e reais às nossas experiências e vivências, e a quantidade de informações disponíveis oferecem-nos condições para mais facilmente nos identificarmos com elas. Aliás, a existência desses caracteres comuns pode ajudar a definir a estrutura literária de uma determinada obra, não fosse esta produção artística produto da experiência ou imaginário do autor.
Indo ao livro, e apoiando-nos na coincidência entre Calú e Luanda, o leitor pode encontrar imagens locais. Calú, terra natal da personagem principal, é o espaço físico onde se centralizam as acções principais que corporizam a narrativa de “O último recuo”, e parece uma cópia de Luanda, terra natal do autor do livro.
Começando pelos problemas na distribuição de energia eléctrica , à sucessão de becos e contra-becos, chão abaixo do nível do quintal , casas em cima da estrada , absentismo quase generalizado em dias posteriores às grandes ressacas , a descrença nas instituições, que se mistura com a arrogância e o individualismo velados no ego de muitos cidadãos das grandes cidades, como o descrito na página 16 do livro:
“Sou o quê? (...) Cuidado que eu posso te dar um tiro aqui mesmo”.
Outro elemento em comum encontramo-lo nas páginas do livro, onde se percebe a forma como a guerra fez milagres e miseráveis.
Há uma personagem, Matuba Grande, que o narrador garante que se não fosse a guerra, certamente continuaria como um camponês cujos horizontes dificilmente ultrapassariam os marcos da região natal e arredores .
Essas palavras do narrador são confirmadas pela própria personagem na página 44:
“- (...) eu considero a guerra como uma coisa querida. A guerra tirou-me do meu destino de camponês. Deu-me poder”.
Mas há aqueles que enfrentaram a guerra. “Não fugiram, apegavam-se às suas casas, às suas terras como o único bem precioso que possuíam, com o risco da própria vida. Gente honesta, inocente, apanhada no turbilhão de uma guerra cujas causas verdadeiras desconheciam” .
Entre Calú e Luanda há ainda em comum o facto de haver em muitos jovens a descrença no amanhã e o cego mergulho no mundo do álcool. E o diálogo entre jovens presente na página 20 é bem prova disso:
“- A birra está fixe, esta é que é vida! Gostava de morrer com uma bem fresca na mão...”
Vezes há em que, em tom descontraído, a morte se torna o centro das conversas, anulando a vida:
“- Sabem qual é a maneira mais bala de baicar? É a comer a garina do tipo mais achado da banda...”
“- P’ra mim é melhor morrer com um tiro na cabeça. É tudo rápido.”
Vemos também, em Calú (p. 20), jovens abordando a problemática da velhice versus feitiço, uma discussão patente em Luanda e que representa um cancro para a sociedade luandense em particular e dos cidadãos da terceira idade em geral:
“- (...) Vou mas é morrer bem velho, não me importa se vão me chamar de feiticeiro”.
Este diálogo termina num: - “Nós somos imortais!”, reflexo da inconsequência de muitos jovens em Luanda, arriscando a vida por um vintém.
Igualmente, em Calú, o autor projecta uma realidade ficcionada, em que as relações sociais de classe se estabelecem num restrito núcleo, em que há os cidadãos indesejáveis, vistos como uma espécie de bacilos de cock pela elite, elemento extremamente nocivo e contagioso, que devia ser evitado a todo custo.
Na página 98 do livro há o relato de um camponês projectado ao generalato que evita João Segura, seu ex-companheiro de armas
“- Demasiadas pessoas já me viram a conversar contigo. E isto não é bom para mim”.
Mas a razão dessa sociedade ficcionada e fraccionada pode esbarrar numa solução, pois, como descreve nas páginas 106 e 107, a sorte pode vir vestida de quotidiano: mulher velha encolhida sob o peso da banheira de pão na cabeça, moça esticada em cima duns sapatos altos, o homem encerrado num fato pesado, mulher cantarolando cantos religiosos, e um Manecas Ladeira, mutilado, a oferecer emprego ao seu ex-comandante.

Nessa questão das semelhanças, há um diálogo, na página 68, que se afigura como um interessante recado ao leitor, um experimentado homem de cabelos brancos aconselha um jovem cujo destino se afigura incerto:
“- Coragem e paciência. E não tente compreender tudo o que te acontece. Deixe as coisas acontecerem.”
E o que tudo isso tem a ver a minha recomendação em ler a obra? Já aí chegaremos.
“O último recuo” narra a história de João Segura, um despromovido Tenente-coronel do exército, de 42 anos de idade, formado numa Academia Militar da ex-URRS, e caído em desgraça fruto duma cabala montada contra si e ordenada por uma invisível ordem superior.
A nossa personagem principal, militar profissional treinado para combater e, eventualmente, morrer pela pátria, homem ligado à elite militar, acaba transfigurado, num ápice, em roboteiro que se apaixona por uma prostituta, a Ricarda. É, portanto, também uma história de amor, que se reparte em 16 capítulos (duas partes) espalhados em 134 páginas.
Mas retenho-me ao que o ex-comandante se tornou enquanto atravessava o deserto: um roboteiro, termo utilizado para designar aqueles cidadãos que carregam mercadorias nos e para os mercados formais e informais, armazéns, casas dos clientes e afins, nas cabeças ou em carros de mão.
O autor deixa em segundo plano o facto de a personagem ter sido oficial do exército, de ter acabado como professor, e promove não só a sua actividade laboral como fundamental para a compreensão da obra, como é nesse período em que deixa transbordar o intelectual que havia em si. Com toda a carga pejorativa que este adjectivo/substantivo (roboteiro) transporta, não serão, em essência, roboteiros muitos intelectuais? E o inverso?
Mas, há aqui um conjunto de coincidências que não podem passar despercebidas. Comecemos pelas que existem entre o autor e a personagem principal. Da mesma faixa etária, ambos ex-militares, ambos amantes da leitura, ambos naturais de cidades que só diferem no nome.
Donaldo Schuler, em “Teoria do romance”, refere que “a arte romanesca se distancia da realidade para ver melhor, mesmo que o afastamento abra abismos” .
Essa relação binária entre autor e personagem permite-me especular que os monólogos do narrador ao longo da obra são, no fundo, passeios ao íntimo refúgio do autor:
“Como a vida seria boa e fácil se fosse apenas sono e sonho? A realidade seria virtual e aleatória”.
“É uma pena que a grande maioria dos cidadãos não saiba ler ou, mesmo sabendo, não tenha hábitos de leitura. Não haja dúvida que a literatura é uma das melhores formas de tomada de consciência de uma Nação”.
Aliás, Catherine Millot, em entrevista conduzida por Betty Milan e reproduzida no livro “A força da palavra”, refere que “o escritor vive uma determinada experiência que poderia ser qualificada de mística, se ela não acontecesse num contexto exterior ao da religião, a experiência de algo enigmático, que o sujeito procura decifrar escrevendo”.
Lévi Strauss acaba sendo mais profundo na sua análise, ao considerar que o autor escreve para preencher o vazio de um desejo de satisfação espiritual, “tanto que a maioria deles ganha dinheiro com outra profissão. A arte, em geral, tem o sentido simbólico do prazer, e isso é individual, por isso o apelo da arte é para a solidão, para o individualismo” .
Gostaria de lembrar que mesmo entre a incomum imagem local deformada pode sempre haver pontos de convergência. Ou seja, os vários leitores deste livro, trazendo experiências diferenciadas, podem encontrar elos comuns, isso porque o conhecimento adquirido individualmente, mas numa comunidade, se torna património colectivo, memória e consciência colectiva.
No caso concreto da literatura, há um elemento denominado invariante, uma modalidade essencial através da qual a literatura participa da universalidade e o meio pelo qual ela reveste todos seus elementos comuns de uma significação universal.
Quando Claude Lévi-Strauss se refere ao conceito de invariante é para vigiar a base, de carácter binário, de sustentação da estrutura, pois a invariante gera novas imagens deformadas, no fundo variáveis comuns de uma significação universal, mas que permitem uma percepção local.
Imaginemos que o narrador queira nos propor uma história que actue no imaginário da consciência colectiva para propor soluções sobre conflitos reais.
No caso de “O último recuo”, o invariante, para nós leitores angolanos, provavelmente nos conduzirá ao récem-terminado conflito armado. Mas, mesmo perante este invariante, a experiência de cada um de nós nos levará às imagens locais deformadas. Assim, uns poderão pensar em ente-queridos, outros em bens móveis ou imóveis perdidos e outros ainda em sonhos ou projectos de vida desfeitos.
O autor cria a amargura no coração do leitor, mas oferece um projecto que poderá trazer mudanças. E é Manecas Ladeira, um mutilado, um sindicalista, um professor, um ex-militar, quem trás a novidade para a mudança, com um livro, descrevendo 3 revoluções que terão abalado o seu país.
O livro de Manecas Ladeira é, na realidade, o retrato do “O último recuo”, recuando no tempo e na história, narrando o estado caótico em que o país da ficção se encontrava.
E a pergunta do João Segura na página 129, que é a do autor provavelmente e que é a dos leitores, acaba por ser contagiante:
“- E o livro fica por aí, acaba assim?... (descrevendo as revoluções) Não aponta saídas?”
Contudo, e voltando ao conceito de consciência colectiva, um outro invariante que poderá emergir do texto é o da crença colectiva por uma bonança no pós tempestade.
A ideia de consciência colectiva, de Émile Durkheim, pressupõe a soma de crenças e sentimentos comuns à média dos membros da comunidade, formando um sistema autónomo, isto é, uma realidade distinta que persiste no tempo e une as gerações .
Portanto, os factos sociais narrados em “O último recuo” demonstram que a consciência colectiva anula a consciência individual e se contrapõe à consciência de classe, esta que privilegia as diferenças existentes entre a própria situação de classe e a de outro indivíduo ou indivíduos.
Com a consciência colectiva, nada depende de um indivíduo. Tudo depende de um todo.
“O último recuo” é, a meu ver, um olhar ao passado para melhor avançarmos para o futuro e alimenta os átomos individuais duma consciência colectiva que este país precisa de inventar, de regar e de colher.
Como disse, essa é a minha leitura.
Boa leitura.


Bibliografia

CORI, Isaquiel. O último recuo. Colecção Nzadi / Mayamba, Luanda, 2010.
Durkheim, Émile. Da divisão do trabalho social. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2008.
MILAN, Betty. A força da palavra. Editora Record. Rio de Janeiro, 1996.
SCHULER, Donaldo. Teoria do romance. Editora ática, São Paulo, 2000.
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NOTA: Texto de apresentação do romance "O Último Recuo", de Isaquiel Cori, lido no dia 19 de Maio de 2010, na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda.






*António Quino é docente de Língua Portuguesa no ISCED. Para quem o quiser contactar, eis os seus contactos:
Departamento de Língua Portuguesa
Instituto Superior de Ciencias da Educaçao de Luanda
Caixa Postal N. 10609 ou 16117
Telef: 222 401 311 / 923311453 / 912050293

Luanda/Angola

As fotos aqui publicadas foram tomadas de www.nguimbangola.blogspot.com

1 comentário:

  1. Acabei de ler o romance o "O Último Recuo" sabado 28 de Agosto 2010 (10h15 a.m.).

    Durante 3 dias devorei as paginas deste livro e simplesmente sinto-me estupefacto. A muito não lia um romance de um escritor Angolano e simplesmente fiquei espantado com a emotividade e cumplicidade com que o mesmo me prendeu. A determinados momentos parecia-me estar a ler um classico como "O Processo" de Franz Kafka ou mesmo o não menos enigmatico e sombrio "Papillion" de Henri Charriêre. A capacidade do autor em misturar a ficção com aspectos da história recente de nosso país levou-me a parar muitas das vezes minha leitura e mergulhar em momentos de abstração onde me perguntava a mim mesmo até onde os limites da ficção se separavam da realidade.

    Em "O processo" o leitor é transportado para um mundo que apesar de real tem um ar carregado, cheio de sombras e incertezas A cada desfolhar de pagina o leitor mais se convence da complexidade do mundo e do processo que o caracter principal tem de enfrentar. As instituições sem face, a burocracia e a incerteza no dia-a-dia. Todos estes elementos fazem parte da vida de joão Segura em o último Recuo.

    Em minha analize o autor pretendia nesta obra despertar os leitores da forma imparcial com que vivem suas vidas. Mostrar que o estado da sociedade em que vivemos descaraterizada e sombria, em parte é culpa da inercia de cada um dos seus actores que parece votados todos ao destino que lhes foi imposto.

    Talvez como Papillon, o autor de o Último Recuo, pretende iluminar a consciencia do leitor para a situação injusta em que vive e levar-los a tomar consciencia real sobre o mundo em que vivem e das alternativas a inercia e ao comformismo. Seguramente a educação é uma dessas ferramentas de que o escritor sugere como arma de salvação. Mas mais do que isto vejo neste livro um convite aberto aos historiadores para abordarem de forma desapaixonada os verdadeiros motivos da guerra que acabou sendo nossa.

    Esta de parabens o escritor Isaquiel Cori. Pena que um livro tão bem concebido não tenha passado dos 1000 exemplares.

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