A incapacidade das autoridades angolanas lidarem com manifestações convocadas por forças sociais que lhe são adversas já vem de longe. No meu livro “Dias da Nossa Vida” – romance – publicado em 2018 mas escrito entre 2014 e 2016, é descrita uma manifestação de estudantes universitários e a forma como as autoridades da província se posicionaram e lidaram com a mesma. A cena tal como está narrada - e as figuras concretas que nela se movem - é ficção. Mas uma ficção imensamente nutrida pela realidade que envolvia o autor. Publico abaixo um excerto da tal cena. O resto só lendo mesmo o romance, editado pela Acácias.
“Mesmo com toda a carga de vigilância humana e electrónica sobre si, o núcleo duro do movimento de jovens estudantes, nos últimos tempos, conseguia alcançar zonas de sombra e de silêncio em que estava completamente fora do alcance dos Serviços. Foi aí, numa dessas zonas, que esse núcleo congeminou as acções de enfrentamento às autoridades.
Nas primeiras horas da manhã de sábado, os primeiros grupos de
estudantes convergiram para o largo Angola Avante. Vestidos de camisolas e
chapéus brancos, alguns dos jovens carregavam cartazes toscos de papelão com
inscrições, bem visíveis, contra a corrupção no ensino e na governação e por
mais saúde e emprego. Outros aludiam à falta de liberdade de expressão. Em
pouco tempo juntaram-se, no largo, umas largas centenas de jovens, alegres e
barulhentos nas suas reivindicações. O Governador retirara-se, um dia antes,
para a sua fazenda, e deixara ordens expressas para que, numa eventualidade
como a que ocorria agora, Reinaldo Bartolomeu coordenasse as acções das forças
de segurança e ordem pública.
Reinaldo ainda foi a tempo de embarcar o sogro e a cunhada no voo de
regresso a Luanda. Transformou a sala de operações dos Serviços de Informação
em gabinete de crise e desencadeou, imediatamente, os primeiros passos do plano
de contingência.
- Como estamos, comandante? O desdobramento das forças e meios, está
feito?
- Sim. Colocamos um cordão de homens e meios em redor do largo e
reforçamos a guarnição e o patrulhamento nos acessos e junto ao Palácio e às
instalações da rádio e da televisão. Eles estão isolados. Mas quanto mais cedo
os desbaratarmos melhor, evitamos o risco de ganharem simpatia e atraírem mais
gente para a sua causa.
O Comissário Zebedias António era um homem essencialmente prático, como
aliás a maioria dos antigos comandantes de brigada das ex-FAPLA. Mais do que um
polícia, raciocinava como um militar. E mal conseguia esconder o desagrado por
estar a ser chefiado por alguém que ele considerava civil. Era um problema
antigo, esse, da má relação institucional entre a Polícia e os Serviços de
Informação. Os policiais queixavam-se, muitas vezes, da arrogância e
autossuficiência dos agentes dos serviços de inteligência, além de se sentirem
enciumados com as regalias materiais de que estes eram contemplados pelo poder
político.
- Vamos acabar com esta manifestação. Mas antes de usarmos a força
tentemos convencer os cabecilhas a desmobilizarem voluntariamente.
- É uma perda de tempo. Veja o que acontece em Luanda. É carregar contra
eles e matarmos o mal pela raiz. É preciso não dar asas a esses miúdos.
Largamos os cães contra eles e eles fogem com o rabo entre as pernas.
Reinaldo sabia desse tipo de abordagem e não concordava com ela. Sentia
que o Governador, preocupadíssimo com a estabilidade social e política da província,
queria, a todo o custo, evitar um banho de sangue. Politicamente saíra de cena
e deixara a responsabilidade a Reinaldo. O Comissário Zebedias António não
estava sozinho naquele tipo de visão. Em alguns meios castrenses, e até de um
certo núcleo político, emergiam, cada vez mais, manifestações de intolerância
em relação à diferença, e até mesmo de cansaço em relação à paz. Mas eram
minoritários, apesar de serem fortes e estarem bem incrustados no coração do
poder político e militar.
-
Comissário Zebedias, vamos dar uma oportunidade ao bom senso. Vamos conversar
com os miúdos, a ver no que é que dá.
- Não vamos cometer, premeditadamente, erros. Não estamos em tempo de
conversa. Esses, que você chama miúdos, podem ser a nossa perdição. Os nossos
cães estão a salivar, a espera de serem largados. Não compreendo essa
hesitação.
Reinaldo captou o tom de desprezo na voz do Comissário. Estava a ser
tratado por cobarde.
- A autoridade suprema, aqui, sou eu. Comissário, tem dúvida?
Zebedias António levantou-se e foi fumar um cigarro à janela. Aí, iluminada
directamente pela luz do sol, ficou bem clara a cicatriz espessa que lhe ia da
parte inferior da orelha esquerda e desaparecia sob a gola da camisa do
uniforme policial. Era resultado da guerra. Reinaldo fez tenção de proibir-lhe
de fumar aí, mas foi interrompido pelo toque do telefone portátil. Era o Chefe
Admirável Redondo. Afastou-se com o telefone para o seu gabinete.
- Bom dia, Chefe.
- Já acabaram com a confusão? Mande-me já o relatório a dizer que está
tudo acabado. Vocês estão na boca do mundo. Essa manifestação está a abrir
telejornais lá fora. Não se fala de outra coisa. Recebi ordens para evitarmos
sangue. Nada de sangue. Mas acabe com a merda dessa manifestação.
- Está tudo a postos, Chefe. Eu, pessoalmente, vou explorar uma última
possibilidade de conversa, antes de usarmos a força.
- Como? Pessoalmente? Não brinques com as multidões.
- É uma última tentativa, Chefe. De contrário, vai correr sangue. Muito
sangue.
Seguiu-se um longo silêncio. A possibilidade de derramar sangue de
jovens desarmados silenciou Admirável Redondo. Os tempos não iam de feição para
esse tipo de coisas.
- Avança como pensas. Dá-me o relatório definitivo, imediatamente a
seguir.
- Está bem, Chefe.
Reinaldo, mais do que sentiu, viu claramente um lavar de mãos por parte
do chefe. O destino dos jovens e a reputação de todo o sistema estavam nas suas
mãos. Regressou à sala de crise, com um brilho de determinação renovada nos
olhos, e reassumiu, ostensivamente, o comando de toda a operação.
Zebedias António, militar de formação e experiente, sabia obedecer às
ordens.”
*Excerto do romance DIAS DA NOSSA VIDA, de ISAQUIEL CORI
Foto da Editora Acácias
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