domingo, 31 de março de 2013

As nuances do 1 de Abril, o Dia das Mentiras

Onde se fala de mentiras “inocentes” e “sérias
 
 
Isaquiel Cori


Sim e não. Branco e preto. Grande e pequeno. Bom e mau. Alto e baixo. Verdade e mentira... É assim que, na generalidade, o senso comum tende a pintar o mundo, como se a vida fosse uma pobre moeda de duas faces. Pepetela, no seu celebrado romance, “Mayombe”, introduz, entre o sim e o não, a questão do talvez. E entre a verdade e a mentira?

Crescemos a ouvir, e agora dizemos aos nossos filhos, que mentir é muito feio. E que mais vale dizer a verdade, seja em que circunstância for. Mas, como na história bíblica, por analogia, diante da pecadora, quem nunca mentiu, que atire a primeira pedra.
“De quando em vez, uso umas mentirinhas. Por exemplo, às vezes digo aos meus filhos que vamos passear a um determinado lugar e acabamos por não ir”. Tratam-se de mentiras “inocentes”, “sem consequências de maior”, na óptica de Rosa Gracieth, 39 anos. Para lá desse tipo de mentira, ela distingue outro, “mais sério”: “Há aquela mentira que chega a ser um roubo. Por exemplo, alguém vende-te um produto por dois mil kwanzas, quando o seu preço verdadeiro é mil. Mais do que mentira, isso é um roubo”.
Leonilda Damião, 32 anos, é igualmente de opinião que existem mentiras “inocentes”, “toleráveis”: “De quando em vez, quando quero uma coisa do meu esposo, minto, e, ao fim e ao cabo, descubro certas verdades. Quando a mentira não é destrutiva mas saudável, ela contribui para uma boa relação”.
Mentiras afectivas?, interrogamo-nos nós.
Definitivamente, há gradações no mentir. Mentiras “inocentes”. Mentiras “sérias”. Se aquelas são parte íntima do jogo saudável das relações humanas (nesta acepção, podem ser expressas pelos verbos “estigar”, reinar, caçoar, brincar) já estas podem ter efeitos danosos. “Quando alguém me mente sinto-me muito zangada. É triste e frustrante. Perco logo a confiança nessa pessoa”, exclama Leonilda Damião.
“Sinto-me decepcionado, sobretudo se o mentiroso for alguém que convive comigo. Encaro essa mentira como um acto de traição”, acrescenta Adriano Makuéria, 38 anos.
“A mentira, para ser saudável, tem de ter limite. A pessoa que mente tem de saber que não vai prejudicar ninguém”, opina Gina Lopes (não quis dizer a idade), sub-directora pedagógica da escola primária 6.014. “Num desses 1 de Abril, alguém ligou-me a dizer que um amigo morreu. A notícia espalhou-se e até chegou a formar-se óbito, quando na verdade o tal amigo estava bem vivo e a dar as suas voltas. Senti-me muito transtornada e ofendida”, revela.
Gina Lopes acrescenta o fenómeno da mentira aos males que vêem sendo observados e recenseados na sociedade angolana. “Em Angola mente-se muito, tanto a nível das figuras públicas como das outras. Tendem a dizer que podem, quando na verdade não podem. Muitos jovens, quando querem conquistar uma rapariga, fruto da pobreza em que vivem, fazem-se passar por alguém que não são. E agora, com o uso generalizado dos telemóveis, as pessoas tornaram-se muito mais mentirosas”.
Porventura também mente-se por caridade? Por amor?
“Sim”, afirma Leonilda Damião. “Há quem, diante de um defeito do companheiro, para não magoá-lo, prefere mentir”.
Entre homens e mulheres, em Angola, quem mais tende a mentir? À falta de estatísticas, que nos dariam um quadro objectivo do problema, contentamo-nos a colher a opinião dos nossos interlocutores. “Acredito que haja um equilíbrio. Todo o ser humano está sujeito a mentir”, diz Gina Lopes.
Adriano Makuéria é mais contudente: “As mulheres mentem mais. Veja que raramente elas aceitam dizer a sua idade ou, se trabalham, o salário que auferem”.
“Os homens mentem muito mais. Vejo mais seriedade nas mulheres”, defende Casimiro Morais, 40 anos.
Na escala de graduação da mentira há que mencionar aquela que está associada ao maravilhoso, à fábula, ao sonho. Este é o mundo, por excelência, da literatura, da ficção. “O escritor mente para fazer passar a sua mensagem. Ele é um educador, já que tenta criar uma mentalidade nova. O escritor pode recorrer a personagens fictícias para, digamos assim, salvar a sociedade”, refere Timóteo Ulika (pseudónimo literário do historiador Cornélio Caley).

A perspectiva jurídica

Segundo Lazarino Poulson, advogado, não existe mentira legítima. “A mentira é sempre um engano”, afirma. “Eventualmente, a mentira pode ser admissível no âmbito do trato, da cortesia, mas nunca na esfera jurídica. Aliás, há crimes que têm na sua base a mentira. São os casos dos crimes de burla, de peculato, de abuso de confiança e de falsificação”.
Na óptica do advogado, nem mesmo o Dia das Mentiras pode servir de desculpa para mentiras danosas. “Imagine que no dia 1 de Abril alguém desperte um alarme de bomba num aeroporto. Isso pode provocar pânico e daí danos materiais e outros. A esse indivíduo deverão ser imputadas responsabilidades civis e criminais. Quando a mentira provoca danos ou afecta os nossos direitos, ela é muito perniciosa”.
A classe profissional que mais mente, na percepção de Lazarino Poulson, é a das secretárias. Seguem-se-lhe, por esta ordem, a dos políticos, dos advogados e dos jornalistas.
O jurista Noé Filho esclarece que, juridicamente, uma mentira pode redundar num falso testemunho, quando “um indivíduo faz um depoimento contrário à verdade por ele conhecida”. Noé Filho menciona também a figura da simulação, no âmbito do direito civil, “quando alguém pretende realizar um negócio mas age de forma diferente, como se o não quisesse realizar”.
O jurista elucida que, em Direito, a acção consiste em fazer ou em não fazer. “Logo, também pode-se mentir por omissão”.
Ele reconhece que, por razões profissionais, os advogados podem ser obrigados a mentir... por omissão. “Pelo sigilo profissional, os advogados não têm a obrigação de narrar certos factos concernentes à situação dos seus clientes. Eles não podem, no tribunal, dizer algo que possa prejudicar os seus clientes”.
Noé Filho admite que se possa mentir no dia 1 de Abril. “Há mentiras grosseiras, aquelas que, pelo modo como são ditas, não têm a possibilidade de encontrar qualquer crédito. Essas são as mentiras toleráveis no Dia das Mentiras. Já as mentiras mais refinadas, aquelas que são ditas no sentido de produzir um efeito contrário à realidade ou para conseguir um proveito ou para que as pessoas tenham um determinado comportamento, não são, de modo nenhum, toleráveis”.

 

NA – Este texto foi originariamente publicado aqui em 23 de Agosto de 2009. Republico-o por achá-lo perfeitamente actual.

 

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