Isaquiel Cori
A crise pós-eleitoral em Moçambique, marcada pelas manifestações convocadas pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, que não concorda com os resultados anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral e autoproclamou-se vencedor, tem o condão de não deixar indiferente nenhum cidadão daquele país. As manifestações descambaram para o vandalismo e em muitos casos suscitaram reacção violenta das autoridades policiais. Dezenas de mortes foram confirmadas. Os danos ao património público e privado dificilmente serão devidamente mensurados, mas certamente situam-se na ordem dos milhões de meticais. Venâncio Mondlane, temendo pela sua integridade física, auto-exilou-se na África do Sul e depois algures, de onde, através das redes sociais, emitiu os comandos para as manifestações que obtiveram ampla adesão da população jovem. Essa faixa etária constitui a esmagadora maioria da população de Moçambique e é a que mais sofre com o desemprego e a falta de perspectivas de realização pessoal.
A
Frelimo, o partido no poder, tem na sua génese as características de movimento
de libertação anti-colonial, tendo nessa condição galvanizado as populações em
prol da independência do país. Alcançada a independência transformou-se em
partido político movido pela ideologia marxista-leninista. A sua intenção de
edificar em Moçambique uma sociedade igualitária, de tendência socialista e
pró-comunista, com controlo férreo e monolítico do poder político, esbarrou no
contexto adverso da Guerra Fria, com as acirradas contendas ideológicas
Leste/Oeste e as invasões do exército da África do Sul sob o apartheid. Este
país também servia de rectaguarda segura da rebelião interna personificada na
Renamo de Afonso Dhlakama. A queda do Muro de Berlim em 1989 e o consequente
desmoronar da União Soviética e da sua influência global levaram a Frelimo a
adaptar-se aos novos tempos, a abrir o sistema político ao multipartidarismo e
a adoptar a economia de mercado. Fica por conta de um execício de história
reversa (ou de “passadologia” em contraponto a futurologia) a questão de saber
se, se não fora o contexto mencionado acima, Moçambique alcançaria o desiderato
da tal sociedade igualitária, socialista e pró-comunista.
O
que é certo, e no-la diz a realidade dos factos, Moçambique transformou-se numa
sociedade profundamente desigual, com a emergência de uma elite privilegiada
oriunda dos antigos combatentes pela independência, o alargar da pobreza
extrema assente no desemprego maciço e na corrupção generalizada com raízes
fincadas nas altas esferas do poder. Ora, a Frelimo, apesar desse cenário, foi
sucessivamente ganhando as eleições com maiorias qualificadas. Se essas
vitórias se deveram ao mérito próprio, a inépcia dos adversários ou a fraudes,
um dia a história vai apurar. O certo é que agora surgiu um candidato que diz
que ganhou as eleições, vários observadores internacionais apontaram inúmeras
irregularidades ocorridas durante o processo de apuramento dos votos, e a
sociedade moçambicana como nunca está fracturada em torno da Frelimo, da
oposição e simplesmente da cidadania. Sectores que antes alinhavam-se
incondicionalmente com o partido no poder ou escudavam-se na indiferença táctica
ou estratégica, ante a actual crise tomam posição, conscientes das implicações
existenciais do momento para a história do país e da sua democracia. Num gesto
inusitado, a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), na voz do seu
presidente Filimone Meigos, propôs a criação de um “governo de inclusão” para
acabar com a violência pós-eleitoral. O escritor apelou a “um encontro urgente”
entre os dois candidatos presidenciais mais votados, Daniel Francisco Chapo e
Venâncio António Bila Mondlane tendo em vista discutirem “a realização de um
acordo para terminar com o actual clima de instabilidade e violência para
evitar mais perda de vidas humanas e destruição de infraestruturas, com o
compromisso sério e verdadeiro de que no encontro se devem fazer cedências
mútuas e jamais pautar pela arrogância e posições radicais”.
O
escritor Ungulani Ba Ka Khosa, autor do romance “Ualalapi”, pronunciou-se num
texto que intitulou “Uma vista às eleições de 2024”. O escritor e professor
afirma: “(…) A população quer mudanças profundas, está cansada da esperança
prometida, quer que a realidade do dia a dia mude radicalmente, em actos e
propostas urgentes; mas o poder, anquilosado na cadeira que o sustenta há mais
de 49 anos, não quer ver a realidade que está nas ruas. E isso pode ser fatal
para um partido que já foi uma Frente de Libertação e que soube, a seu jeito,
adaptar-se aos conturbados momentos da luta de libertação. Mas quando se
transformou em Partido, a ortodoxia e o conservadorismo tomou as rédeas do que
era o movimento de libertação”. Ungulani Ba Ka Khosa afirma que a Frelimo “está
à deriva, desconectada da realidade, e muito longe de um ancoradouro
sustentável. Mas está mesmo!”, para depois concluir com o apelo quase dramático:
“Reencontrem-se e dialoguem com esta juventude que representa o Futuro. O
futuro pertence-lhes! E a nós também”.
O
premiadíssimo escritor Mia Couto, numa carta dirigida ao bastonário da Ordem
dos Advogados de Moçambique, lançou “um grito de apelo” a esta agremiação para
ajudar a esclarecer que “pelo simples facto de se anunciarem ‘pacíficas’ as
manifestações não se tornam imediatamente legais” e que “por mais que sejam
justas as greves precisam de serem organizadas de acordo com o que está
estabelecido pela lei”. Mia Couto pediu ainda à OAM que “com a mesma coragem e
isenção com que vieram a público condenar as irregularidade eleitorais,
compareçam agora e com urgência para ajudar a informar sobre as regras que a
lei define”, pois sendo as regras cumpridas, “elas podem prevenir a ocorrência
de excessos quer dos manifestantes quer das forças da lei e evitar vítimas
humanas e prejuízos materiais elevados”.
Amosse
Mucavele, poeta que emergiu na cena literária do pós-independência, insurgiu-se
contra a perspectiva legalista do seu confrade Mia Couto, frisando que
“pretender negar a influênca política nos últimos acontecimentos [as manifestações]
que o país assiste, é como golpear a realidade com metáforas dolorosas”.
Acusa-o ainda de querer “outorgar-se o papel decisivo na manipulação da opinião
pública”.
Outro
reputado escritor, Marcelo Panguana, pronunciou-se nas redes sociais num texto
que denominou “Um país doente”: “… Precisamos de reaprender a amar porque é a
ausência de amor que nos afasta. Precisamos afastar a arrogância. A safadeza. O
egoísmo. A ambição desmedida. Precisamos, sobretudo, de modificar os nossos
discursos, pois, como muito bem disse o escritor Ungulani Ba Ka Khosa, ‘quando
uma sociedade se corrompe, a primeira coisa que gangrena é a linguagem’.
Precisamos, enfim, buscar nos livros dos escritores moçambicanos os elementos
afectivos capazes de sossegar a nossa alma, de nos colocar em harmonia e por
conseguinte dignos desta Pátria implantada nas margens do Índico”.
Pelos
vistos, acabou o tempo dos escritores estarem comodamente em cima dos muros a
ver a corrente do rio passar ou fechados nas suas torres de marfim a cultuar as
musas envoltos na fumaça dos seus incensos e com olhares brilhantes pelos
sonhos de mundos só possíveis na sua imaginação. Eles desceram dos muros ou saíram
das torres de marfim e tomam posições de cidadania a favor ou contra a situação
reinante, o que os torna coerentes com as posições defendidas ou combatidas
pelos personagens ou pela voz narrativa dos seus contos, romances ou poemas.
Aliás, sabe-se que a literatura de Moçambique tem um forte pendor de crítica
social e política. Tudo isso reacende, em geral, a questão do papel social do
escritor e se ele deve circunscrever-se à escrita literária e ao domínio
estrito da cultura ou se deve e pode pronunciar-se a respeito de todos os
outros aspectos da vida do país e do mundo.
Sem comentários:
Enviar um comentário