Publicou no princípio deste mês, pela Editora Acácias, na colecção Troncos da Literatura Angolana, o livro de poemas Os Livros dos Ancestrais. Motivo mais que suficiente para o entrevistar. António Gonçalves fala nesta entrevista do seu livro, que segundo disse resulta das suas vivências na centralidade do Sequele e da reflexão em torno da ancestralidade. Mas também recua no tempo e descreve o ambiente da sua infância e os factores que o terão levado ao hábito de leitura. Por fim, caracteriza o desempenho actual da União dos Escritores Angolanos, de que já foi secretário-geral. A UEA está transformada num “corpo amorfo que não tem dinamismo e está muito aquém dos interesses da sociedade angolana e muito menos da literatura angolana”. Sentencia sem “papas na língua”.
Como é que surge este Os Livros dos Ancestrais, a começar pelo título?
Comecei
por projectar uma homenagem ao lugar em que resido actualmente, que é a
Centralidade do Sequele e então concebi um livro que se chama Icónico Postal do
Sequele. À medida que este livro foi tomando corpo surgiu o poema Utima, que
significa “coração” em umbundu. De repente escrevi vários textos, que totalizaram
21, que se transformaram num livro à parte. Como notei que sobretudo o primeiro
livro tinha uma carga relacionada com os nossos ancestrais, decidi juntar os
livros num só e dei-lhe o título de Os Livros dos Ancestrais.
O primeiro livro,
ou primeira parte de Os Livros dos Ancestrais, faz uma imersão até então literariamente
inédita nesses novos aglomerados urbanos que são as centralidades. O que de
diferente, em termos poéticos, captou relativamente aos outros lugares onde
viveu?
É
uma experiência diferente. Embora tenha crescido no Bairro Neves Bendinha, que
antes se chamava Bairro Cemitério Novo e depois Bairro Popular, frequentei
muito o Rangel e o Cazenga, onde tinha familiares, bem como o Sambizanga. É uma
vivência muito própria que se diferencia das zonas urbanas como a Ingombota ou
o Kinaxixi. O que vamos encontrar nas centralidades, sobretudo na onde vivo,
são pessoas oriundas daqueles bairros que trouxeram os seus hábitos e costumes.
Mas elas tiveram também que se adaptar ao novo meio, já que somos todos
pioneiros nisso de conhecer como viver em centralidades, em que no caso do
Sequele, apesar de ser aberta, há normas, regras. No meio de tudo isso há
personagens que se destacam.
Que se destacam
e alguns dos quais aparecem poetizados no livro.
Sim.
Como uma espécie de historiador tentei fixar aquilo que são os primeiros anos
de vivência do Sequele. Fi-lo não só em função do que vi, mas também
trabalhando-os. Por exemplo, a Tia Maria é uma pessoa muito conhecida no
mercado, que é o ponto-chave do Sequele, frequentado por todos. Agora já há
outros pontos de encontro, nomeadamente restaurantes, mas na altura em que
concebi o livro todo o mundo concentrava-se no mercado. O Man Jasse, que fala
um português de categoria, “o ambaquista do Sequele”, é outro personagem
conhecido, que em função do estilo de vida e das contradições existenciais está
com um desequilíbrio mental, mas continua a ser conhecido como DJ.
Essas figuras
contemporâneas do Sequele chegam a ser tão marcantes à leitura do seu livro,
que, de certo modo, acabam por prevalecer relativamente às marcas da
ancestralidade…
Há
um poema dedicado aos 40 anos da Independência Nacional, Evocação Transcendental
que Ilumina o Quadro, em que há a evocação muito explícita do passado, da
ancestralidade. Nele, falo dos reinos do Congo, Matamba, Benguela, Lunda-Cokwe,
Rei Mandume… Tive como referência esse poema para atribuir ao conjunto dos dois
livros o título Os Livros dos Ancestrais. Mas também em Utima encontramos
referências aos ancestrais. A diferença entre os dois livros é que se o
primeiro é multitemático, o segundo é unitemático, isto é, com um único tema
que trato de 21 formas diferentes. É um poema em série com 21 textos. Na
verdade, remeto-me à qualidade de intermediário que recebe as mensagens dos
ancestrais para transmitir à modernidade. É uma construção ficcional que
normalmente só é feita quando estamos a falar da ficção narrativa.
Está reformado
enquanto funcionário público. Logo, tem muito mais tempo para dedicar-se à
criação literária…
De
uma forma geral sim. Estou agora a escrever o Décimo Segundo Livro dos
Ancestrais, que espero concluir ainda este ano. Ao contrário de Utima, vou
regressar a um formato multitemático. Tenho também a intenção de seleccionar as
minhas narrativas, que estão muito dispersas. Vou reuní-las e publicá-las em
livro. A par disso, estou a seleccionar uma série de textos que apresentei em
conferências em Cuba e noutros países da América Latina e também cá em Angola,
para publicá-los em livro.
Nos dez anos em
que esteve como conselheiro cultural na Embaixada de Angola em Cuba publicou
muita coisa em espanhol. Tratam-se de textos escritos originariamente naquela
língua ou traduzidos?
Escrevia
sempre em português e tinha um secretário que tratava de traduzir para o
espanhol, já que ele dominava também o português. Em Cuba, publiquei seis
livros bilingues, em português e espanhol, e dois totalmente em espanhol. Na
Costa Rica, publiquei um livro em espanhol, que depois os cubanos reeditaram
(Emosentidos) e na Venezuela A Quinta Estação do Tempo, em espanhol.
Fale-nos do seu
processo de escrita. Como é que os seus poemas surgem? Vivencia-os primeiro ou
eles vão ganhando sentido e forma enquanto os escreve?
Há
um processo, que é o mais recorrrente, em que o poema aparece na cabeça,
desaparece e reaparece depois de algum tempo. Faço então o registo e deixo-o
por aí. Há um outro processo em que desperto à noite como se me estivessem a
transmitir mensagens e então registo o poema na totalidade. Um outro processo é
quando vivencio algo que me emociona e trato de o traduzir em palavras. Aí
também o texto fica algum tempo na gaveta e mais tarde dou-lhe o tratamento
estético. São raros os poemas que atingem a forma definitiva logo de primeira,
embora possa ter já a antevisão do chamado texto acabado. Tenho um poema, África
que Observo com os Dedos, que me levou dois anos a escrevê-lo. É o meu poema
mais conhecido no Mundo, o que melhor identifica a minha poética.
Recuando. Quais
são as pessoas e os livros que mais o terão influenciado no sentido da criação
literária?
Aos
13 anos lia muito a revista Sete Balas, que então estava na moda. Em 1975, as
pessoas da minha geração liam muito livros provenientes de Portugal e sobretudo
do Brasil. Li Jubiabá de Jorge Amado, li José Lins do Rego, outro brasileiro, e
lembro-me também da influência da literatura russa e dos então países
socialistas em geral. Foi naquele período que tomei contacto com Sagrada
Esperança de Agostinho Neto, os poemas de António Jacinto e Viriato da Cruz.
Comecei a ler Mário António muito mais tarde. Decido em 1979 escrever Cenas que
o Musseque Conhece, que dou a ler ao meu professor de português e ele faz uma
crítica a dizer que com pequenas correcções o livro podia ser publicado. Isso
foi um incentivo para mim. Em 1980 é que começo a publicar pela Brigada Jovem
de Literatura e participo num caderno de homenagem a Agostinho Neto com o poema
Reflexão, que assinei como Tony Gonçalves. Considero que a minha produção
literária começa em 1980.
Como era o
ambiente da sua infância em casa? O que o levou ao hábito de leitura?
Tínhamos
uma biblioteca em casa, em que alguns livros eram do meu pai, outros do meu
irmão mais velho, o Johnson, que ainda vive. As minhas irmãs mais velhas
estudavam no Liceu Feminino e já tinham o hábito da leitura. Os livros que mais
predominavam eram os de carácter político, porque o meu irmão mais velho era o
coordenador da JMPLA no bairro Neves Bendinha. Ele iniciou-me na política e
chegou uma altura em que ele era o coordenador da “Jota” e eu era o da OPA.
Estamos a falar de 1975/1977.
A literatura em
geral e a poesia em particular que papel podem jogar em momentos de
transformação como o que o país vive?
O
povo angolano nunca aceitou de ânimo leve a colonização portuguesa e mesmo a
holandesa. Somos um povo rebelde que sempre resistiu à colonização. É curioso
que na história da literatura angolana, que nasce da conjugação com o jornalismo,
vamos encontrar em A Voz de Angola Clamando no Deserto um texto de confronto em
que angolanos respondiam a um outro texto em se alegava que o angolano era
preguiçoso, não estava preparado para viver em sociedade, etc., etc. Vamos encontrar
depois, já na década de 40, uma plêiade de intelectuais, na sua maioria poetas,
que reivindicam a necessidade da Independência do país. Quer dizer que a
literatura angolana sempre esteve vinculada ao processo de libertação de
Angola. As gerações actuais devem continuar nessa senda. A vantagem que temos
neste momento é que há grandes possibilidades de surgimento de bons
ficcionistas, além de bons poetas. Sou dos que acham que a literatura deve
estar ao serviço da sociedade. Não acho que um escritor deva afastar-se dos
problemas do seu tempo. Naquilo que escrevo tento mostrar essa posição, que é
inequívoca. Nunca me vejo como um escritor fora do meio social em que vivo. O
escritor deve ter uma consciência histórica.
Foi durante
vários anos secretário-geral da União dos Escritores Angolanos. Qual é a
leitura que faz do desempenho da UEA nos últimos tempos?
Depois
daquela fase eufórica em que era ao mesmo tempo uma grande editora, publicava
muitas obras e tinha uma grande intervenção cívica, a UEA acabou por não manter
esse perfil. Por um lado, não continua a produzir obras, de tal modo que alguns
membros acham que devia ser apenas uma cooperativa de escritores. A UEA perdeu
o protagonismo na sociedade a favor de outros movimentos cívicos de novos
grupos de escritores jovens que vão ocupando o seu espaço.
A UEA não estará
a pagar o preço por, durante décadas, ter estado “acoplada” ao poder político e
ser mesmo uma plataforma de acesso a esse poder?
Também
está a pagar essa factura. Mas muito mais do que isso é o facto dela não se ter
adaptado aos novos ventos. Há debates que têm sido promovidos em alguns
círculos que podia muito bem ser a UEA a fazer, conforme durante anos o
Luandino Vieira fez, mesmo no tempo de partido único, tal como o João Melo em
alguns períodos do seu mandato e, modéstia à parte, também eu, no meu mandato.
Há um outro problema que é o do relacionamento pessoal. Há escritores que não
se revêem na UEA, porque as políticas e a forma de estar da própria UEA não
correspondem aos anseios dos escritores. É uma pena que tenha de dizer isso e
não é nenhuma ofensa ao Carmo Neto, mas na verdade há que rever o papel
histórico da UEA e em que medida ela se deve reformular para corresponder aos
desafios dos tempos modernos.
Retendo essa
questão do papel histórico da UEA e indo para os seus primórdios, não acha que
sobre ela recaíram responsabilidades culturais e sociais extremas?
Agostinho
Neto, quando fez os pronunciamentos sobre a cultura nacional e o papel da UEA e
dos escritores, estava longe de prever os desenvolvimentos que o país teria.
Neto tentou salvaguardar aspectos que também defendo. Continuo a achar que a
literatura angolana é essencialmente africana, que os escritores têm um papel
fundamental em defesa dos valores mais sagrados e nobres do imaginário e do
bem-estar social. A responsabilidade em si atribuída à UEA foi resultado de um
momento histórico particular, primeiro pelo facto de ele próprio, Agostinho
Neto, ser o poeta que era e ter sido o primeiro Presidente da República. Segundo,
porque quem estava a governar era o MPLA. Só que à medida que as coisas foram
evoluindo, em 1992 dá-se a transformação do sistema monopartidário para o
multipartidarismo. A UEA devia rever também a sua estratégia de intervenção na
sociedade angolana. Já devia ter tido uma maior abertura. Lembro-me que quando
eu era o secretário-geral, por exemplo, convidei o Sousa Jamba a entrar para a
UEA; convidei o João Paulo Nganga, depois dele ter lançado aquele livro polémico,
“O Preto no Branco”… Mas eu saí e mais tarde fiquei a saber que essas e outras
pessoas não figuravam como membros da UEA. Alguma coisa não esteve bem. Já
naquela altura a UEA devia ter alargado o seu leque de membros em função da
dinâmica do país, convidando, inclusive, escritores membros de outros partidos
políticos. Se isso tivesse acontecido, a UEA estaria a ser vista de uma outra
forma.
De que forma é
que ela está a ser vista?
Como
um corpo amorfo que não tem dinamismo e está muito aquém dos interesses da
sociedade angolana e muito menos da literatura angolana.
Nesse quadro, a criação
da Academia de Letras não terá esvaziado ainda mais a UEA?
Não
tenho nada contra o surgimento de instituições culturais que têm em vista o
progresso social e cultural do país. Questionaria apenas a oportunidade e a
viabilidade de instituições como a Academia de Letras. São muitas instituições
para um mesmo objecto social, o que cria alguns constrangimentos. Há quem
entenda que na Academia estão os melhores e na UEA os piores… Esse tipo de
discussão não é salutar para quem quer construir um país como o nosso, onde o
elitismo não se deve sobrepôr ao desenvolvimento natural da literatura e da
cultura.
Até aqui não
temos um cânone da literatura angolana, que muito ajudaria no enquadramento do
seu estudo e até na criação de um plano nacional da leitura. Em linhas gerais,
para si, como é que deveria ser esse cânone?
Há
um trabalho que o escritor Boaventura Cardoso iniciou enquanto ministro da
Cultura, com a criação de uma comissão de investigadores angolanos, portugueses
e brasileiros, para a escrita de uma História da Literatura Angolana. É uma
pena que esse projecto tenha desaparecido com a saída do senhor ministro
Boaventura Cardoso da função. É uma pena que no país os projectos importantes
no domínio da Cultura desapareçam quando o ministro deixa o cargo. Não podemos
continuar nesses termos.
Temos
de ter um cânone da literatura angolana e defendo que nele não devam entrar
apenas os autores da Mensagem e os da Cultura. Deve abranger também a geração
de 80 [do século XX], mas também a novíssima geração que começa com o ano 2000.
Considero que nesse período, de 2000 a 2020 ( faltam menos de dois anos para
2020), se não existe uma geração literária afirmada, há referências a
considerar. Mas devo dizer que os novíssimos autores têm de apurar o seu
estilo. Noto que quase todos eles escrevem da mesma forma e é difícil
identificar uma voz individual. Mas isso é um processo.
O
problema do cânone remete-nos para a discussão do que é a literatura angolana.
Será que tudo o que se escreve, tanto por autores na diáspora como cá, é
literatura angolana? Entendo que literatura angolana é aquela que expressa a
alma do povo angolano, que defende os valores da angolanidade numa perspectiva
dinâmica.
Como referiu, dos
“novíssimos autores”, tem nomes a mencionar, pelo valor promissor do que
escrevem?
Ressalto
o nome do Hélder Simbad, que tem uma proposta estética que corroboro. Há também
o Nguimba Ngola, que tem um texto excelente, e o Zola Vida, que me parece estar
no bom caminho.
António
Gonçalves
nasceu em Luanda, antes da proclamação da Independência Nacional.
Gestor
hoteleiro, frequentou o curso de Linguística no ISCED de Luanda, opção Língua
Portuguesa.
Foi
secretário-geral da União dos Escritores Angolanos no período de 1996 a 2001.
Grande parte da sua obra literária foi editada em Cuba, onde durante dez anos
exerceu a função de conselheiro cultural da Embaixada de
Angola.
É
membro da União dos Escritores e Artistas de Cuba, da Organização Poetas do
Mundo e do Movimento Poético Mundial com sede em Medellin (Colômbia).
Além
de Angola e Cuba tem textos publicados na Nicarágua, Venezuela, Costa Rica,
Colômbia, Suécia, Espanha e Alemanha.
Foi director-adjunto do Instituto das Indústrias Culturais do Ministério da Cultura.
*Entrevista publicada no Jornal de Angola em 2018, após o lançamento do "Livro dos Ancestrais".
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Parabéns, pelo interessante blogue!
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