Isaquiel Cori
Manuel dos Santos Lima (28/01/1935-17/12/2024) era um dos cidadãos angolanos com muitas histórias ainda para contar e que a morte retirou, inapelavelmente, do convívio dos vivos. Na qualidade de escritor contou muitas histórias, nos seus romances “As Sementes da Liberdade”, 1965, “As Lágrimas e o Vento”, 1975, “Os Anões e os Mendigos”, 1984, e na obra dramática “A Pele do Diabo”, 1984. Publicou ainda o livro de poemas “Kissanje”, 1984
Ele não acreditava no papel dos mais velhos como “bibliotecas vivas”, porque, “justamente, a qualidade da memória é esquecer”.
“A maior qualidade da memória, ao contrário do que se pensa, não é reter. A grande qualidade da memória é esquecer. Porque se não nos esquecêssemos, ficaríamos todos loucos”.
E
como a oralidade assenta na memória, cuja maior qualidade é o esquecimento,
Manuel dos Santos Lima tinha reservas quanto ao “grande valor” da oralidade.
Por isso reputava a escrita como fundamental para registar a memória e os
testemunhos.
O
escritor manifestou tais pensamentos numa entrevista concedida em 2013 ao
jornalista José Rodrigues, no programa Café da Manhã, da Rádio LAC, e publicada
em 2018 no livro “Entrevistas com a História”, Editora Mayamba, que reúne
precisamente entrevistas de várias personalidades àquele programa. Nela o
escritor, instado a dizer quem ele era, respondeu:
“Um
cidadão angolano que tentou ser coerente com aquilo que os meus pais me
ensinaram e com as opções que fui fazendo perante a idade histórica em que
vivi.
Fui
para Portugal aos 12 anos para estudar, depois de ter sido o primeiro aluno
negro a ser admitido na Escola Primária do Luau, porque o meu pai se bateu por
isso. Os jovens do meu tempo iam para as missões católicas ou missões
protestantes e depois tinham como destino serem empregados de comércio, camionistas
ou pouco mais do que isso. Tive a sorte de ter o pai que tive, que sempre quis
que eu saísse da mediocridade em que ele próprio foi obrigado a viver, pois
que, com trinta e tal anos de serviço como recebedor de fazenda, foi
subordinado de muitos jovens portugueses a quem ele ensinou a trabalhar e que
depois, inclusivamente, foram chefes dele.
O
meu pai obrigou-me a jurar aos 12 anos, antes de partir, que eu iria para
Portugal não para ser vadio nem futebolista, mas sim para tirar um curso. Eu
jurei, e quando em 1977 volto pela primeira vez a Angola, Angola independente,
e o meu pai alquebrado pela doença me vai esperar ao aeroporto, eu
entreguei-lhe os meus diplomas. Mais do que uma licenciatura, eu vinha com o
doutoramento. O meu pai abraçou-se a mim a chorar e disse: obrigado meu Deus,
missão cumprida, já posso morrer. E dois anos depois, efectivamente, o meu pai
morria.”
Numa
entrevista em que se apresentou profundamente afro-pessimista (“Se a vida
começou em África, como até agora parece que é geralmente aceite, quem primeiro
nasce, primeiro morre. Daí eu pensar que talvez a África não seja o continente
do futuro mas o continente que está morrer”), Manuel Lima contou a história da
criação, em 1961, do EPLA, o braço armado do MPLA, antecessor das FAPLA. Além
de ser o idealizador, criador e organizador do EPLA, Manuel Lima, que quando
desertara do exército colonial o fizera com todo o seu esquema de organização,
também contribuiu, com essa informação, para a estruturação das forças
guerrilheiras da FRELIMO, do PAIGC “e até para a própria África do Sul, para o
Nelson Mandela”.
O
entrevistado narrou igualmente a circunstância da sua saída do MPLA em 1963. “…
Começam os grandes problemas do MPLA e se vai dar a cisão do MPLA que acaba por
desmoronar em 1963 com a saída de vários membros do seu Comité Director, entre
os quais eu, porque [Agostinho Neto] não me convenceu. Mas fi-lo com toda a
honestidade e consciente do meu acto. Porquê? Enquanto que, por exemplo um
Viriato da Cruz se quis vingar de todas as maneiras do Agostinho Neto, eu como
não concordava com a orientação dele, apenas disse Agostinho Neto eu não
concordo com essa orientação, portanto vou-me embora. Aqui está o Exército
Popular de Libertação de Angola, a única força organizada do MPLA, vou retomar
os meus estudos.”
Ápice da fortuna crítica
O
ápice da fortuna crítica da obra literária de Manuel dos Santos Lima é o livro
“Manuel dos Santos Lima, Escritor Angolano Tricontinental”, organizado pelos
professores Francisco Topa e Irina Vishan, publicado pela Edições Afrontamento,
Portugal, em 2016. O livro reúne as comunicações apresentadas no colóquio
“Baobá, pinheiro, ácer: Manuel dos Santos Lima, escritor ‘orgânico’”, realizado
em Novembro de 2015 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O escritor
tinha então 80 anos e esteve presente no certame. Dificilmente poderá haver
maior homenagem a um autor vivo.
Interessa
aqui transcrever parte significativa da “Nota de Apresentação” assinada pelos
organizadores/coordenadores da obra.
“Em
parte pela sua vivência tricontinental (e a sugestão de paralelismo com Glauber
Rocha é menos despropositada do que pode parecer à primeira vista), em parte
pela sua divergência política, a partir de certa altura, com Agostinho Neto e o
MPLA, em parte ainda pela contundência da sua crítica à geração da distopia
contida no romance ‘Os anões e os mendigos’, de 1984, a verdade é que Manuel
dos Santos Lima não tem sido valorizado como entendemos que merece. E a sua
obra, com a qualidade que lhe tem sido reconhecida pelos escassos especialistas
que nela atentaram, apresenta uma assinalável diversidade (poesia, teatro,
romance e ensaio) e longevidade (o primeiro livro, ‘Kissange’, é de 1961, mas
inclui textos escritos na década anterior). Introduzir no título deste volume o
adjectivo tricontinental é também uma forma de sublinhar a condição multi-exílica
de um autor que, ontem como hoje, tem estado acima do seu tempo, fazendo do
mundo o seu espaço, sem com isso abdicar da sua condição de angolano. Na
conferência de abertura, Salvato Trigo, abordando o conjunto da obra de Manuel
Lima, destaca justamente as cicatrizes dos vários exílios que o marcaram,
estabelecendo uma aproximação a ‘Les soleils des indépendances’, de Ahmadou
Kouroma, e a ‘The interpreters’, de Wole Soyinka, e concluindo que estamos
perante uma ‘escrita fundadora, em que se filiarão mais tarde, nos finais dos
anos de 1990, Pepetela e Manuel Rui Monteiro’.
A
historiadora Anabela Silveira apresenta-nos uma leitura dos romances de Lima à
luz dos acontecimentos que marcaram a recente história de Angola, mostrando que
foi ‘essa desilusão, essa desesperança, esse descomprometimento em relação ao
poder e regime instituídos que lhe permitiu um olhar sagazmente crítico sobre o
longo trajecto percorrido pelos angolanos - do colonialismo à luta de
libertação, da independência a outras dependências, em que o sonho de uma
sociedade mais justa ficou pelo caminho’.
O
também historiador, brasileiro, Fernando Afonso Ferreira Junior aproveita a
trilogia romanesca de Santos Lima para abordar a importância estratégia do
caminho-de-ferro, tanto no contexto colonial como no período posterior à
independência. Ainda no domínio da história económica, segue-se o minucioso
trabalho de Maciel Santos, sobre as ‘relações industriais’ da Diamang durante a
década de 1960, ao longo do qual o autor faz também um enquadramento
comparativo com o antigo Congo belga quanto à evolução da ligação entre capital
e trabalho em Angola durante as últimas décadas da administração colonial.
Maria
Belém Ribeiro e o jovem estudante Rui Teixeira dedicam os seus trabalhos ao
estudo da poesia de Manuel Lima, a primeira fazendo uma leitura semiótica de
alguns textos de ‘Kissange’, o segundo analisando a composição ‘África’ à luz
do Génesis.
‘A
pele do diabo’, publicada em 1977 mas escrita na década anterior, constitui o
foco dos trabalhos das estudantes Patrycja Litewnicka e Lara Videira, ao passo
que o historiador e romancista Alberto Oliveira Pinto analisa com minúcia a
dimensão histórica do romance ‘Os anões e os mendigos’, considerando que ele ‘ficará
na história da literatura angolana como uma das primeiras e corajosas denúncias
do despotismo forjado, herança do discurso darwinista enselvajador, legitimador
das desigualdades sociais e humanas no continente africano, falaciosamente
projectado para um período pós-colonial e para um neocolonialismo ainda hoje
bem vivo’.
Pires
Laranjeira procede a uma leitura de conjunto da obra de Santos Lima, que reputa
‘um pioneiro e uma raridade no campo cultural e político dos países africanos
de língua portuguesa’, aproximando-o ‘dos escritores africanos que se têm
oposto aos poderes estabelecidos nos seus países, desde Mongo Beti a Chinua
Achebe, Ngugi Wa Thiong’o, Soni Labou Tansi ou Christopher Akigbo’.
Monalisa
Valente Ferreira reflecte sobre os romances mais recentes do autor, ‘As
lágrimas e o vento’ e ‘Os anões e os mendigos’, servindo este último de tema
aos três artigos finais.
Cristina
Vieira trata com demora da intertextualidade entre a narrativa e a Bíblia,
Francisco Topa discute a possibilidade de se tratar de uma obra à clef
distópica e Ana T. Rocha mostra como a desilusão e a crítica estão
simultaneamente próximas e distantes do romance de Pepetela ‘A geração da
utopia’. O volume encerra com um trabalho intitulado ‘Elementos complementares
para uma biobibliografia de Manuel dos Santos Lima’, que tenta sistematizar e
esclarecer alguns aspectos da vida e da obra do autor, incluindo também algumas
fotografias menos conhecidas. Resta-nos esperar que o livro tenha alguma receptividade
e ajude a fazer justiça a um escritor e a um homem que optou sempre pelo lado
mais difícil da vida e da história.”
Excerto biográfico
Excertos
biográficos de Manuel dos Santos Lima estão disponíveis na internet e ao longo
da semana circularam profusamente nas redes sociais. Aqui, e dada a limitação
de espaço, resta-nos dizer que ele nasceu aos 28 de Janeiro de 1935 na cidade
do Cuito, Bié, indo viver posteriormente no Luau, Moxico. Aos 12 anos foi para
Lisboa para estudar no Liceu Camões e, posteriormente, na Faculdade de Direito
(1953) da Universidade de Lisboa. Foi
residente da Casa dos Estudantes do Império (CEI), tendo colaborado na revista “Mensagem”.
Foi o primeiro oficial negro do exército português. Desertou para participar na
luta pela independência de Angola. Trabalhou, em Paris, com Mário Pinto de
Andrade, Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire na revista “Présence Africaine”.
Abandonou
o MPLA em 1963 por divergências com a liderança de Agostinho Neto. Doutorou-se
em Literatura Comparada na Universidade de Lausanne, na Suíça., com a tese
sobre a obra de Castro Soromenho (1975). Foi professor universitário no Canadá,
França e Portugal, bem como em Angola na Universidade Lusíada, de que foi reitor.
Em 1992 fundou o partido político MUDAR (Movimento de Unidade Democrática para
a Reconstrução).
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