segunda-feira, 18 de novembro de 2024

ESCRITORES MOÇAMBICANOS FACE À CRISE PÓS-ELEITORAL: Uns desceram do muro e outros saíram da torre de marfim

 Isaquiel Cori

A crise pós-eleitoral em Moçambique, marcada pelas manifestações convocadas pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, que não concorda com os resultados anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral e autoproclamou-se vencedor, tem o condão de não deixar indiferente nenhum cidadão daquele país. As manifestações descambaram para o vandalismo e em muitos casos suscitaram reacção violenta das autoridades policiais. Dezenas de mortes foram confirmadas. Os danos ao património público e privado dificilmente serão devidamente mensurados, mas certamente situam-se na ordem dos milhões de meticais. Venâncio Mondlane, temendo pela sua integridade física, auto-exilou-se na África do Sul e depois algures, de onde, através das redes sociais, emitiu os comandos para as manifestações que obtiveram ampla adesão da população jovem. Essa faixa etária constitui a esmagadora maioria da população de Moçambique e é a que mais sofre com o desemprego e a falta de perspectivas de realização pessoal.

A Frelimo, o partido no poder, tem na sua génese as características de movimento de libertação anti-colonial, tendo nessa condição galvanizado as populações em prol da independência do país. Alcançada a independência transformou-se em partido político movido pela ideologia marxista-leninista. A sua intenção de edificar em Moçambique uma sociedade igualitária, de tendência socialista e pró-comunista, com controlo férreo e monolítico do poder político, esbarrou no contexto adverso da Guerra Fria, com as acirradas contendas ideológicas Leste/Oeste e as invasões do exército da África do Sul sob o apartheid. Este país também servia de rectaguarda segura da rebelião interna personificada na Renamo de Afonso Dhlakama. A queda do Muro de Berlim em 1989 e o consequente desmoronar da União Soviética e da sua influência global levaram a Frelimo a adaptar-se aos novos tempos, a abrir o sistema político ao multipartidarismo e a adoptar a economia de mercado. Fica por conta de um execício de história reversa (ou de “passadologia” em contraponto a futurologia) a questão de saber se, se não fora o contexto mencionado acima, Moçambique alcançaria o desiderato da tal sociedade igualitária, socialista e pró-comunista.  

O que é certo, e no-la diz a realidade dos factos, Moçambique transformou-se numa sociedade profundamente desigual, com a emergência de uma elite privilegiada oriunda dos antigos combatentes pela independência, o alargar da pobreza extrema assente no desemprego maciço e na corrupção generalizada com raízes fincadas nas altas esferas do poder. Ora, a Frelimo, apesar desse cenário, foi sucessivamente ganhando as eleições com maiorias qualificadas. Se essas vitórias se deveram ao mérito próprio, a inépcia dos adversários ou a fraudes, um dia a história vai apurar. O certo é que agora surgiu um candidato que diz que ganhou as eleições, vários observadores internacionais apontaram inúmeras irregularidades ocorridas durante o processo de apuramento dos votos, e a sociedade moçambicana como nunca está fracturada em torno da Frelimo, da oposição e simplesmente da cidadania. Sectores que antes alinhavam-se incondicionalmente com o partido no poder ou escudavam-se na indiferença táctica ou estratégica, ante a actual crise tomam posição, conscientes das implicações existenciais do momento para a história do país e da sua democracia. Num gesto inusitado, a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), na voz do seu presidente Filimone Meigos, propôs a criação de um “governo de inclusão” para acabar com a violência pós-eleitoral. O escritor apelou a “um encontro urgente” entre os dois candidatos presidenciais mais votados, Daniel Francisco Chapo e Venâncio António Bila Mondlane tendo em vista discutirem “a realização de um acordo para terminar com o actual clima de instabilidade e violência para evitar mais perda de vidas humanas e destruição de infraestruturas, com o compromisso sério e verdadeiro de que no encontro se devem fazer cedências mútuas e jamais pautar pela arrogância e posições radicais”.

O escritor Ungulani Ba Ka Khosa, autor do romance “Ualalapi”, pronunciou-se num texto que intitulou “Uma vista às eleições de 2024”. O escritor e professor afirma: “(…) A população quer mudanças profundas, está cansada da esperança prometida, quer que a realidade do dia a dia mude radicalmente, em actos e propostas urgentes; mas o poder, anquilosado na cadeira que o sustenta há mais de 49 anos, não quer ver a realidade que está nas ruas. E isso pode ser fatal para um partido que já foi uma Frente de Libertação e que soube, a seu jeito, adaptar-se aos conturbados momentos da luta de libertação. Mas quando se transformou em Partido, a ortodoxia e o conservadorismo tomou as rédeas do que era o movimento de libertação”. Ungulani Ba Ka Khosa afirma que a Frelimo “está à deriva, desconectada da realidade, e muito longe de um ancoradouro sustentável. Mas está mesmo!”, para depois concluir com o apelo quase dramático: “Reencontrem-se e dialoguem com esta juventude que representa o Futuro. O futuro pertence-lhes! E a nós também”.

O premiadíssimo escritor Mia Couto, numa carta dirigida ao bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique, lançou “um grito de apelo” a esta agremiação para ajudar a esclarecer que “pelo simples facto de se anunciarem ‘pacíficas’ as manifestações não se tornam imediatamente legais” e que “por mais que sejam justas as greves precisam de serem organizadas de acordo com o que está estabelecido pela lei”. Mia Couto pediu ainda à OAM que “com a mesma coragem e isenção com que vieram a público condenar as irregularidade eleitorais, compareçam agora e com urgência para ajudar a informar sobre as regras que a lei define”, pois sendo as regras cumpridas, “elas podem prevenir a ocorrência de excessos quer dos manifestantes quer das forças da lei e evitar vítimas humanas e prejuízos materiais elevados”.

Amosse Mucavele, poeta que emergiu na cena literária do pós-independência, insurgiu-se contra a perspectiva legalista do seu confrade Mia Couto, frisando que “pretender negar a influênca política nos últimos acontecimentos [as manifestações] que o país assiste, é como golpear a realidade com metáforas dolorosas”. Acusa-o ainda de querer “outorgar-se o papel decisivo na manipulação da opinião pública”.

Outro reputado escritor, Marcelo Panguana, pronunciou-se nas redes sociais num texto que denominou “Um país doente”: “… Precisamos de reaprender a amar porque é a ausência de amor que nos afasta. Precisamos afastar a arrogância. A safadeza. O egoísmo. A ambição desmedida. Precisamos, sobretudo, de modificar os nossos discursos, pois, como muito bem disse o escritor Ungulani Ba Ka Khosa, ‘quando uma sociedade se corrompe, a primeira coisa que gangrena é a linguagem’. Precisamos, enfim, buscar nos livros dos escritores moçambicanos os elementos afectivos capazes de sossegar a nossa alma, de nos colocar em harmonia e por conseguinte dignos desta Pátria implantada nas margens do Índico”.

Pelos vistos, acabou o tempo dos escritores estarem comodamente em cima dos muros a ver a corrente do rio passar ou fechados nas suas torres de marfim a cultuar as musas envoltos na fumaça dos seus incensos e com olhares brilhantes pelos sonhos de mundos só possíveis na sua imaginação. Eles desceram dos muros ou saíram das torres de marfim e tomam posições de cidadania a favor ou contra a situação reinante, o que os torna coerentes com as posições defendidas ou combatidas pelos personagens ou pela voz narrativa dos seus contos, romances ou poemas. Aliás, sabe-se que a literatura de Moçambique tem um forte pendor de crítica social e política. Tudo isso reacende, em geral, a questão do papel social do escritor e se ele deve circunscrever-se à escrita literária e ao domínio estrito da cultura ou se deve e pode pronunciar-se a respeito de todos os outros aspectos da vida do país e do mundo.

 

   

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