Já foi publicada a antologia da nova poesia moçambicana - POETAS DE MOÇAMBIQUE - na nova edição da Revista Zunai, com seleção e organização de Amosse Mucavele (Movimento Kuphaluxa), nota introdutória de Ricardo Riso e poemas de Tânia Tomé, Sangare Okapi, Ruy Ligeiro, Emmy Xyx - Manuela Xavier, Manecas Cândido, Helder Faife, Dinis Muhai, Andes Chivangue, Celso Manguana, Amin Nordine e Mbate Pedro.
Segue o link para a antologia POETAS DE MOÇAMBIQUE:
http://www.revistazunai.com/poemas/index.htm
Abaixo reproduzo a introdução que que Ricardo Riso fez para a antologia.
Ricardo Riso
25 de julho de 2011.http://www.revistazunai.com/poemas/ricardo_riso_introducao.htm
Em boa hora chega para o público brasileiro esta antologia de poesia moçambicana organizada por este jovem guerreiro das letras chamado Amosse Mucavele, que esse novo canal de comunicação, a internet, e o amor pela literatura fizeram o prazer de nos apresentar.
Com pouco mais de cem anos, a poesia moçambicana pode se orgulhar de sua trajetória vigorosa escorada em nomes que se consagraram através de uma lírica contundente e crítica do triste passado colonial, tais como de Noémia de Sousa, Rui Knopfli e José Craveirinha, e mais recentemente Mia Couto, sem dúvida, um dos principais escritores do universo lusófono. Dentre tantos outros poetas que poderia citar, estes quatro são dignos representantes do consolidado sistema literário moçambicano e de reconhecimento entre os amantes da poesia em língua portuguesa.
Entretanto, a poesia moçambicana carece de maior disseminação entre nós, ainda mais quando se trata de agentes contemporâneos, pois por aqui temos apenas Paulina Chiziane, Nelson Saúte, Eduardo White e Luís Carlos Patraquim. Estes, já com alguma fortuna crítica em nossas universidades, porém restritos ao mundo acadêmico apesar dos dois primeiros possuírem títulos publicados no país. Por isso, a pertinência dos nomes selecionados por Amosse Mucavele para oferecer um panorama, ainda que breve, da poesia moçambicana contemporânea.
O leitor perceberá que um macrotema é desenvolvido com frequência pelos poetas aqui reunidos: o país, assim como as implicações do destino que tomou com a independência e de como a população absorveu irrealizações dos sonhos da revolução. Enquanto para José Craveirinha a noção de pertencimento à terra vinculava-se ao direito legítimo e incondicional da pátria livre do jugo colonial, basta lembrar o “Poema do futuro cidadão” e seus versos, “Homem qualquer/ cidadão de uma Nação que ainda não existe”, lemos em Celso Manguana o desencanto da contemporaneidade, “A nenhuma/ cidadania/ pertenço”, de um país à mercê da corrupção e da submissão ao neoliberalismo imposto pelos países desenvolvidos, situação de indignação do poeta por essa “pátria que me pariu”. O canto sofrido desse poeta revela-se na grave crise que assola famílias, “Dividida a pátria/ entre o coração/ e o estômago”, e recorre à intertextualidade ao livro de Nelson Saúte, “A pátria dividida” (1993), para demonstrar a inércia do quadro socioeconômico da nação desde o fim da guerra de desestabilização em 1992. Um país dilacerado entregue a esses jovens como demonstra Manecas Cândido: “Logo que nasci/ deram-me presentes/ de pobreza e um país/ de angústias”.
Refletir poeticamente sobre o país é recorrente na poesia moçambicana. A intertextualidade com esse macrotema vem desde Rui Knopfli e o clássico “O País dos Outros”, no final dos anos 1980 Eduardo White lança “País de Mim”, já Ruy Ligeiro publica “O País de Medo” (2003) sinalizando para as incertezas que dominam o moçambicano na atualidade. Novamente, a referência ao Velho Cravo se apresenta em Ruy Ligeiro: “volto a um país que não existe/ senão quando o habito/ entre abutres de sonhos/ que vêm enovelados/ em galerias de medo”.
Sonhos dilacerados por uma elite corrupta são mostrados pelo olhar ácido aos desvios éticos e políticos de Amin Nordine: “Um a outro os sabores desejados/ Com muitas regalias ministrados/ Banqueiros de banquete obsequiados/ Milhentas vezes da colheita graúda/ Cintilar grandes pratos arrojados;/ Melhorem o celeiro da fome aguda/ Ou vire trigo o grito nos acuda/ Em nome da plebe implorar ajuda”. Descaso e descaminhos que geram a indecisão dessa geração, Mbate Pedro desvela o seu medo diante da amargura de seus pares, “a geografia dos meus medos/ é limitada (em toda a sua extensão)/ pela angústia do meu povo”, enquanto Sangare Okapi desnuda o seu interior em conflito: “há um pequeno país/ no meu país:/ chama-se angústia”.
Entretanto, nem só de críticas ao país versam os poetas como o leitor poderá verificar em “Meu Moçambique” de Tânia Tomé. Neste, tal como em “Hino à minha terra” de José Craveirinha, a celebração ao país se apresenta e assim canta Tomé, “Eu sei Moçambique,/ no cume das árvores, na sede incontinente/ da minha falange, Rovuma ao Incomati,/ no xigubo terrestre dos pés descalços/ e em todos tambores que surdem/ das mãos coloridas nos braços em chaga”.
Concentrei-me na maneira como os poetas contemporâneos pensam poeticamente a nação moçambicana, mas outros temas e vertentes literárias são trabalhados pelos poetas desta antologia. Vale ressalta o simbolismo corrosivo repleto de metapoética e erotismo de Andes Chivangue, nome que merece maior visibilidade, assim como a maneira como Sangare Okapi e Mbate Pedro trabalham o lirismo erótico e a metapoética. Estas características também estão nos poemas de Tânia Tomé, Dinis Muhai, Manecas Cândido, para além do intimismo e das metáforas inusitadas e bem construídas de Helder Faifer e Manuela Xavier (Emmy Xyx).
Para finalizar, parabenizo a revista Zunai por esta bela iniciativa ao abrir espaço para os novos agentes deste país de poesia, tão perto e tão distante de nós, Moçambique.
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quinta-feira, 6 de outubro de 2011
terça-feira, 13 de setembro de 2011
"Sandumingu: O Nome de um Miúdo", livro de Frederico Ningi
Frederico Ningi (dir) com o escritor Gociante Patissa
Isaquiel Cori
Acabo de ler o livro de Frederico Ningi, “Sandumingu: O Nome de um Miúdo”, editado pela União dos Escritores Angolanos na colecção “Sete Egos”.
É uma narrativa de 24 páginas, que durante vários dias ficou na minha mesa de leitura à espera de uma oportunidade para ser lida. O subtítulo “O Nome de um Miúdo”, ao remeter imediatamente para a ideia de um livro para crianças, é enganador. Se nas primeiras linhas, efectivamente, o autor parece hesitar entre a narrativa infantil e a, digamos, “adulta”, tão logo envereda para um retrato desapiedado de um sujeito embriagado pelos vinhos do poder.
O que parecia, pela sugestão do título e a hesitação inicial do autor acima referida, um livro destinado primordialmente a leitores infantis, explode tão logo numa prosa satírica, de escárnio, uma pintura de tintas fortes, carregadíssimas, a respeito da vida de um novo-rico que dá precisamente pelo nome de Sandumingu.A narrativa é rápida, concisa, focada em cenas tão hilariantes que não pude deixar de, de quando em vez, largar umas boas e revitalizadoras gargalhadas.
Sandumingu não é um miúdo. É um indivíduo que se apresenta como “Sandumingu de Sandumingu”, do alto da mais pura arrogância. É um dos milhares de indivíduos que, favorecidos por uma conjuntura histórica, económica, política e social peculiares, se ergueram rapidamente do campesinato para a superestrutura do poder político, económico e empresarial.
Frederico Ningi desconstrói esse indivíduo, desnuda a sua psicologia, ridiculariza a sua arrogância e dá ao leitor um festim de riso de que poucos terão desfrutado ao ler um livro.
Retrato hilariante do novo-riquismo angolano, lá para o fim, a história desemboca num conflito entre Sandumingu e o Senhor-Figura, em que intervêm, ou são mencionadas, a chefe Rabú e a doutora Sorna…
O Autor
Frederico Ningi (n.17/02/1959) é natural de Benguela. Jornalista, artista plástico e poeta, ultimamente está muito voltado para a exploração do potencial artístico das novas tecnologias de informação e comunicação.
Membro da União dos Escritores Angolanos, é autor dos livros:
- Infindos nas Ondas (poesia) 2002.
- Títulos de Areia (poesia) 2003.
“Sandumingu, emocionado, descalçou os sapatos dos seus segredos e disse aos integrantes da sua equipe: - Eu fui nomeado e quero ser rico – e então vamos ter de arrumar e limpar o nosso caminho tirando todas as pedras do caminho. Vamos perdoar os casos perdoáveis, se casos da nossa causa forem. – Prometo trabalhar para todos, mas primeiro para mim e para os que estiverem comigo nessa caminhada, prometo dar coragem, que não tenho, posso dar a esperança, que não está em mim.” Pág. 14.
…//…
“Logo depois apareceu o próprio Sandumingu, em pessoa, para resolver as questões de tesouraria com a clínica e apresentar-se junto da equipe médica de serviço naquela noite no banco de urgência: - Eu sou Sandumingu de Sandumingu, como podem ver – e este paciente é o meu tio. Qualquer coisa, é só ligar para o meu móvel. – Por favor, não se acanhem…
- Ele é o que de quem? – perguntou o médico de serviço.
O seu assistente: - é o famoso famosíssimo Sandumingu de Sandumingu. O médico assistente: - é famoso porquê? – Na vaidade e na arrogância.” Pág 15.
terça-feira, 9 de agosto de 2011
Estou de volta, estou de saúde recuperada, obrigado!
Durante vários meses deste ano de 2011 estive doente. Em alguns momentos eu próprio temi pela minha vida. Mas nunca me senti sozinho. A minha família esteve sempre a meu lado, dando-me um conforto inestimável. A minha esposa esteve na linha da frente do apoio emocional extraordinário de que desfrutei.
Os meus filhos foram o meu acalento nos longos momentos de solidão nos vários internamentos hospitalares a que tive de me submeter. Foi bom, valeu a pena a confirmação de que posso e deverei sempre contar, incondicionalmente, com o apoio dos meus entes queridos.
Mas há outras pessoas que não sendo meus parentes tiveram uma intervenção decisiva na recuperação do meu bom estado de saúde. Sublinho aqui com particular apreço o senhor José Ribeiro, Presidente do Conselho de Administração das Edições Novembro, cujo apoio decisivo é o principal responsável pelo restabelecimento da minha saúde. O senhor Eduardo Minvu, Administrador da mesma empresa, teve igualmente, na sequência, um papel fundamental.
Em Portugal, para onde fui encaminhado, tive a prestimosa ajuda da Dra. Luísa Figueiredo, directora dos serviços de radiologia do Hospital de Santa Marta. O Dr. João Jácome de Castro, director dos serviços de endocrinologia do Hospital Militar Principal, será sempre merecedor do meu sentimento de gratidão e apreço, tal como a Dra. Maria Santana Lopes, nutricionista. Apesar de discreta, foi decisiva a intervenção do senhor Artur Queiroz.
Tal sentimento é extensivo ao Dr. Henrique Dias, ortopedista, bem como ao Dr. Carlos Morais, angiologista e cirurgião vascular.
Este meu preito de gratidão não ficaria completo se não mencionasse o Dr. Elieccer, angiologista cubano da Clínica Sagrada Esperança, em Luanda, e o enfermeiro Tintas, da mesma clínica.
Afinal, ainda existem pessoas de bom coração sobre a face da Terra. Foi bom comprovar essa verdade, que até então me parecia uma ficção.
De resto, obrigado aos internautas que nunca deixaram de visualizar este meu blog, que, reitero, é uma janela aberta para a vida em Angola e no Mundo.
quarta-feira, 20 de julho de 2011
Notas de um Verão frio em Lisboa
Isaquiel Cori | Lisboa
Ponte Vasco da Gama
Lisboa, a encantadora capital de Portugal, vive os dias de um verão atípico, com a temperatura ambiente a obrigar os forasteiros mais friorentos, sobretudo ao cair da noite e ao princípio da manhã, ao uso de roupas adequadas.
A cidade continua a atrair imensos cidadãos estrangeiros, apesar das notícias pouco animadoras a respeito da crise que afecta o país. O Rossio é a meca que todo o mundo sabe e é um deslumbre percorrê-lo todo, por entre a multidão de vozes em várias línguas, as montras apelativas das lojas e as esplanadas, quase sempre abarrotadas de clientela, dos restaurantes. A calçada, antiga mas muito bem cuidada, remete-nos imediatamente para o universo poético de Cesário Verde, que no século XIX descreveu, com uma beleza e precisão definitivas (Cristalizações), o trabalho pesado dos calceteiros lisboetas (“terrosos e grosseiros”).
Num outro lado da cidade, na parte oriental, estão jóias da modernidade como o Oceanário (considerado por muitos o melhor do mundo) e a ponte Vasco da Gama (cujo vulto enorme estende-se por toda a dimensão do olhar).
Por estes dias um fantasma percorre Lisboa e todo o Portugal. É o fantasma da crise económica que assombra os portugueses e ensombrece o Verão. A crise ainda não marca o quotidiano de modo exuberante mas já preenche os principais espaços das televisões e dos jornais. O recente anúncio do imposto extraordinário de 50 por cento sobre o subsídio de natal foi recebido pela população, de modo geral, com desagrado e ao mesmo tempo com resignação resultante da compreensão da necessidade de se consentir sacrifícios para se ultrapassar a situação.
O país, carregado de dívidas e com um défice orçamental enorme, tem de implementar, em três anos, um programa de austeridade imposto pela Troyka (União Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), com reformas estruturais que irão repercutir em todos os sectores da actividade económica e social. Prevêem-se, ao menos, dois anos de recessão e o desemprego deverá agravar-se, atingindo em 2012 os 13,2 por cento.
A grande dúvida que paira em muitos espíritos é se os sacrifícios exigidos pelo governo valerão mesmo a pena, quando é cada vez mais patente que os problemas e as soluções ultrapassam o quadro português e estendem-se a toda a zona do euro. Muitos analistas sustentam a teoria da conspiração e denunciam um ataque em toda a linha contra a moeda única europeia por forças do mercado interessadas na supremacia do dólar norte-americano. Nesse quadro, as todo-poderosas agências de notação, predominantemente americanas, com a Moodys à cabeça, são encaradas como as principais desestabilizadoras do mercado europeu. Só para lembrar, na semana passada, a sentença da Moodys, que atirou a dívida pública portuguesa à categoria de lixo, suscitou o repúdio da sociedade lusa que se uniu num sentimento geral de orgulho nacionalista. Aliás, a dita sentença da Moodys teve o condão de levantar, a nível europeu, todo um coro de solidariedade para com Portugal e aumentar a percepção geral a respeito do poder nefasto de tais agências.
Se o futuro próximo e distante de Portugal é mais do que complicado, hoje por hoje a vida em Lisboa segue o seu curso normal. As férias de verão levam muita gente às praias e os festivais musicais que se vão sucedendo reúnem multidões sedentas de diversão. Mas as pessoas sabem o que se passa e o que as espera nos próximos tempos, não fossem os cidadãos portugueses indivíduos muito bem informados. Os telejornais e os debates televisivos são acompanhados atentamente até nos restaurantes e os jornais, segundo estatísticas recentes, são cada vez mais procurados.
No verão os jornais adoptam estratégias diversas para aumentar as vendas. Só para citar um exemplo, o Diário de Notícias está a oferecer gratuitamente com as suas edições das segundas-feiras, quartas e sábados livros de bolso, com pouco mais de meia centena de páginas, que reúnem contos de autores universais. É uma verdadeira delícia reencontrar assim textos de mestres como Edgar Allan Poe, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Guy de Maupassant, e outros.
Raramente a imprensa consegue alcançar tamanha expressão de serviço público!
(Texto publicado na edição de 17/07/2011 do Jornal de Angola)
domingo, 2 de janeiro de 2011
Kandengues ontem, kotas hoje
Isaquiel Cori
Profundamente envolvidos na aventura de viver, cabisbaixos no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido pelos minutos e horas dos dias, nos transforma. Mas há dias em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.
Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de um dia de trabalho tão esgotante e entediante como os outros, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem, está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.
Foi como se tivesse apanhado um soco no peito. “Kota eu, desde quando?”, exclamei, quase cambaleando.
Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um profundo olhar sobre a minha vida. “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”
Lutando pela vida, a vida transcorrera sobre mim e eu não me apercebera do tempo que me corróia. Independentemente da minha vontade, a vida e com ela o tempo chamavam-me à responsabilidade.
“Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, assumindo então a minha condição de “kota da banda”.
O meu aldrabão favorito
Isaquiel Cori
Os aldrabões assumidos, confirmados e reconfirmados nos seus atributos, são figuras muito nossas conhecidas. Eles pululam em nosso redor.
Há os que se apresentam puros, inconfundíveis, até mesmo perfeccionistas: neles, o aldrabar já é um modo de vida. São, digamos assim, artistas da aldrabice.
Mas entendamo-nos: aqui, estamos a falar dos bons aldrabões, dos indivíduos em todo o caso honestos na sua desonestidade, e coerentes, porque sistemática e repetidamente incoerentes.
É fácil identificá-los nas suas falas versáteis e fluentes e nos gestos largos com que dão mais força às suas estórias engenhosas.
São aldrabões porque é assim que vivem e alimentam o seu ego. Mas porque já sobejamente conhecidos raramente provocam danos. Suscitam o riso, tiram-nos do sério e contribuem imensamente para o nosso bem-estar.
Alguns foram tão marcantes na nossa infância que as suas estórias continuam a povoar-nos o imaginário e eles próprios a habitar a nossa memória.
Há uma geração de ex-crianças do Kassequel do Buraco e do Kassequel do Lourenço, bem como da Calemba, do tempo em que os bairros, mais do que um conjunto de casas eram um sentimento incrustado no coração das pessoas, que conheceu muito bem o Mano Azevedo. Ele narrava-nos histórias incríveis, grosseiramente mentirosas e falsas, de tal modo que, trinta e tal anos depois, essa figura ergue-se na lembrança dos hoje adultos como a consumação da aldrabice e da mentira.
Mas trinta e tal anos atrás ele fora o portador do fantástico e do inverosímil para um pelotão de crianças ávidas do maravilhoso. As suas estórias convocavam e apelavam ao sonho, dinamitavam as frágeis, falsas e arbitrárias fronteiras da nossa realidade.
Até hoje, o Mano Azevedo é o meu aldrabão favorito.
Jornalismo Angolano Hoje
Da importância dos prémios aos profissionais
Isaquiel Cori
Isaquiel Cori
Os prémios, seja em que actividade for, constituem sempre um importante elemento de estímulo à criatividade e inovação e uma forma de conferir alguma transcendência àquilo que se faz todos os dias.
Em algumas profissões um dos principais inimigos da eficiência contínua é o tédio, que resulta de se estar a fazer todos os dias a mesma coisa.
Daí que, pessoalmente, saúdo todos os prémios que visam incentivar os profissionais de uma determinada área ou a estimular e encorajar o acesso de novatos a essas áreas. Aliás, é minha opinião que os prémios deviam multiplicar-se, em todas as áreas, sejam profissionais, artísticas, desportivas, académicas ou culturais.
Enquanto profissional do jornalismo, tenho acompanhado o frenesim que se estabelece na classe quando se aproxima a data do anúncio dos vencedores dos concursos, sejam provinciais ou nacionais. Há como que um despertar da consciência de que se deve trabalhar mais e melhor para se ser considerado candidato ao galardão máximo. Ora, aí, como se diz vulgarmente, já é tarde e má hora.
Sendo anuais, os prémios precisam de ser abordados, pelo profissional interessado, com um projecto estratégico de trabalho coerente, cuja concretização se estenda ao longo de grande parte do ano. Isto porque a maioria dos júris tende a considerar mais os candidatos que se tenham revelado não só com qualidade mas também com bastante regularidade.
Independentemente da agenda de iniciativa das respectivas empresas, os jornalistas devem estabelecer uma agenda de trabalho pessoal, que deverão naturalmente submeter à direcção do órgão a que pertençam, garantindo assim a sua exequibilidade material e operacional.
O género mais susceptível a premiação é a reportagem, dado o seu maior impacto, resultante do facto de poder captar de forma mais completa e humanamente interessante os vários recortes da vida e de exigir do jornalista não só um grande domínio da narrativa jornalística mas também um olhar incisivo e acutilante sobre aquilo que constitui o objecto da reportagem. Os outros géneros, naturalmente, também são de considerar.
No fim de tudo, quando se anunciam os vencedores, caso não tenha sido um deles, o profissional não deve esmorecer: a sua postura pró-activa em torno de um trabalho continuado no tempo, certamente, terá contribuído para a elevação da sua reputação profissional.
Os prémios são, assim, também, um pretexto para se fazer algo que se eleve para lá da rotina do quotidiano. Daí que, efectivamente, deviam multiplicar-se, inclusive no âmbito interno das redacções. A competição profissional, saudável e leal, devia ser incrementada, de forma transparente, com a concessão de estímulos que tanto poderiam ser financeiros, materiais e até mesmo simbólicos.
Todos, certamente, sairiam a ganhar.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
PREFÁCIO A UMA ANTOLOGIA DO CONTO ANGOLANO
Publico aqui o prefácio a Antologia do Conto Angolano, ainda no prelo, a ser editada pela editora portuguesa Caminho, de autoria de Zetho Cunha Gonçalves e João Melo. O prefácio faz um apanhado panorâmico da literatura angolana contemporânea e situa a obra dos autores antologiados. É um bom exemplo de como uma antologia literária deve ser feita: isto é, deve fazer-se acompanhar de um texto que situe os autores e sua obra no contexto mais geral do sistema literário, justificando, de certo modo, a razão de terem sido eles os escolhidos. Este texto foi tomado do site Buala: Cultura Contemporânea Africana (www.buala.org/pt/a-ler/prefacio-a-uma-antologia-do-conto-angolano). As ilustrações são reproduções de obras do artista plástico angolano Marco Kabenda, igualmente tomadas do mesmo site.
Na origem e na formação das literaturas nacionais dos países africanos de língua oficial portuguesa, com as peculiaridades e motivações inerentes a cada país – diferindo mais que tudo os países continentais (Angola e Moçambique) dos países insulares (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – ilhas desabitadas aquando do seu achamento, e países bilingues, com os seus crioulos a par da língua oficial portuguesa) –, sempre a poesia teve a primazia na afirmação nacionalista (ou de identidade nacional, conforme se queira) sobre a prosa de ficção. E a razão encontra-se no facto de que, só a partir dos anos 30 do século XX, a prosa narrativa de ficção se começou a consolidar com inequívoca qualidade estética, numa perfeita ruptura com as literaturas coloniais.
Em Angola (cuja literatura escrita remonta a 1849, com a publicação, em Luanda, do primeiro livro impresso na África subsariana, Espontaneidades da Minha Alma. Às Senhoras Africanas, poemas do angolano José da Silva Maia Ferreira, ou antes ainda, com os escritos de António de Oliveira Cadornega no século XVII), é com Óscar Ribas e Castro Soromenho que se fecunda, nasce e impõe a moderna prosa de ficção narrativa.
Óscar Ribas, que viria a tornar-se um dos mais importantes e fecundos etnólogos e etnógrafos angolanos, reconhecido e galardoado internacionalmente por esse seu trabalho, publica, em 1927 (aos 18 anos de idade), na sua Luanda natal, a novela Nuvens que passam. Dois anos depois, dá à estampa O resgate de uma falta, outra novela.
São obras de juvenília, é certo – mas nelas está já o gérmen angolense e etnográfico que balizará toda a obra ficcional do autor, com todos os defeitos e todas as qualidades que tal opção estética comportará. Não raro, a sua obra narrativa de ficção se torna excessivamente explicativa, nela se encontrando ausente todo o poder sugestivo que a estrutura literária e a consumação estética exigem, com o etnógrafo sobrepondo-se quase sempre ao ficcionista.
Partindo dos contos, das lendas, dos ritos e das cosmogonias dos povos da Lunda, no Nordeste de Angola (que tão bem conheceu, e com quem intimamente conviveu na infância, em parte da adolescência, e já na idade adulta), Castro Soromenho, ao publicar, em 1938, o livro de contos Nhári. O drama da gente negra, reabilita e dignifica a memória cultural desses povos ágrafos ao lhes dar “voz” – ou melhor: restituir “a voz” –, na voz mais alta (ou assim cotada nos cânones do Ocidente), que é a “voz da escrita”.
Ao transpor, impiedosamente, para a sua escrita (que é a sua voz autoral), toda a tradição e memória culturais desses povos (em confronto com a ideologia colonial dominante), Castro Soromenho consolida, pela epopeia que nessa mesma obra se consuma – sempre em crescendo, até à derradeira e magnificente “Trilogia de Camaxilo”, com os romances Terra Morta (1949), Viragem (1957) e A Chaga (1970) – a modernidade da literatura ficcional angolana.
A década de 50 do século XX, na sequência do movimento «Vamos descobrir Angola!» (1948) e do «Movimento dos Novos Intelectuais de Angola» – através da sua revista Mensagem (1951-1952), logo seguida por Cultura II (1957-1961) – e da importantíssima actividade editorial da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, e, subsequentemente, a actividade das Publicações Imbondeiro, em Sá da Bandeira (actual Lubango), da responsabilidade de Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, e dos Cadernos Capricórnio, no Lobito, dirigidos por Orlando de Albuquerque, trouxeram novas perspectivas à criação e divulgação da emergente literatura angolana.
Agostinho Neto e António Jacinto, dois dos mais importantes intelectuais ligados ao movimento de Mensagem, deixaram na poesia a sua marca indelével na literatura angolana. Porém, ambos produziram ficção breve – estórias ou contos (ainda que obra reduzida, em volume quantitativo) –, na prossecução dos propósitos nacionalistas que norteavam a geração de Mensagem. A inclusão dos seus contos nesta antologia, mais que só uma homenagem, é, também, um acto de justiça, que a sua qualidade estética plenamente justifica.
Uanhenga Xitu – que poderia muito bem ter pertencido à geração da revista Mensagem ou de Cultura II –, por razões políticas (foi preso político e esteve no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde – onde escreveu grande parte da sua obra –, de 1962 a 1970), só em 1974 se revela como escritor, trazendo para a literatura angolana as “vozes da sanzala”, a oratura do interior, em sua polifonia linguística, carregada do humor inerente às situações simultaneamente trágicas e cómicas – bem patentes no conto aqui reproduzido, Bola com feitiço –, o que o torna, no dizer de Salvato Trigo, “inequivocamente um dos maiores ‘africanizadores’ da literatura angolana”.1
Henrique Abranches (que integrou o grupo de colaboradores de Cultura II), é autor de uma vasta obra literária e plástica, que vai do ensaio histórico e antropológico, à poesia e ao teatro, e do conto ao romance, passando pela ficção científica e pela banda desenhada. Alimentada por múltiplos interesses e inquietações, a obra ficcional de Henrique Abranches tem na História do próprio país e no resgate da literatura da tradição oral (pela reelaboração estética do maravilhoso e do fantástico, tornando não raro a escrita numa espécie de segunda voz da oratura), a sua marca e a sua vitalidade mais constantes.
Mário António, que publicara na revista Mensagem (a cuja geração pertence) o seu primeiro conto, construirá a sua obra ficcional reelaborando alguns contos da tradição oral angolana (“Histórias tradicionais recontadas livremente”, assim as designa o autor), como é o caso do conto aqui seleccionado, O homem que queria casar-se com a filha do Sol e da Lua, com todo o seu imaginário mítico, o seu poder encantatório e mágico, à semelhança e sob a nítida influência de Castro Soromenho. Outra temática (e esta afim de muita da sua poesia) é a questão da mestiçagem física e cultural na sociedade crioula de Luanda, de que se destacam os contos e novelas de Crónica da cidade estranha.
Arnaldo Santos e José Luandino Vieira pertencem à geração de Cultura, sucedânea da geração de Mensagem. São gerações altamente politizadas e politizantes, que utilizam a literatura como forma de denúncia, não raro panfletária, dos desmandos do colonialismo, e a colocam na vanguarda da formação e consciencialização da identidade nacional. E tanto assim é, que muitos dos intelectuais que as enformaram se tornaram dirigentes dos movimentos de libertação (sobretudo do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola), passando pelas masmorras da polícia política salazarista, como foi o caso de Agostinho Neto, António Jacinto, Henrique Guerra, Luandino Vieira e Uanhenga Xitu, para citar apenas o nome de autores aqui representados.
Deve-se à geração de Cultura II, essencialmente formada por poetas, e sob os auspícios de Castro Soromenho e à influência da literatura brasileira, através de escritores e poetas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima (João Guimarães Rosa chegará depois, fulminante), “o projecto de criação de uma ficção angolana.” “Sobretudo através do conto.”, sendo esses mesmos autores “reunidos depois na antologia Contistas angolanos, 1960, da Casa dos Estudantes do Império, e, mais tarde, uns tantos nas antologias da Imbondeiro.”2
A cidade de Luanda, a cidade histórica e a cidade mítica, bem como os seus musseques, são o cenário comum a Arnaldo Santos e Luandino, do mesmo modo que a infância (A Cidade e a infância é, aliás, o título do primeiro livro de Luandino) é a vitalidade, a voz polífona, a crueldade, a cumplicidade e a transgressão, e se torna ela mesma personagem na tessitura das próprias narrativas, avivando a denúncia das contradições sociais e raciais na sociedade colonial.
Arnaldo Santos tem vindo a construir, desde 1960 (quando publicou o seu primeiro conto e o seu primeiro livro de poemas, Fuga), uma obra onde a memória e a poesia, a história recente do país e as transformações sociais nela implícitas, se aliam numa afirmação plena de valorização e enriquecimento da literatura angolana, de que A Boneca de Quilengues, uma das suas ficções mais recentes, é perfeito exemplo.
José Luandino Vieira, porventura o mais conhecido e traduzido escritor angolano contemporâneo – escritor na linha directa de João Guimarães Rosa –, é autor fundacional de uma língua e de uma estilística, de uma estética caldeada por as mais variadas contribuições culturais e linguísticas, trazendo, pela escrita, à modernidade da ficção narrativa, uma oralidade radicalmente nova, encantatória e fulgurante de poesia. E é justamente essa força capaz de reinventar a língua portuguesa, revificando-a pela transgressão e violentação da sua convencionalidade estéril, que faz de José Luandino Vieira um dos vultos maiores da nossa contemporaneidade literária, assinando algumas obras-primas, como as estórias de No antigamente, na vida e Macandumba, ou os romances Nós, os do Makulusu e João Vêncio: os seus amores.
No resgate da literatura da tradição oral, e numa atenção crítica aos desmandos do quotidiano seu contemporâneo, também Dario de Melo (cuja obra na área da literatura infanto-juvenil é de capital importância) e Henrique Guerra se têm vivamente empenhado, construindo cada um, com sua voz própria e pessoalíssima cosmovisão interventiva, uma obra onde as palavras são para ser lidas como se fossem cantadas. Com muito gesto, conforme a tradição, e sempre acompanhadas pelo bater compassado e encantado das palmas.
Jofre Rocha, o poeta cujo canto é nascido da muita e de todas as sedes de contar, tem na mesma génese a construção e elaboração das suas estórias sobre as gentes humildes dos musseques luandenses. Não por acaso se chama “Estórias do musseque” o seu primeiro livro de ficção, burilado numa escrita onde a atenção ao coloquial padrão se transforma numa pessoalíssima e vigorosa angolanização da língua portuguesa.
Ruy Duarte de Carvalho entra na literatura angolana, em 1972, com a publicação de Chão de oferta, pela poesia – e pela porta mais alta: a de uma voz de catarse, “De uma nação de corpos transumantes/confundidos/na cor da crosta acúlea/de um negro chão elaborado em brasa.”3E voz, desvairadamente pessoal, telúrica. Voz de cisão, transmudante e transumante, inaugural. E é, na sequência da publicação de A decisão da idade (reunião da sua Obra Poética até então, em 1977), que Ruy Duarte de Carvalho dá à estampa Como se o mundo não tivesse leste – estórias do sul e seca, a sua primeira obra de ficção.
São estórias – e é a essas estórias que se vão buscar As águas do Capembáua, a estória que aqui se dá a ler, antologizada. Telúrica, e sábia de transumância: outros universos, enfim, na prosa de ficção angolana, de voz eivada e levada do deserto, lá do Namibe, no Sul do país, por Ruy Duarte de Carvalho, dono e senhor de uma das obras mais sólidas e avassaladoras da leitura antropológica da Terra e da humanidade sua habitante, vivente e sobrevivente, cujo corolário é a imensidão desse fresco enformado por Vou lá visitar pastores (1999), As paisagens propícias (2005), Desmedida: Luanda-São Paulo-São Francisco e volta. Crónicas do Brasil (2006) e A terceira metade (2009) – tetralogia dos mapas secretos da Terra, trânsfugas e comunicantes, coniventes – e a sua voz inteira. Em viagem, em atenção e registo lapidar e soberano – epopeia, em seu canto maior.
Pepetela (essencialmente romancista, não obstante a sua obra contar com um livro de contos e algumas peças de teatro) vem elaborando na literatura angolana de ficção uma espécie de epopeia fragmentada e em socalcos, quer pelos motivos que se propõe tratar, quer pelos tempos em que as acções decorrem. A obra de Pepetela revela um levantamento sociológico ímpar, de Angola e da angolanidade, narrado ao leitor com a mestria e a sageza de um contador de estórias a voz plena.
Manuel Rui, cujo primeiro livro de contos, Regresso adiado (1973), reflectindo o exílio e a dicotomia África/Europa, e, de onde é retirado o conto dado à estampa nesta antologia – inquestionavelmente um dos seus contos mais emblemáticos, quer pela temática [a humilhação ou a alienação do homem angolano durante o colonialismo, e onde a figura do mulato – Mulato de sangue azul – é uma metáfora contundente da sociedade colonial angolana, com todas as suas contradições de sangue, de raça e de classe social, pois se “Os brancos adiantam que mulato é filho de uma nota de vinte paus (nota de vinte escudos, ou seja, o preço de uma relação sexual de um branco com uma prostituta negra); os pretos, sempre que um mulato arreganha, cospem que mulato não tem terra.”], quer pelo seu alto nível de realização estética –, tem vindo a afirmar-se, com uma obra vasta e multifacetada, trabalhando o coloquial padrão das ruas de Luanda e seu natural “reinventar” da língua portuguesa, o seu absurdo quotidiano, o seu humor, a sua ironia fulminante, como uma das vozes mais estimulantes do panorama literário angolano, de que é justo salientar as novelas Quem me dera ser onda e De um comba.
Fragata de Morais constrói as suas narrativas mesclando a tradição da oralidade com as situações absurdas e hilariantes do quotidiano (sobretudo luandense), numa escrita quase de oratura, eivada de humor e espantada leveza, a que a crítica social sempre “ajindunga” e dá à estória a imagem mais fiel da impressão digital do seu autor.
Jacques Arlindo dos Santos é outro caso de “maquinar” humor nas estórias que nos inventa, onde a alegoria se nos apresenta como um dos seus recursos estilísticos mais constantes. Mas o que Jacques Arlindo dos Santos melhor faz na sua obra ficcional, é “a história das mentalidades, sem tirar nem pôr. Acredite quem quiser.”, disse, um dia, João Melo, para logo acrescentar: “Não faltam, até, as trepidantes aventuras sexuais.”
Boaventura Cardoso traz para a escrita um experimentalismo linguístico, numa “redescoberta de Angola”, pela sua linguagem e onirismo dela decorrente. Isso mesmo (e de modo mais explícito) nos diz o próprio autor:
Sem pretendermos influenciar a apreciação do leitor sobre o nosso processo de escrita, gostaríamos, no entanto, de frisar a linguagem gramaticalmente angolanizada, a sintaxe reinventada para surtir ritmos sincopados dos falares africanos, o recurso a linhas curvilíneas dos fios da história e a constante repetição de frases, o que é uma das componentes de fundo da narrativa afro-banto.4
E essa “envolvência da linguagem banto do maravilhoso e fantástico”5no seu discurso ficcional é um dos encantamentos, nem sempre fáceis, da sua obra literária.
José Mena Abrantes é um nome que se tem distinguido essencialmente no domínio da escrita para teatro, ou sobre o teatro – para além de ser, também, fundador ou co-fundador, e encenador, de vários e importantes grupos no panorama nacional, como é o caso do “Elinga Teatro”, formado nos anos de 1980. A sua obra, quer como dramaturgo, quer como ficcionista, alimenta-se da matéria temática da História do país (inclusive da História recente, com as inevitáveis sequelas da longa e terrível guerra civil e seus protagonistas – com toda a violência, terror, inumanidade e perfídia) em consonância com as literaturas orais, de cujo poder ancestral José Mena Abrantes recolhe e remaneja o sentido transcendente que torna a esperança possível – e a Vida, para quem já praticamente não existe, uma espécie de “vingadora do Além”.
O que primeiro ressalta na obra de Fernando Fonseca Santos é a força telúrica e o encantamento poético da sua escrita. Recorrendo a lendas e mitos fundadores da tradição oral, sobretudo dos povos do centro e Sul de Angola, Fernando Fonseca Santos caldeia o maravilhoso e o fantástico dessa memória ancestral, tanta vez visionária, com a História do país, quer a mais recente (em que a presença da tragédia da guerra civil tem papel preponderante), quer a História mais recuada, onde a afirmação nacionalista se rescreve, reflectindo o autor “a necessidade da literatura e da cultura angolanas recuperarem e readaptarem a herança das culturas orais das suas várias comunidades.”6
Paula Tavares, indiscutivelmente um dos nomes a reter no panorama da poesia moderna angolana, rememorando e resgatando tradições ancestrais e seus ritos; incorporando adágios e provérbios na sua obra (quer poética quer narrativa), traz com a narrativa Cartas de Noéji e Ana Joaquina, uma visão da História de Angola mais recuada, a do grande Império da Lunda. A obra de Paula Tavares, construída a partir de um atentíssimo olhar feminino, é uma obra profundamente religiosa – não tanto pelo seu quase constante diálogo com os temas bíblicos, mas no sentido mais fundo de religação das “coisas” do Mundo: a Terra e o erotismo dos corpos sobre ela; a sensualidade dos cheiros, desde a infância remota; os frutos cantados como quem os possui e saboreia, amante. Não raro, em Paula Tavares, a prosa (crónica ou conto) é proesia, prosema, Poema.
João Melo, contista revelado em 1999 com Imitação de Sartre e de Simone de Beauvoir, traz para a ribalta literária, numa linguagem surpreendente de humor e sarcasmo, o “desbundante” quotidiano angolano dos nossos dias, através de uma escrita que revela um ficcionista com arguto senso de observação, capaz de flagrar como poucos os descompassos da cena urbana luandense e situá-los sob as lentes de uma ácida ironia. Sob esse particular, pode-se verificar que os contos do autor não raro retomam algumas personagens caras à prosa angolana contemporânea como as crianças marginalizadas, por exemplo, mas sem qualquer piedade, com uma linguagem crua que ilumina essas criaturas sob uma nova perspectiva.7
Em João Melo, para além da mestria iconoclasta na construção narrativa do contar e fazer (en)cantar das suas estórias, é de realçar, ainda, a atenção e o espaço que a temática da mulher e/ou da condição feminina detêm na sua obra.
José Luís Mendonça, poeta sobejamente conhecido e autor de uma das obras mais consistentes da poesia angolana contemporânea, é aqui revelado como contista, numa estória onde o maravilhoso e o fantástico são as traves mestras de que a narrativa se constrói e sustenta, num diálogo sereno da modernidade literária com a voz da tradição e da ancestralidade mítica e fundacional.
João Tala é outro poeta que, à semelhança de José Luís Mendonça, encontrou na estória e no seu contar uma outra forma de comunicabilidade e continuidade do fazer poético. Uma inventividade e uma frescura discursivas, onde a “surrealidade” do quotidiano e a herança literária advinda do movimento surrealista se dão as mãos, fazem de João Tala uma outra voz firme no panorama da nova (ou mais recente) produção ficcional angolana.
Luís Kandjimbo, cuja obra ensaística sobre a literatura angolana se tornou já um marco fundamental nas nossas letras, é outro poeta a quem também só o poema não basta como forma de expressão e criação literária, trazendo para as suas estórias a memória cosmopolita em confronto com os múltiplos quotidianos urbanos, com particular enfoque para a sua antiga e sempre jovem cidade de Benguela.
Tal como José Luís Mendonça, também o autor destas linhas se revela aqui como contista.
José Eduardo Agualusa é um mistificador impenitente – quero eu dizer: um ficcionista nato, um contador d’estórias de voz bem colocada e mão cheia, na escrita. E a escrita de José Eduardo Agualusa é uma escrita “viandante”: uma prosa de trazer o mar todo a uma praia única e como que transumante e transcontinental (de Angola, Áfricas, Europas, Brasil), numa proposta de aproximação e encontro, de doação e partilha, de inquirição e festa, de revelação e magia. As narrativas de José Eduardo Agualusa – da crónica ao romance, passando pelo conto –, fluem entre a História mais recente do país (num olhar não isento de humor e rebeldia), e o “maravilhoso” da literatura fantástica ou do realismo mágico, na linha de um Juan Rulfo, de um García Márquez ou de um Jorge Luis Borges.
A obra de José Eduardo Agualusa, iniciada com o romance histórico A Conjura, em 1989, é uma das obras mais límpidas, mais seguras e consistentes, no universo da ficção contemporânea de língua portuguesa.
Luís Fernando, para quem a crítica social produzida através do trabalho estético sobre a História e o quotidiano mais recentes é uma das suas imagens de marca mais consistentes, ao falar dos propósitos e característicos da sua obra, afirma que a elaboração da mesma é “unicamente para proporcionar humor, coragem, optimismo e alegria ao leitor”, porque “a vida é um caleidoscópio de emoções onde a componente riso e boa disposição deve estar presente.”8
Carmo Neto, não obstante a sua ainda parca obra publicada, é outro espantoso cronista de costumes, através da criação de personagens e situações buscadas nos quotidianos luandense e malanjino, socorrendo-se de uma estrutura narrativa que Osvaldo Silva9 assim descreve:
As intrigas [na obra de Carmo Neto] são caracterizadas por episódios de viés picaresco, burlesco e até paródico, tendo nas personagens, e na rede de relações que essas constituem, o centro simbólico da crítica dos valores, discursos e ações que enformam o universo perverso das novas ordens sociais e políticas. De tal sorte que o aparente carácter fragmentário da obra é degenerado pela noção de afinidade subjacente ao estatuto semântico e temático conferido às personagens, numa elaboração temporal que justifica o recurso às memórias do presente e do passado.
Ismael Mateus traz para a sua obra o centro dos furacões do poder, onde acção governativa, intriga política e seus actores se expõem numa trama narrativa consistente, sustentada por uma prosa desembaraçada, sem excessos descritivos, e onde a acção se sobrepõe à tentação fácil de divagar por explicações e justificações que certamente assassinariam todo o prazer jubiloso da fruição plena do texto.
A prosa de Marta Santos é uma prosa carregada de poesia, de sensualidade, não raro de um humor desconcertante, mas sempre com um profundo respeito pela sabedoria que os mais-velhos transmitem aos mais novos, e que é um dos valores fundamentais da cultura angolana da tradição oral.
A presença da personagem do mais-velho em contraponto com a personagem da criança é um dos característicos da obra de Marta Santos, também ela autora de literatura infanto-juvenil, na qual recupera a tradição da contação de estórias ao luar, em roda de uma fogueira, numa transmissão de memórias e ensinamentos ancestrais pela voz sábia dos mais-velhos aos mais novos e às crianças.
Roderick Nehone traz para a prosa angolana a tragédia e a comédia (as duas faces da moeda) do quotidiano, o seu lado absurdo e caricato, ou o seu lado fantástico e maravilhoso. A escrita move-se numa prosa límpida, trabalhada, aparentemente simples na sua construção e funcionalidade narrativas.
A obra de Roderick Nehone revela uma leitura atentíssima dos paradigmas da sociedade angolana contemporânea, onde a condição da mulher, sobretudo no período do pós-guerra, assume um papel de extrema relevância. Tal como o humor trasbordante, que é por certo um dos maiores encantamentos desta prosa.
Sónia Gomes trabalha na sua obra uma temática obsessiva e rara no panorama da literatura angolana: a maternidade, a saúde pública e o flagelo do HIV/SIDA. Profissional de saúde, Sónia Gomes parte da experiência do seu dia a dia como enfermeira para dar ao leitor uma obra inquietante e poderosa, não raro de pendor moralista, e como que um despertar de consciências no vertiginoso redemoinho de transformações e desigualdades sociais em que a sociedade angola se move.
Isaquiel Cori é outro autor de parca obra publicada, que tem na História recente de Angola o húmus da sua criação literária. E nela, o que sobremaneira ressalta, é a vivência e a construção das suas personagens, arrancadas em carne viva aos dramas e às tragédias vividos ao longo da guerra civil que durante anos devastou o país. A obra ficcional (ainda breve) de Isaquiel Cori, a par do seu trabalho como jornalista, trazem à literatura angolana mais uma voz na afirmação da sua pujança e multiplicidade.
Profundamente influenciado pela obra de José Luandino Vieira, de Mia Couto e do poeta brasileiro Manoel de Barros – cujo cordão umbilical é o seu catapultar festivo e trangiverso para a escrita –, “Ondjaki é”, segundo Pepetela, no texto que escreveu para a orelha de E se amanhã o medo (Editorial Caminho, Lisboa, 2005), “um jovem que escreve uma ficção viçosa e jovem. (…) Esperemos que saiba sempre aliar o estudo e a pesquisa com o sentimento de prazer, que fornece a frescura e a alegria a um texto.”
De literatura emergente e de combate, a literatura angolana de ficção é hoje uma literatura com uma pujança e uma modernidade que a edição, a crítica, os estudos universitários e a fortuna de leitores têm vindo a solidificar e a confirmar. Jovem, é certo, se comparada com outras – mas literatura com estórias para contar. Estórias vivas – e muitas! –, cheias de gente dentro – com seus dramas, suas alegrias, seus casos e magias, seu(s) humor(es). Esse é o segredo, a sedução da moderna ficção angolana: ter estórias para contar, encantar, e enfeitiçar – em suas afinidades e ressonâncias, seu rosto e voz (polífona e polígrafa) voltados para o Mundo.
Antologia do Conto Angolano. Em colaboração com João Melo. Alfragide: Editorial Caminho, no prelo.
1. 1. TRIGO, Salvato. Uanhenga Xitu. Da oratura à literatura. Cadernos de Literatura, 12, 1982.
2. 2. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa 2. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, vol. 7, 2.ª ed., 1986, pp. 54 e 55.
3. 3. CARVALHO, Ruy Duarte de. A decisão da idade. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 3.ª ed., 1977, p. 13.
4. 4. CARDOSO, Boaventura. A escrita literária de um contador africano. In: Cavalcante Padilha, Laura e Calafate Ribeiro, Margarida (Org.). Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p.18.
5. 5. Ibid.
6. 6. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 123.
7. 7. MACEDO, Tânia. Posfácio. A poesia, retrato sem molduras. In: Melo, João. Auto-retrato. Lisboa: Editorial Caminho, 2007, pp. 73 e 74.
8. 8. FERNANDO, Luís. In: www.portalangop.co.ao, 6 de Março de 2010.
9. 9. SILVA, Osvaldo. Degravata: entre ter, aparecer e ser. Revista Crioula − Revista Eletrônica dos Alunos de Pós-Graduação, n.º 5. DLCV-FFLC-USP, Maio 2009.
Na origem e na formação das literaturas nacionais dos países africanos de língua oficial portuguesa, com as peculiaridades e motivações inerentes a cada país – diferindo mais que tudo os países continentais (Angola e Moçambique) dos países insulares (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – ilhas desabitadas aquando do seu achamento, e países bilingues, com os seus crioulos a par da língua oficial portuguesa) –, sempre a poesia teve a primazia na afirmação nacionalista (ou de identidade nacional, conforme se queira) sobre a prosa de ficção. E a razão encontra-se no facto de que, só a partir dos anos 30 do século XX, a prosa narrativa de ficção se começou a consolidar com inequívoca qualidade estética, numa perfeita ruptura com as literaturas coloniais.
Em Angola (cuja literatura escrita remonta a 1849, com a publicação, em Luanda, do primeiro livro impresso na África subsariana, Espontaneidades da Minha Alma. Às Senhoras Africanas, poemas do angolano José da Silva Maia Ferreira, ou antes ainda, com os escritos de António de Oliveira Cadornega no século XVII), é com Óscar Ribas e Castro Soromenho que se fecunda, nasce e impõe a moderna prosa de ficção narrativa.
Óscar Ribas, que viria a tornar-se um dos mais importantes e fecundos etnólogos e etnógrafos angolanos, reconhecido e galardoado internacionalmente por esse seu trabalho, publica, em 1927 (aos 18 anos de idade), na sua Luanda natal, a novela Nuvens que passam. Dois anos depois, dá à estampa O resgate de uma falta, outra novela.
São obras de juvenília, é certo – mas nelas está já o gérmen angolense e etnográfico que balizará toda a obra ficcional do autor, com todos os defeitos e todas as qualidades que tal opção estética comportará. Não raro, a sua obra narrativa de ficção se torna excessivamente explicativa, nela se encontrando ausente todo o poder sugestivo que a estrutura literária e a consumação estética exigem, com o etnógrafo sobrepondo-se quase sempre ao ficcionista.
Partindo dos contos, das lendas, dos ritos e das cosmogonias dos povos da Lunda, no Nordeste de Angola (que tão bem conheceu, e com quem intimamente conviveu na infância, em parte da adolescência, e já na idade adulta), Castro Soromenho, ao publicar, em 1938, o livro de contos Nhári. O drama da gente negra, reabilita e dignifica a memória cultural desses povos ágrafos ao lhes dar “voz” – ou melhor: restituir “a voz” –, na voz mais alta (ou assim cotada nos cânones do Ocidente), que é a “voz da escrita”.
Ao transpor, impiedosamente, para a sua escrita (que é a sua voz autoral), toda a tradição e memória culturais desses povos (em confronto com a ideologia colonial dominante), Castro Soromenho consolida, pela epopeia que nessa mesma obra se consuma – sempre em crescendo, até à derradeira e magnificente “Trilogia de Camaxilo”, com os romances Terra Morta (1949), Viragem (1957) e A Chaga (1970) – a modernidade da literatura ficcional angolana.
A década de 50 do século XX, na sequência do movimento «Vamos descobrir Angola!» (1948) e do «Movimento dos Novos Intelectuais de Angola» – através da sua revista Mensagem (1951-1952), logo seguida por Cultura II (1957-1961) – e da importantíssima actividade editorial da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, e, subsequentemente, a actividade das Publicações Imbondeiro, em Sá da Bandeira (actual Lubango), da responsabilidade de Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, e dos Cadernos Capricórnio, no Lobito, dirigidos por Orlando de Albuquerque, trouxeram novas perspectivas à criação e divulgação da emergente literatura angolana.
Agostinho Neto e António Jacinto, dois dos mais importantes intelectuais ligados ao movimento de Mensagem, deixaram na poesia a sua marca indelével na literatura angolana. Porém, ambos produziram ficção breve – estórias ou contos (ainda que obra reduzida, em volume quantitativo) –, na prossecução dos propósitos nacionalistas que norteavam a geração de Mensagem. A inclusão dos seus contos nesta antologia, mais que só uma homenagem, é, também, um acto de justiça, que a sua qualidade estética plenamente justifica.
Uanhenga Xitu – que poderia muito bem ter pertencido à geração da revista Mensagem ou de Cultura II –, por razões políticas (foi preso político e esteve no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde – onde escreveu grande parte da sua obra –, de 1962 a 1970), só em 1974 se revela como escritor, trazendo para a literatura angolana as “vozes da sanzala”, a oratura do interior, em sua polifonia linguística, carregada do humor inerente às situações simultaneamente trágicas e cómicas – bem patentes no conto aqui reproduzido, Bola com feitiço –, o que o torna, no dizer de Salvato Trigo, “inequivocamente um dos maiores ‘africanizadores’ da literatura angolana”.1
Henrique Abranches (que integrou o grupo de colaboradores de Cultura II), é autor de uma vasta obra literária e plástica, que vai do ensaio histórico e antropológico, à poesia e ao teatro, e do conto ao romance, passando pela ficção científica e pela banda desenhada. Alimentada por múltiplos interesses e inquietações, a obra ficcional de Henrique Abranches tem na História do próprio país e no resgate da literatura da tradição oral (pela reelaboração estética do maravilhoso e do fantástico, tornando não raro a escrita numa espécie de segunda voz da oratura), a sua marca e a sua vitalidade mais constantes.
Mário António, que publicara na revista Mensagem (a cuja geração pertence) o seu primeiro conto, construirá a sua obra ficcional reelaborando alguns contos da tradição oral angolana (“Histórias tradicionais recontadas livremente”, assim as designa o autor), como é o caso do conto aqui seleccionado, O homem que queria casar-se com a filha do Sol e da Lua, com todo o seu imaginário mítico, o seu poder encantatório e mágico, à semelhança e sob a nítida influência de Castro Soromenho. Outra temática (e esta afim de muita da sua poesia) é a questão da mestiçagem física e cultural na sociedade crioula de Luanda, de que se destacam os contos e novelas de Crónica da cidade estranha.
Arnaldo Santos e José Luandino Vieira pertencem à geração de Cultura, sucedânea da geração de Mensagem. São gerações altamente politizadas e politizantes, que utilizam a literatura como forma de denúncia, não raro panfletária, dos desmandos do colonialismo, e a colocam na vanguarda da formação e consciencialização da identidade nacional. E tanto assim é, que muitos dos intelectuais que as enformaram se tornaram dirigentes dos movimentos de libertação (sobretudo do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola), passando pelas masmorras da polícia política salazarista, como foi o caso de Agostinho Neto, António Jacinto, Henrique Guerra, Luandino Vieira e Uanhenga Xitu, para citar apenas o nome de autores aqui representados.
Deve-se à geração de Cultura II, essencialmente formada por poetas, e sob os auspícios de Castro Soromenho e à influência da literatura brasileira, através de escritores e poetas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima (João Guimarães Rosa chegará depois, fulminante), “o projecto de criação de uma ficção angolana.” “Sobretudo através do conto.”, sendo esses mesmos autores “reunidos depois na antologia Contistas angolanos, 1960, da Casa dos Estudantes do Império, e, mais tarde, uns tantos nas antologias da Imbondeiro.”2
A cidade de Luanda, a cidade histórica e a cidade mítica, bem como os seus musseques, são o cenário comum a Arnaldo Santos e Luandino, do mesmo modo que a infância (A Cidade e a infância é, aliás, o título do primeiro livro de Luandino) é a vitalidade, a voz polífona, a crueldade, a cumplicidade e a transgressão, e se torna ela mesma personagem na tessitura das próprias narrativas, avivando a denúncia das contradições sociais e raciais na sociedade colonial.
Arnaldo Santos tem vindo a construir, desde 1960 (quando publicou o seu primeiro conto e o seu primeiro livro de poemas, Fuga), uma obra onde a memória e a poesia, a história recente do país e as transformações sociais nela implícitas, se aliam numa afirmação plena de valorização e enriquecimento da literatura angolana, de que A Boneca de Quilengues, uma das suas ficções mais recentes, é perfeito exemplo.
José Luandino Vieira, porventura o mais conhecido e traduzido escritor angolano contemporâneo – escritor na linha directa de João Guimarães Rosa –, é autor fundacional de uma língua e de uma estilística, de uma estética caldeada por as mais variadas contribuições culturais e linguísticas, trazendo, pela escrita, à modernidade da ficção narrativa, uma oralidade radicalmente nova, encantatória e fulgurante de poesia. E é justamente essa força capaz de reinventar a língua portuguesa, revificando-a pela transgressão e violentação da sua convencionalidade estéril, que faz de José Luandino Vieira um dos vultos maiores da nossa contemporaneidade literária, assinando algumas obras-primas, como as estórias de No antigamente, na vida e Macandumba, ou os romances Nós, os do Makulusu e João Vêncio: os seus amores.
No resgate da literatura da tradição oral, e numa atenção crítica aos desmandos do quotidiano seu contemporâneo, também Dario de Melo (cuja obra na área da literatura infanto-juvenil é de capital importância) e Henrique Guerra se têm vivamente empenhado, construindo cada um, com sua voz própria e pessoalíssima cosmovisão interventiva, uma obra onde as palavras são para ser lidas como se fossem cantadas. Com muito gesto, conforme a tradição, e sempre acompanhadas pelo bater compassado e encantado das palmas.
Jofre Rocha, o poeta cujo canto é nascido da muita e de todas as sedes de contar, tem na mesma génese a construção e elaboração das suas estórias sobre as gentes humildes dos musseques luandenses. Não por acaso se chama “Estórias do musseque” o seu primeiro livro de ficção, burilado numa escrita onde a atenção ao coloquial padrão se transforma numa pessoalíssima e vigorosa angolanização da língua portuguesa.
Ruy Duarte de Carvalho entra na literatura angolana, em 1972, com a publicação de Chão de oferta, pela poesia – e pela porta mais alta: a de uma voz de catarse, “De uma nação de corpos transumantes/confundidos/na cor da crosta acúlea/de um negro chão elaborado em brasa.”3E voz, desvairadamente pessoal, telúrica. Voz de cisão, transmudante e transumante, inaugural. E é, na sequência da publicação de A decisão da idade (reunião da sua Obra Poética até então, em 1977), que Ruy Duarte de Carvalho dá à estampa Como se o mundo não tivesse leste – estórias do sul e seca, a sua primeira obra de ficção.
São estórias – e é a essas estórias que se vão buscar As águas do Capembáua, a estória que aqui se dá a ler, antologizada. Telúrica, e sábia de transumância: outros universos, enfim, na prosa de ficção angolana, de voz eivada e levada do deserto, lá do Namibe, no Sul do país, por Ruy Duarte de Carvalho, dono e senhor de uma das obras mais sólidas e avassaladoras da leitura antropológica da Terra e da humanidade sua habitante, vivente e sobrevivente, cujo corolário é a imensidão desse fresco enformado por Vou lá visitar pastores (1999), As paisagens propícias (2005), Desmedida: Luanda-São Paulo-São Francisco e volta. Crónicas do Brasil (2006) e A terceira metade (2009) – tetralogia dos mapas secretos da Terra, trânsfugas e comunicantes, coniventes – e a sua voz inteira. Em viagem, em atenção e registo lapidar e soberano – epopeia, em seu canto maior.
Pepetela (essencialmente romancista, não obstante a sua obra contar com um livro de contos e algumas peças de teatro) vem elaborando na literatura angolana de ficção uma espécie de epopeia fragmentada e em socalcos, quer pelos motivos que se propõe tratar, quer pelos tempos em que as acções decorrem. A obra de Pepetela revela um levantamento sociológico ímpar, de Angola e da angolanidade, narrado ao leitor com a mestria e a sageza de um contador de estórias a voz plena.
Manuel Rui, cujo primeiro livro de contos, Regresso adiado (1973), reflectindo o exílio e a dicotomia África/Europa, e, de onde é retirado o conto dado à estampa nesta antologia – inquestionavelmente um dos seus contos mais emblemáticos, quer pela temática [a humilhação ou a alienação do homem angolano durante o colonialismo, e onde a figura do mulato – Mulato de sangue azul – é uma metáfora contundente da sociedade colonial angolana, com todas as suas contradições de sangue, de raça e de classe social, pois se “Os brancos adiantam que mulato é filho de uma nota de vinte paus (nota de vinte escudos, ou seja, o preço de uma relação sexual de um branco com uma prostituta negra); os pretos, sempre que um mulato arreganha, cospem que mulato não tem terra.”], quer pelo seu alto nível de realização estética –, tem vindo a afirmar-se, com uma obra vasta e multifacetada, trabalhando o coloquial padrão das ruas de Luanda e seu natural “reinventar” da língua portuguesa, o seu absurdo quotidiano, o seu humor, a sua ironia fulminante, como uma das vozes mais estimulantes do panorama literário angolano, de que é justo salientar as novelas Quem me dera ser onda e De um comba.
Fragata de Morais constrói as suas narrativas mesclando a tradição da oralidade com as situações absurdas e hilariantes do quotidiano (sobretudo luandense), numa escrita quase de oratura, eivada de humor e espantada leveza, a que a crítica social sempre “ajindunga” e dá à estória a imagem mais fiel da impressão digital do seu autor.
Jacques Arlindo dos Santos é outro caso de “maquinar” humor nas estórias que nos inventa, onde a alegoria se nos apresenta como um dos seus recursos estilísticos mais constantes. Mas o que Jacques Arlindo dos Santos melhor faz na sua obra ficcional, é “a história das mentalidades, sem tirar nem pôr. Acredite quem quiser.”, disse, um dia, João Melo, para logo acrescentar: “Não faltam, até, as trepidantes aventuras sexuais.”
Boaventura Cardoso traz para a escrita um experimentalismo linguístico, numa “redescoberta de Angola”, pela sua linguagem e onirismo dela decorrente. Isso mesmo (e de modo mais explícito) nos diz o próprio autor:
Sem pretendermos influenciar a apreciação do leitor sobre o nosso processo de escrita, gostaríamos, no entanto, de frisar a linguagem gramaticalmente angolanizada, a sintaxe reinventada para surtir ritmos sincopados dos falares africanos, o recurso a linhas curvilíneas dos fios da história e a constante repetição de frases, o que é uma das componentes de fundo da narrativa afro-banto.4
E essa “envolvência da linguagem banto do maravilhoso e fantástico”5no seu discurso ficcional é um dos encantamentos, nem sempre fáceis, da sua obra literária.
José Mena Abrantes é um nome que se tem distinguido essencialmente no domínio da escrita para teatro, ou sobre o teatro – para além de ser, também, fundador ou co-fundador, e encenador, de vários e importantes grupos no panorama nacional, como é o caso do “Elinga Teatro”, formado nos anos de 1980. A sua obra, quer como dramaturgo, quer como ficcionista, alimenta-se da matéria temática da História do país (inclusive da História recente, com as inevitáveis sequelas da longa e terrível guerra civil e seus protagonistas – com toda a violência, terror, inumanidade e perfídia) em consonância com as literaturas orais, de cujo poder ancestral José Mena Abrantes recolhe e remaneja o sentido transcendente que torna a esperança possível – e a Vida, para quem já praticamente não existe, uma espécie de “vingadora do Além”.
O que primeiro ressalta na obra de Fernando Fonseca Santos é a força telúrica e o encantamento poético da sua escrita. Recorrendo a lendas e mitos fundadores da tradição oral, sobretudo dos povos do centro e Sul de Angola, Fernando Fonseca Santos caldeia o maravilhoso e o fantástico dessa memória ancestral, tanta vez visionária, com a História do país, quer a mais recente (em que a presença da tragédia da guerra civil tem papel preponderante), quer a História mais recuada, onde a afirmação nacionalista se rescreve, reflectindo o autor “a necessidade da literatura e da cultura angolanas recuperarem e readaptarem a herança das culturas orais das suas várias comunidades.”6
Paula Tavares, indiscutivelmente um dos nomes a reter no panorama da poesia moderna angolana, rememorando e resgatando tradições ancestrais e seus ritos; incorporando adágios e provérbios na sua obra (quer poética quer narrativa), traz com a narrativa Cartas de Noéji e Ana Joaquina, uma visão da História de Angola mais recuada, a do grande Império da Lunda. A obra de Paula Tavares, construída a partir de um atentíssimo olhar feminino, é uma obra profundamente religiosa – não tanto pelo seu quase constante diálogo com os temas bíblicos, mas no sentido mais fundo de religação das “coisas” do Mundo: a Terra e o erotismo dos corpos sobre ela; a sensualidade dos cheiros, desde a infância remota; os frutos cantados como quem os possui e saboreia, amante. Não raro, em Paula Tavares, a prosa (crónica ou conto) é proesia, prosema, Poema.
João Melo, contista revelado em 1999 com Imitação de Sartre e de Simone de Beauvoir, traz para a ribalta literária, numa linguagem surpreendente de humor e sarcasmo, o “desbundante” quotidiano angolano dos nossos dias, através de uma escrita que revela um ficcionista com arguto senso de observação, capaz de flagrar como poucos os descompassos da cena urbana luandense e situá-los sob as lentes de uma ácida ironia. Sob esse particular, pode-se verificar que os contos do autor não raro retomam algumas personagens caras à prosa angolana contemporânea como as crianças marginalizadas, por exemplo, mas sem qualquer piedade, com uma linguagem crua que ilumina essas criaturas sob uma nova perspectiva.7
Em João Melo, para além da mestria iconoclasta na construção narrativa do contar e fazer (en)cantar das suas estórias, é de realçar, ainda, a atenção e o espaço que a temática da mulher e/ou da condição feminina detêm na sua obra.
José Luís Mendonça, poeta sobejamente conhecido e autor de uma das obras mais consistentes da poesia angolana contemporânea, é aqui revelado como contista, numa estória onde o maravilhoso e o fantástico são as traves mestras de que a narrativa se constrói e sustenta, num diálogo sereno da modernidade literária com a voz da tradição e da ancestralidade mítica e fundacional.
João Tala é outro poeta que, à semelhança de José Luís Mendonça, encontrou na estória e no seu contar uma outra forma de comunicabilidade e continuidade do fazer poético. Uma inventividade e uma frescura discursivas, onde a “surrealidade” do quotidiano e a herança literária advinda do movimento surrealista se dão as mãos, fazem de João Tala uma outra voz firme no panorama da nova (ou mais recente) produção ficcional angolana.
Luís Kandjimbo, cuja obra ensaística sobre a literatura angolana se tornou já um marco fundamental nas nossas letras, é outro poeta a quem também só o poema não basta como forma de expressão e criação literária, trazendo para as suas estórias a memória cosmopolita em confronto com os múltiplos quotidianos urbanos, com particular enfoque para a sua antiga e sempre jovem cidade de Benguela.
Tal como José Luís Mendonça, também o autor destas linhas se revela aqui como contista.
José Eduardo Agualusa é um mistificador impenitente – quero eu dizer: um ficcionista nato, um contador d’estórias de voz bem colocada e mão cheia, na escrita. E a escrita de José Eduardo Agualusa é uma escrita “viandante”: uma prosa de trazer o mar todo a uma praia única e como que transumante e transcontinental (de Angola, Áfricas, Europas, Brasil), numa proposta de aproximação e encontro, de doação e partilha, de inquirição e festa, de revelação e magia. As narrativas de José Eduardo Agualusa – da crónica ao romance, passando pelo conto –, fluem entre a História mais recente do país (num olhar não isento de humor e rebeldia), e o “maravilhoso” da literatura fantástica ou do realismo mágico, na linha de um Juan Rulfo, de um García Márquez ou de um Jorge Luis Borges.
A obra de José Eduardo Agualusa, iniciada com o romance histórico A Conjura, em 1989, é uma das obras mais límpidas, mais seguras e consistentes, no universo da ficção contemporânea de língua portuguesa.
Luís Fernando, para quem a crítica social produzida através do trabalho estético sobre a História e o quotidiano mais recentes é uma das suas imagens de marca mais consistentes, ao falar dos propósitos e característicos da sua obra, afirma que a elaboração da mesma é “unicamente para proporcionar humor, coragem, optimismo e alegria ao leitor”, porque “a vida é um caleidoscópio de emoções onde a componente riso e boa disposição deve estar presente.”8
Carmo Neto, não obstante a sua ainda parca obra publicada, é outro espantoso cronista de costumes, através da criação de personagens e situações buscadas nos quotidianos luandense e malanjino, socorrendo-se de uma estrutura narrativa que Osvaldo Silva9 assim descreve:
As intrigas [na obra de Carmo Neto] são caracterizadas por episódios de viés picaresco, burlesco e até paródico, tendo nas personagens, e na rede de relações que essas constituem, o centro simbólico da crítica dos valores, discursos e ações que enformam o universo perverso das novas ordens sociais e políticas. De tal sorte que o aparente carácter fragmentário da obra é degenerado pela noção de afinidade subjacente ao estatuto semântico e temático conferido às personagens, numa elaboração temporal que justifica o recurso às memórias do presente e do passado.
Ismael Mateus traz para a sua obra o centro dos furacões do poder, onde acção governativa, intriga política e seus actores se expõem numa trama narrativa consistente, sustentada por uma prosa desembaraçada, sem excessos descritivos, e onde a acção se sobrepõe à tentação fácil de divagar por explicações e justificações que certamente assassinariam todo o prazer jubiloso da fruição plena do texto.
A prosa de Marta Santos é uma prosa carregada de poesia, de sensualidade, não raro de um humor desconcertante, mas sempre com um profundo respeito pela sabedoria que os mais-velhos transmitem aos mais novos, e que é um dos valores fundamentais da cultura angolana da tradição oral.
A presença da personagem do mais-velho em contraponto com a personagem da criança é um dos característicos da obra de Marta Santos, também ela autora de literatura infanto-juvenil, na qual recupera a tradição da contação de estórias ao luar, em roda de uma fogueira, numa transmissão de memórias e ensinamentos ancestrais pela voz sábia dos mais-velhos aos mais novos e às crianças.
Roderick Nehone traz para a prosa angolana a tragédia e a comédia (as duas faces da moeda) do quotidiano, o seu lado absurdo e caricato, ou o seu lado fantástico e maravilhoso. A escrita move-se numa prosa límpida, trabalhada, aparentemente simples na sua construção e funcionalidade narrativas.
A obra de Roderick Nehone revela uma leitura atentíssima dos paradigmas da sociedade angolana contemporânea, onde a condição da mulher, sobretudo no período do pós-guerra, assume um papel de extrema relevância. Tal como o humor trasbordante, que é por certo um dos maiores encantamentos desta prosa.
Sónia Gomes trabalha na sua obra uma temática obsessiva e rara no panorama da literatura angolana: a maternidade, a saúde pública e o flagelo do HIV/SIDA. Profissional de saúde, Sónia Gomes parte da experiência do seu dia a dia como enfermeira para dar ao leitor uma obra inquietante e poderosa, não raro de pendor moralista, e como que um despertar de consciências no vertiginoso redemoinho de transformações e desigualdades sociais em que a sociedade angola se move.
Isaquiel Cori é outro autor de parca obra publicada, que tem na História recente de Angola o húmus da sua criação literária. E nela, o que sobremaneira ressalta, é a vivência e a construção das suas personagens, arrancadas em carne viva aos dramas e às tragédias vividos ao longo da guerra civil que durante anos devastou o país. A obra ficcional (ainda breve) de Isaquiel Cori, a par do seu trabalho como jornalista, trazem à literatura angolana mais uma voz na afirmação da sua pujança e multiplicidade.
Profundamente influenciado pela obra de José Luandino Vieira, de Mia Couto e do poeta brasileiro Manoel de Barros – cujo cordão umbilical é o seu catapultar festivo e trangiverso para a escrita –, “Ondjaki é”, segundo Pepetela, no texto que escreveu para a orelha de E se amanhã o medo (Editorial Caminho, Lisboa, 2005), “um jovem que escreve uma ficção viçosa e jovem. (…) Esperemos que saiba sempre aliar o estudo e a pesquisa com o sentimento de prazer, que fornece a frescura e a alegria a um texto.”
De literatura emergente e de combate, a literatura angolana de ficção é hoje uma literatura com uma pujança e uma modernidade que a edição, a crítica, os estudos universitários e a fortuna de leitores têm vindo a solidificar e a confirmar. Jovem, é certo, se comparada com outras – mas literatura com estórias para contar. Estórias vivas – e muitas! –, cheias de gente dentro – com seus dramas, suas alegrias, seus casos e magias, seu(s) humor(es). Esse é o segredo, a sedução da moderna ficção angolana: ter estórias para contar, encantar, e enfeitiçar – em suas afinidades e ressonâncias, seu rosto e voz (polífona e polígrafa) voltados para o Mundo.
Antologia do Conto Angolano. Em colaboração com João Melo. Alfragide: Editorial Caminho, no prelo.
1. 1. TRIGO, Salvato. Uanhenga Xitu. Da oratura à literatura. Cadernos de Literatura, 12, 1982.
2. 2. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa 2. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, vol. 7, 2.ª ed., 1986, pp. 54 e 55.
3. 3. CARVALHO, Ruy Duarte de. A decisão da idade. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 3.ª ed., 1977, p. 13.
4. 4. CARDOSO, Boaventura. A escrita literária de um contador africano. In: Cavalcante Padilha, Laura e Calafate Ribeiro, Margarida (Org.). Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p.18.
5. 5. Ibid.
6. 6. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 123.
7. 7. MACEDO, Tânia. Posfácio. A poesia, retrato sem molduras. In: Melo, João. Auto-retrato. Lisboa: Editorial Caminho, 2007, pp. 73 e 74.
8. 8. FERNANDO, Luís. In: www.portalangop.co.ao, 6 de Março de 2010.
9. 9. SILVA, Osvaldo. Degravata: entre ter, aparecer e ser. Revista Crioula − Revista Eletrônica dos Alunos de Pós-Graduação, n.º 5. DLCV-FFLC-USP, Maio 2009.
domingo, 7 de novembro de 2010
Escritor Luandino Vieira: "Alguém passeia em mim"
Estávamos em 2006. Um dos acontecimentos literários mais marcantes daquele ano foi o regresso à publicação de Luandino Vieira, com o romance “O Livro dos Rios” (Editorial Nzila), título primeiro da trilogia “De Rios Velhos e Guerrilheiros”. Encontrei-me com Luandino Vieira em casa do seu confrade e compadre Arnaldo Santos, na zona da Maianga. Tivemos uma longa conversa a dois, com LV, que em algumas ocasiões contava com a intervenção de Arnaldo Santos. Uma boa parte da conversa, que abaixo recupero, foi publicada originariamente em Dezembro de 2006, na primeira edição dos Cadernos ÉME, uma publicação do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Outra parte da conversa, já com maior protagonismo de Arnaldo Santos, está numa cassete algures em minha casa. Mudei de casa há dois anos e, por força das circunstâncias, tenho o meu arquivo fechado e espalhado pela nova moradia. Conto, o mais breve possível, recuperar esta e outras conversas, com outros interlocutores, e publicá-las neste blogue. Passemos, para já, à conversa com Luandino Vieira.
Isaquiel Cori
CADERNOS ÉME – Há quem não viveu nos musseques de Luanda naquele tempo (antes da independência) e a ideia que tem dos musseques é a que é descrita nos livros do Luandino Vieira.
LV – Por isso tenho o cuidado de dizer que nem sempre transmitimos o real, transmitimos às vezes o que sonhámos que era e o sonho do que deveria ser. Os jovens devem fazer essa leitura com a devida cautela. A literatuta tanto se alimenta do que é real como do que é fictício, da sua própria ficção, do sonho dos escritores. Olhando para trás não há que renegar esse traço, essas notas que estão no meu trabalho literário. Continua a haver esse passado do modo como o escrevi há muitos anos.
CADERNOS ÉME – O Luandino está cá em Angola já para ficar?
LV – Ainda não estou para ficar porque estive fora estes anos todos por motivos rigorosamente familiares e particulares e que não têm nada a ver com outra coisa que não seja isso. Como deve calcular, nós acumulámos muita coisa. Sobretudo os escritores acumulam papéis a mais, memórias a mais... Esta oportunidade de vir foi ditada por compromissos de lançar os livros ao mesmo tempo, eu e o meu compadre Arnaldo Santos; Kinaxixi e Makulusu... E, claro, para aproveitar a ocasião para ver como é que devo arrumar, o que é que devo arrumar para trazer. Se não podemos escolher o sítio onde nascemos podemos escolher, ao menos algumas vezes, o sítio aonde queremos morrer.
CADERNOS ÉME – Acaba de dizer que esteve fora de Angola estes anos todos por razões estrictamente familiares e particulares. Será então escusado perguntar-lhe das circunstâncias que o levaram a sair de Angola em 1992?
LV – Em 1992, quando recomeçou a guerra civil, naqueles termos, eu já não tinha nenhum cargo, nenhum compromisso; e foi-me dada uma bolsa para criação literária, de dois anos. Recebi a bolsa e fui para Portugal para pesquisar e para tentar escrever. Não consegui escrever naquele tempo e entretanto comprometi-me com a minha mãe a ficar com ela até aos seus últimos dias. E foi o que sucedeu.
CADERNOS ÉME – Constou-me que chegou a rasgar (ou a queimar) um romance que já tinha pronto.
LV – Eu ainda trabalho à moda antiga. Não tenho computador e escrevo à mão. Não sei guardar arquivos e, portanto, só a minha memória é o meu arquivo. Depois de escrever achei que o melhor era queimar; às vezes é melhor começar tudo de novo do que tentar emendar. Às vezes o pano onde a gente quer pôr o remendo já não aguenta o remendo.
Razões da recusa do Prémio Camões
CADERNOS ÉME – Tem dito repetidamente, quando perguntado, que negou o Prémio Camões por razões pessoais e íntimas. Será descabido supôr que essa negação terá também alguma coisa a ver com o escândalo que resultou da atribuição do Prémio Motta Veiga ao seu livro “Luuanda”, em 1972, com o governo colonial a dissolver a instituição responsável pelo prémio?
LV – Não tem nenhuma relação com os prémios anteriores, nem com o modo como existe o Prémio Camões.
CADERNOS ÉME – A sua recusa não significa então uma negação do Prémio Camões enquanto instituição?
LV – O Prémio Camões é uma boa instituição. Eu não conheço em pormenores os regulamentos e a filosofia do prémio mas sei que é um prémio para os escritores que enaltecem ou desenvolvem a língua portuguesa, para escritores de todos os países que utilizam a língua portuguesa. Neguei-o por razões pessoais e íntimas. A última vez que escrevi e publiquei, não quer dizer que seja a última vez que escrevi, foi em 1972. De 1972 a 2006 quantos anos se passaram? Se se meditar um pouco sobre isso, os leitores actualizados da literatura, os que lêem e vão seguindo o movimento editorial, os que conhecem outros escritores, outras obras dos antigos escritores, novas obras dos novos escritores, o surgimento de novos talentos, de novas correntes literárias, haveriam por exemplo de perguntar (não quero dizer que seja essa a razão, mas eu se fosse leitor perguntava) como é que não sendo o prémio de carreira, porquê que atribuem um prémio a um escritor que está morto? O Prémio Camões não é um prémio póstumo. E um escritor que fica tanto tempo sem publicar... Poucas pessoas sabiam que eu estava vivo, mesmo fisicamente. Estou convencido que muita gente dizia: “Ele deve ter morrido, nunca mais o vimos, nunca mais o ouvimos”. Isto é apenas um exemplo. As minhas razões foram rigorosamente íntimas e pessoais. Não têm nada a ver com a instituição do prémio, nem como o prémio é atribuído ou não atribuído. Têm a ver com o modo como eu vejo a minha situação de escritor dentro do sistema literário em língua portuguesa, o meu papel e o meu lugar nesse sistema literário.
Arnaldo Santos – Contra a vontade do entrevistador atrevo-me a dizer que não há escritores mortos como o Luandino estava aqui a defender. Porque os escritores, como Agostinho Neto, Viriato Cruz, etc., que até fisicamente estão mortos, continuam muito vivos. É um argumento que eu tenho contra o meu compadre.
LV – Até podemos entrar em polémica. A polémica seria sobre se aquilo que se chama um escritor e que é definido por um nome se refere à pessoa ou às obras. É evidente que essas obras foram produzidas por alguém. Mas no trabalho literário o próprio escritor, depois, às vezes pergunta “quem é que em mim escreveu isto?”
CADERNOS ÉME – Defende uma perspectiva mística do acto de escrever?
LV – Não é mística, porque sucede. A gente escreve e mais tarde lê e diz assim, “mas eu escrevi isto? Fui eu? Alguém em mim escreveu isto?”
CADERNOS ÉME – Ou: “Terei sido possuído por...”
LV – Não, não é isso. Penso que não é a possessão, nesse sentido. Mas a nossa identidade pessoal é uma coisa muito complexa e é feita de muitos dados. O nosso ADN literário, digamos assim, inclui tudo quanto a gente leu e tudo quanto a gente sonhou e quanto a gente ouviu. Nenhum de nós sabe o que é que está arquivado aqui nessas pastas do nosso cérebro. E muitas vezes nós não temos a mínima percepção de que isto estava lá guardado e damo-nos conta de que estava porque apareceu na escrita. O Arnaldo está aqui e sabe que se começamos um texto da maneira errada, isto é, se conduzir é com o volante à esquerda e a gente começa a conduzir com o volante à direita, temos que parar e mudar de trânsito. Isto é, rasgar e começar de novo; por aquele caminho não vamos lá. Quem é que nos diz que por aquele caminho não vamos lá? A nossa identidade literária determina muitas vezes muitos textos dos quais não tínhamos sequer a percepção de que existia essa capacidade em nós. Ou essa incapacidade, quando falhamos: “porquê que falhei se tinha tudo tão bem pensado na minha cabeça?”
CADERNOS ÉME – Dirijo-me ao Arnaldo Santos. Concorda com o Luandino?
AS – Você já notou que nós não temos as mesmas ideias sobre este assunto. Porque eu não considerava, de forma nenhuma, o Luandino um escritor morto. E mais ainda: eu tinha boas razões para admitir que o júri, que era formado por gente, à partida, inteligente, sabedora, etc., quando pegou na obra dele, não estava por estas considerações, com as quais eu concordo plenamente, para avaliar a obra do escritor Luandino Vieira, para lhe atribuir o Prémio Camões. O júri foi mesmo buscar essa obra, independentemente do autor se ter arquivado lá no convento de Sampaio. Eu não considerava de forma nenhuma o Luandino um escritor morto. Eu sabia que o escritor continuava vivo, movia-se ou vivia como escritor, portava-se como escritor, eu convivia com ele como escritor, falava e inclusivamente mandava os meus textos a ele como escritor. Logo, o escritor estava aí. Ele só precisava era sacudir aquela preguiça que normalmente os escritores costumam passar. Ele sacudiu e temos aí um escritor vivo para mais livros, muitos mais livros.
Redescoberta da dimensão ecológica
CADERNOS ÉME – Luandino: é verdade que durante os anos todos em que ficou sem publicar fez como que uma longa viagem interior e vivia como um eremita? Fez um auto-exílio, na tentativa de, se calhar, recuperar motivação para a escrita?
LV – Não, não foi na tentativa de recuperar motivação para a escrita. Ao longo destes anos fui sempre escrevendo. Pelo menos guardando na minha memória temas e mesmo frases e palavras. Passei a meditar sobre a literatura, sobre o meu trabalho anterior, sobre a realidade que tinha dado origem ao meu trabalho anterior, sobre a minha participação modesta nessa realidade e sobre os elementos fundamentais dessa realidade; portanto, era uma meditação mais sobre a minha identidade. De modo que ao longo destes anos todos o isolamento físico ajudou... O isolamento físico é devido também ao meu modo de estar no mundo. Não sou pessoa de muita confusão. Mas isso permitiu-me ver uma parte do meu relacionamento com a nossa realidade que eu não tinha aprofundado muito mas que em todos os livros já estava. Eu voltei ao Domingos Xavier (“A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, 1974) e obviamente o aspecto militante do livro... li e segui o aspecto humano dos personagens, sendo personagens que foram criados sobre figuras que eu conheci e passaram aqueles dramas... Por exemplo, num capítulo, um dos personagens, já não me lembro quem, olha para o rio Kwanza... eu me dei conta de que logo ali, num romance que não tinha nenhuma intenção de tocar na nossa natureza, que é afinal o nosso grande aquário onde todos nós angolanos nos movemos, já estava lá essa preocupação com a natureza, com o rio Kwanza. No Domingos Xavier já estava lá o Kwanza!... E fui descobrir que aos oito/nove anos eu tinha feito uma viagem pelo kwanza acima, num daqueles barcos que faziam ainda cabotagem para Calumbo... coisa que no meu subconsciente estava adormecida, tal e qual como andei na escola ou ia, pela mão do meu pai, ao centro espírita, como ia aos Coqueiros, ao Clube Atlético de Luanda... coisas que não tendo sido valorizadas estavam na génese dos quadros em que se movia o meu trabalho literário, a minha ficção literária. Isso fez-me compreender que a presença da terra angolana (rios, montanhas, pássaros) – agora aqui com o meu compadre, aqui na casa dele, a gente a primeira coisa que faz é identificar quem está a cantar na mulembeira; aí um “dikole” farta-se de cantar, um “mbolo quinhentos” canta, canta, canta; os “plim-plau” não saem daqui... – então isso fez-me reflectir: ... “Afinal eu tenho pecado, tenho reduzido a minha maneira de ver a nossa realidade porque a presença avassaladora da terra e esses valores não têm sido reflectidos”. Agora, isso que chamam exílio, auto-exílio, não existe. Eu já disse isto e posso repetir: há uma certa tendência da comunicação social para emoldurar as atitudes das pessoas. E então em relação aos escritores, aos artistas, aos músicos, essa moldura passa também por alguns preconceitos. Vamos ser claros.
CADERNOS ÉME – O auto-exílio pode acontecer em qualquer lado, não implica necessariamente uma viagem de um lado para o outro.
LV – Sim. E podia estar aqui muito mais exilado do que eu estava lá, em Portugal. Eu nunca deixei de estar em Angola. Devo fazer esta precisão: têm que nos dar, a nós também escritores e artistas, a possibilidade, este privilégio de sermos também humanos e de podermos ficar num sítio qualquer só porque procuramos trabalho, porque há o emprego, porque gostamos de viver ali, porque a nossa família nos pede para estar... O escritor, o músico, o artista, se não está é porque exilou-se, auto-exilou-se... Exílio político? Não está de acordo? Não é nada disso. Eu sinto necessidade de ir fazendo algumas introspecções porque até os combóios que andam em duas linhas paralelas, em certa altura tem que ter agulheiros, tem agulhas para desviar... Se queremos viver conscientemente temos que ir de vez em quando, não digo permanentemente, ir aferindo a nossa própria actividade, a ver se está de acordo com aquilo que nós somos e sentimos sinceramente ou se nos estamos a desviar dessa nossa matriz que é a nossa força interior. Pode soar a desculpa, mas não é.
CADERNOS ÉME – “O Livro dos Rios” é assim a redescoberta do tema da Natureza...
LV – É a assumpção. Assumir inteiramente que do nosso real a Natureza tem tanta força como a acção dos homens. Mais: porque os homens reflectem no seio dessa Natureza. Só que nós, os humanos, somos muito vaidosos e não estamos atentos. Passamos por uma árvore e é uma árvore... metemos a moto-serra e a cortamos. Chegamos a um sítio qualquer e não vemos que sem este sítio nós não teríamos a nossa identidade. Sobretudo nós, os urbanos, os citadinos. Eu gosto de estar aqui, na casa do meu compadre, porque a mulembeira está ali, e o sape-sapeiro... hoje vamos tentar podar um pau de maçã da Índia que está com uma doença, a ver se ainda a salvamos. Isto faz parte da nossa identidade. E este “O Livro dos Rios” e os outros dois que se seguem, tratam fundamentalmente disto: a relação do homem angolano com a terra angolana, naquilo que a terra define e ajuda a definir, naquilo em que o homem tem consciência. Isso traz um grande orgulho. Penso que se alguma coisa de novo eu pude introduzir nesse primeiro livro já não é só o orgulho de sermos angolanos, de termos as conquistas que fizémos em 40 anos de luta... É também esse orgulho da terra, dos rios... A angolanidade é um todo.
Ontem, falando com alguém que me estava a tentar dar umas indicações sobre a questão dos diamantes no nosso país, quando é que aparecem referidos como riqueza, ele me relatou um facto relativo ao século XVII. E falámos de Santa Maria da Matamba, da igreja onde se passaram as exéquias de Njinga Mbande ou do momento em que se lançou a primeira pedra dessa igreja... A palavra Matamba, que desperta logo o nosso imaginário histórico, lá onde a Njinga ficou os últimos anos da sua longa e combatente vida, desperta-nos também para aquela região. E aí a gente caminha e vê Kalandula, caminha e vê o Lucala... e não pode deixar de pensar nas Pedras de Pungu-a-Ndongo... Portanto, toda a história angolana é a relação, também, dos homens angolanos com a sua terra e a sua constante luta com as forças de conquista e ocupação. É também uma história de lugares. E eu sou muito sensível a isso. Esse quadro da natureza passou a ser muito mais importante do que, inconscientemente, já era... E uma história como a da mafumeira do Kinaxixi, que nós vimos em criança, presenciámos o derrube, o corte daquela árvore... a história do corte daquela árvore pode ser vista do ponto vista simbólico, mitológico, religioso, no quadro das religiões tradicionais, dos espíritos que aí moravam. E pode ser vista como um choque entre a modernidade e o passado que não queria que se mexesse ali... mas era preciso rasgar aquilo, asfaltar, criar a urbe, avançar... o famoso progresso, não é, o crescimento ou o desenvolvimento. Tudo pode ser narrado sem esse facto, sem a lagoa do Kinaxixi, sem a mafumeira, sem os espíritos... mas acho que será um relato mais pobre do que se relatarmos com todas aquelas nuances. Mas sobre o Kinaxixi este senhor [referindo-se ao escritor Arnaldo Santos] pode me corrigir, ele gosta de me corrigir, ele que também foi “apanhado” pela mafumeira. Eu fui apanhado pelo galho da mafumeira, na chuva. Se era um sinal, se não era um sinal, não sei.
Em termos de militância o coração está antes do cartão
CADERNOS ÉME – No início desta conversa perguntei-lhe se podia tratá-lo por “Camarada”...
LV – Com certeza.
CADERNOS ÉME – Mesmo em Portugal, nesses últimos 14 anos, foi acompanhando a evolução política do país? Ou reactualizou-se agora, no seu regresso?
LV – Eu acompanho sempre. Claro que não é no pormenor. A questão política do nosso país já não se vê só nas questões de pormenor, nem nas questões tácticas ou circunstanciais. Obviamente que estando longe, não podendo ver o dia-a-dia, eu vou tendo conhecimento do que foram as opções estratégicas; e também não tenho formação política nem conhecimentos para dizer se foram certas ou erradas, naquele momento. Só posso ver é o resultado, como cidadão e como “camarada”. Porque isto de ser do MPLA, primeiro não é o cartão. Primeiro é o coração, depois é que é o cartão. O cartão a gente perde; rasgam-nos ou caçumbulam-nos. Mas o coração, este, ninguém nos tira.
A questão estratégica deve ser medida por resultados. E quando, agora, no dia 11 [de Novembro] eu fui posto perante o resultado... Se houvesse um só resultado já era muito bom para uma geração.
Nós tivémos a sorte histórica de poder participar num momento absolutamente ímpar da nossa história, que foi a luta de libertação nacional, que deu lugar à independência política. A independência política está aí. Nunca esteve em causa. Outra coisa: a integridade territorial. Quando agora nós percebemos que todos os planos, desde há muito anos, era se para nos dominarem fosse preciso partiam-nos aos bocados... Ninguém conseguiu partir a nossa Nação, o nosso território. Estão aí as nossas fronteiras... E a despeito, e sobretudo devido a multiplicidade cultural e sociológica do nosso país, a unidade nacional está aí. Ao fim de 31 anos de independência, diga-me um outro país que se pode gabar desses três factos que são estruturantes e estratégicos? Não são muitos.
Os quatro anos de paz traduzem-se no vertiginoso crescer desta cidade. E eu espero que quando visitar Benguela, Lubango, Cabinda e outros lugares, encontre esse mesmo fervilhar. É certo que há muitos defeitos... Mas eu me lembro dum mais velho que me ensinou, no campo de concentração, uma coisa: quando passa um elefante, o caçador não pode estar a olhar para as pulgas. Porque o elefante leva lama, leva pulgas, tem a pele rasgada, carrega porcaria... você vai dizer “ai, o elefante está cheio de porcaria!”... Está a passar um elefante e você está a olhar para as pulgas?
CADERNOS ÉME – Foi propositado fazer coincidir o lançamento do seu livro com o dia da Independência do país?
LV – Quando me perguntaram qual era a data que queria para o lançamento, eu não pensei duas vezes. Se tivesse pensado teria percebido que no dia 11 há coisas muito, muito mais importantes do que o lançamento de dois livros de dois velhos escritores. Mas era uma parte daquele orgulho. E sobretudo porque eu pedi apenas para que no lançamento estivessem meus restados camaradas do campo de concentração do Tarrafal, a quem o livro é dedicado. Foi só o entusiasmo. Depois a realidade obrigou a corrigir. [Inicialmente previsto para o dia 11 de Novembro, o acto formal de lançamento acabou por acontecer no dia 14].
Participação na luta pela independência nacional
CADERNOS ÉME - Recuemos no tempo. Pode falar-nos das circunstâncias que o levaram ao campo de concentração do Tarrafal?
LV – Eu acho que isso individualmente não tem importância, porque nós tivémos o privilégio histórico, a nossa geração, de estar naquele momento histórico em que as condições se reuniram para que a luta pela libertação nacional, pela independência política, tivesse sucesso.
CADERNOS ÉME – A questão do mérito coloca-se porque apesar das condições históricas, as pessoas tiveram que agir em determinado sentido...
LV – Pois, mas houve sempre resistência popular ao invasor, houve a partir do momento em que começou a haver intelectualidade, a introdução da imprensa... isso você sabe melhor do que eu. Houve vários surtos. O nacionalismo angolano não começou no pós-segunda guerra mundial, tem raízes pelos séculos fora... se não quisermos ver o nacionalismo duma maneira estreita, como uma ideologia. Não. Esse sentimento, esse movimento que resultava do choque e das contradições das forças, entre invasores e invadidos, ocupados e ocupantes, os que colaboravam e os que não colaboravam, os reinos e os que vinham... isso se foi formando, se foi caldeando o nosso país.
Então, nós tivémos o privilégio de estar naquele momento histórico e participámos. Participações individuais? Foram sempre participações de grupos, de tal maneira que, por exemplo em 1959 (para pôrmos a coisa já naquele período em que a polícia política portuguesa, a PIDE, já estava instalada e começou a actuar organizadamente sobre as ideias e os movimentos nacionalistas...) todos os dias saíam panfletos e não eram assinados pela mesma organização. Uma pessoa podia às vezes copiar a ideia que saía num panfleto, voltar a glosar esta ideia, que já era assinada por outro dos movimentos que proliferavam: MINA, MIA, ELA, PLUA, PCA... que sei eu?
Foi essa a época que veio da luta pela difusão das ideias nacionalistas, pela organização e contra a repressão, que depois deu, como resultado, uma maior eficácia e a possibilidade do MPLA dirigir essas forças todas que actuavam em seu nome, com o seu programa (muitas vezes não lido, só de ouvido: sabia-se que o programa mínimo era este, o programa maior era aquele...). Para resumir, o camarada Mendes de Carvalho foi o que até hoje, como é um escritor, é o nosso mais velho e o nosso mestre em muita coisa, quase tudo, sintetizou melhor o MPLA. Ele disse que o MPLA é um rio de muitas águas. Isso é o que faz a força do MPLA. Nós tivémos a sorte de estar ou num ribeiro, ou num afluente da margem esquerda ou num afluente da margem direita, às vezes estávamos só no muije, outros estavam numa pequena lagoa... todas essas águas quando se juntaram foram imparáveis. Hoje parece que isso é reconhecido.
CADERNOS ÉME – O Luandino continua modesto. Na verdade ficou preso quantos anos?
LV – Da primeira vez que fui preso, no Processo dos 50, tiraram-me porque eu era muito miúdo e, (penso eu que o juiz interpretou, para o despacho de pronúncia final, orientações superiores) não convinha misturar sobretudo os brancos que tinham uma boa situação... como é que uma pessoa que é gerente de uma empresa, tem dinheiro, tem privilégios... “se mete nisto?”, como eles diziam. Depois, em 1961, fui condenado a 14 anos e cumpri 12 em prisão; depois pegaram em mim e puseram-me em Lisboa com residência vigiada. Tinha uma caderneta e cada vez que queria me deslocar tinha de ir à PIDE, eles punham lá um carimbo... “segue para Santarém”... Ia lá visitar o meu pai... quando lá chegava a primeira coisa a fazer, antes de ver o meu pai, era me apresentar à PIDE para carimbarem a caderneta... Só depois é que, vigiado obviamente, podia visitar a família.
Temos que render homenagem é à memória dos milhares e milhares de angolanos que morreram, que deram o seu sangue, a sua vida, para a conquista da independência política. Nós que passamos estes anos todos de cativeiro, temos o direito a dizer isso com a modéstia e ao mesmo tempo o orgulho que temos nisso. Mas o nosso sofrimento (pelo menos falo pessoalmente) comparado com o das grandes massas... não, não tem comparação possível. Não é ser modesto... Trinta e um anos depois a gente já pode ver qual é realmente o nosso lugar. É um pequeno lugar, está ali, não é mais do que isso.
Uma torrente de escrita chamada “Nós, os do Makulusu”
CADERNOS ÉME – Escreveu “Nós, os do Makulusu” em 15 dias. Continua com este ritmo frenético de escrita?
LV – Não. Em relação ao “Nós, os do Makulusu” até hoje não compreendo... Eu não sou uma pessoa muito mística, ao contrário aqui do meu compadre, que tem a abertura de espírito suficiente para enquadrar desde o misticismo ao realismo mais científico, só comprovado por experiência... É verdade que o ambiente cultural da nossa terra e o ambiente natural, também um bocado mágico, dá-nos essa percepção de que nem tudo na realidade é perceptível apenas com os instrumentos científicos, da razão. Há coisas que é melhor desconfiar. Desconfiar é uma atitude correcta. Enquanto não tivermos a certeza desconfiámos. Alguém passeia em nós.
Nós atravessávamos no campo de concentração um período muito, muito difícil. As notícias que nos chegavam... Não sei como é que nos chegou a notícia da morte do Hoji-ya-Henda... e também d’alguns problemas que houve na Checoslováquia... a morte do Che Guevara... Mas sobretudo internamente nós passávamos um período de muito mais repressão, muitas limitações... E foi também um período muito difícil para mim, pessoalmente, estive muitos meses sem notícias da família... Então sucedeu que este livro [“Nós, os do Makulusu” ] foi escrito em 7 dias.
Nós saíamos da caserna para dar umas voltas, para lavar a roupa, para apanhar sol... o chamado recreio... Eu sentava-me no chão, debaixo de uma grande acácia, no meio do campo, e fui escrevendo. O romance foi escrito assim, como se eu estivesse, e agora vou arriscar, possuído por um espírito. Alguém me diz que sim, que é assim, porque foi nessa mesma árvore onde o Mendes de Carvalho gravou à canivete uma frase, que eu já não lembro e que ficou lá. E ambos sofremos muito, anos depois, no dia em que visitámos de novo aquele campo e vimos que uma moto-serra tinha cortado aquela árvore. Outras árvores ficaram, mas aquela tinha sido cortada. Fazendo ficção, estou a ler sinais que não existem. Mas a verdade é que estas coisas se passaram. Como é que nós, por exemplo um mais velho como o Mendes de Carvalho ou eu que também já vou a caminho de ser um kota, como é que nós vamos ler isso? Porquê que cortaram precisamente aquela árvore? Ah, é o acaso... Outros dizem, ah, isso é um milagre... Há muitas coisas na vida para as quais a curta vida humana, quer individual quer às vezes grandes colectivos, ainda não pode encontrar resposta. A resposta é mais estratégica, precisa às vezes de séculos. Ainda há pouco tempo na Europa toda a gente defendia que a terra estava quieta e que o sol é que girava à volta da terra. Hoje sabe-se, cientificamente, que é o contrário.
CADERNOS ÉME – No quadro global da sua obra, qual é o livro que mais aprecia? Incluindo “O Livro dos Rios”.
LV – É difícil dizer. Não é a velha e estafada imagem de que todos são nossos filhos e que todo o pai ama a todos por igual. Todos eles, quando os publiquei, publiquei conscientemente. Tenho a noção do que cada um deles representa ou pode ter de valimento. Mas se me disserem assim: só podemos editar um livro... Em homenagem a esse espírito que naquele momento deve ter habitado em mim (e tenho pena que se tenha ido embora depois) eu escolheria mesmo o “Nós, os do Makulusu”.
CADERNOS ÉME – Acredito que tenha uma ideia geral daquilo que é a literatura angolana hoje. O que acha dela?
LV – Nenhum de nós pode fazer futurologia. O hoje da literatura angolana conheço mal, porque em Portugal não chegam algumas obras, pelos motivos que todos sabemos. Conhecendo mal era muito atrevimento estar a fazer um balanço. A única coisa que eu posso dizer, é tentando também ver as coisas em termos estratégicos, fazendo a leitura do passado, tentando tirar ilações. E se no fim do século XIX nos debruçássemos ou estivéssemos a ver a literatura que era produzida naquele tempo, nomeadamente a que era publicada nos jornais, se se pusesse essa questão aos homens do fim do século XIX e princípios do século XX, àquela geração, será que eles poderiam por exemplo prever a geração dos Novos Intelectuais de Angola, o movimento da Mensagem... seguramente que não. Retrospectivamente, nós podemos agora encontrar uma ligação entre a literatura feita em nome de ideias proto-nacionalistas, vamos utilizar o termo, e a que depois apareceu já com ideias mais definidas, mais nacionalistas claras. Mas é lendo, fazendo a leitura para trás. E quando o movimento da Mensagem produziu a [revista] Mensagem ou quando o Mário [de Andrade] e o Francisco José Tenreiro publicaram o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa podia prever-se, por exemplo, o que foi a actividade de 1975 a 1980, aquelas tiragens de 15 mil, 25 mil exemplares, os livros a circularem a preço de maço de tabaco, as FAPLA a distribuir quase com um carregador [de munições] um livro... Podia-se prever? Era muito difícil. O que une isso tudo é que há uma linha de continuidade no modo como se vê a relação do homem angolano com a terra e os seus deveres para com a realidade. Em todos os escritos há uma linha de continuidade que pode ser simplesmente reduzida a isto: no meu entendimento o escritor angolano sempre foi comprometido civicamente. Teve sempre uma noção de que a sua arte é a literatura, que é a expressão dum sistema um pouco autônomo, mas o cidadão nunca fica de parte; há um mínimo de participação que resulta dessa consciência cívica.
CADERNOS ÉME – Essa participação cívica tem necessariamente uma expressão política?
LV – Às vezes tem expressão política e até militar. Houve escritores que foram para a guerrilha... A participação cívica, como cidadãos, ficou na maneira como os escritores angolanos vêem a sua literatura. E penso que esse traço também define o nosso sistema literário nacional. Há críticos que dizem “ah, estes são poemas militantes”. Está bem. Muitas vezes a qualidade literária é aferida por isso mas outras vezes é essa característica que dá a grande qualidade literária. A gente pode dizer que o poema do António Jacinto, “O grande desafio”, é um poema absolutamente político; é radicalmente político... E é, em simultâneo, radicamente literário. Estas coisas não são muito simples, nem se pode lançar o anátema de que “ah, é militante, está a fazer poesia militante, logo, não presta”. Ou ao contrário, “ah, não é militante, logo, é bom”. Em última instância a obra publicada é que responde, não é o homem, sendo ou não militante. Agora, o homem que faz a obra está lá na obra, quer seja como presença quer seja como ausência. E o responsável último é ele.
Quando se está diante da globalização…
CADERNOS ÉME – Nós estamos num mundo cada vez mais globalizado. Como é que se vê, a si e à sua obra, neste mundo globalizado?
LV – Eu vejo a globalização como esse grande movimento de aproximação das actividades económicas em todo o mundo, o que, por arrasto, leva também a aspectos sociais e culturais. Penso que me está a dirigir a pergunta no sentido de eu, talvez, estabelecer a minha relação com as novas formas de informação e comunicação. Eu confesso que quando começou esse grande movimento, fiz uma má avaliação. Não do alcance, porque se percebeu logo que essa revolução tecnológia ia trazer uma nova revolução no modo de entender e de nos relacionarmos com o mundo. Fiz uma má avaliação do tempo. Pensei para comigo, “bom, quando isso chegar a ser um dado fundamental no relacionamento entre as pessoas e, no nosso caso, no relacionamento das pessoas que vivem no campo da criação ou das ideias ou da troca de ideias ou do conhecimento ou da informação... quando isso chegar eu já cá não estou”. Pensava que levaria algum tempo mais e afinal sou surpreendido, por exemplo em 2005, com essa realidade de ser um excluído, um info-excluído.
CADERNOS ÉME – Pode remediar isso...
LV – Pode ser remediado. As tecnologias são humanas, bem como o modo de as utilizar. Portanto, não é nada que qualquer cidadão, desde que queira, não possa adquirir as competências mínimas para também meter o seu fiozinho na rede e ficar ligado a todos os outros cidadãos, individual ou colectivamente. Disso eu tenho a perfeita noção. Eu fiz uma avaliação do tempo e então fiquei descansado com o meu método de trabalho da canetinha e apontamento e confiando na minha memória. Agora dou-me conta que isso é insuficiente como modo de estar ligado, de estar informado e de estar a participar tanto quanto mais não seja tendo conhecimento do que se passa. Ainda não tomei a decisão de me “incluir”, por preguiça. É que um infeliz traço do meu carácter é ser muito preguiçoso; e isso é capaz de dar muito trabalho…
CADERNOS ÉME – Querendo ou não, a informação sobre o Luandino e a sua obra está muito presente na Internet.
LV – O meu neto e o meu filho e outras pessoas ficam muito irritados quando eu digo “printa e mete no correio”, quando afinal é só fazer um clique para enviar ou reenviar [Risos].
CADERNOS ÉME – Como é que tem sido a sua relação com as outras artes angolanas? Essa fruição, essa apreciação das outras artes acrescenta alguma coisa à sua criação literária?
LV – Até 1992 eu tive uma relação muito intensa com as outras áreas da criação artística. Eu era inclusive membro da UNAP [União Nacional dos Artistas Plásticos]. Desde criança que eu gosto da boa música.
CADERNOS ÉME – O que é que considera “boa música”?
LV – Bom... Música que é feita com algum conhecimento técnico e com sinceridade. Por exemplo oiço sempre com muita atenção a música tradicional, a música popular, sobretudo o cancioneiro urbano. Com a pintura... sou um desenhador e pintor frustrado. Houve uma altura em que na UNAP me incluíram nos “pioneiros da gravura”... Fiz uns linóleos no tempo em que nos multiplicávamos com muitos pseudónimos para ocupar o lugar nos jornais, para dar a ideia de que éramos muitos, para a PIDE ficar baralhada... eu era o Luandino, o José Muimbo, o Zé Graça... A gente ia multiplicando também as expressões, para baralhar a polícia.
Sou apreciador, pouco crítico, de jazz. O Gegê Belo não gosta que eu diga isto, mas eu gosto de todo o jazz, sobretudo dos priomórdios, do período da formação, das influências, quando vêem as canções de trabalho mais os blues...
Mantive sempre ligações, por exemplo com o Ole, o Kidá e os jovens que estavam, em pintura, a estudar em Portugal, o Vitó (o filho do Viteix)... Pude me dar conta de que para além da manutenção de uma linha que se vê em quase todos, de expressão artística baseada não só em temas mas também em figurações populares e uma coisa interessante que era uma certa expressão surrealista, sobretudo em alguns pintores dos anos ’90, já não me lembro de nomes, acho que se fez um bom caminho nas artes plásticas.
Na música houve uma multiplicidade de estilos e a entrada do conceito de fusão e a tal globalização, que faz com que se façam descargas de tudo na Net e se misture... Mas não há dúvida que a música sempre foi um sector de grande vitalidade. Quanto ao teatro não tenho absolutamente nada a dizer, já que não tenho acompanhado o seu movimento.
No cômputo geral, a actividade artística e criativa acompanha o desenvolvimento do país. Umas vezes com uma certa perplexidade, à procura de caminhos; outras já com a consciência de qual é o caminho da afirmação. Acho que as artes também vão neste movimento de crescimento e de irrupção das forças que estavam contidas pela guerra.
Isaquiel Cori
CADERNOS ÉME – Há quem não viveu nos musseques de Luanda naquele tempo (antes da independência) e a ideia que tem dos musseques é a que é descrita nos livros do Luandino Vieira.
LV – Por isso tenho o cuidado de dizer que nem sempre transmitimos o real, transmitimos às vezes o que sonhámos que era e o sonho do que deveria ser. Os jovens devem fazer essa leitura com a devida cautela. A literatuta tanto se alimenta do que é real como do que é fictício, da sua própria ficção, do sonho dos escritores. Olhando para trás não há que renegar esse traço, essas notas que estão no meu trabalho literário. Continua a haver esse passado do modo como o escrevi há muitos anos.
CADERNOS ÉME – O Luandino está cá em Angola já para ficar?
LV – Ainda não estou para ficar porque estive fora estes anos todos por motivos rigorosamente familiares e particulares e que não têm nada a ver com outra coisa que não seja isso. Como deve calcular, nós acumulámos muita coisa. Sobretudo os escritores acumulam papéis a mais, memórias a mais... Esta oportunidade de vir foi ditada por compromissos de lançar os livros ao mesmo tempo, eu e o meu compadre Arnaldo Santos; Kinaxixi e Makulusu... E, claro, para aproveitar a ocasião para ver como é que devo arrumar, o que é que devo arrumar para trazer. Se não podemos escolher o sítio onde nascemos podemos escolher, ao menos algumas vezes, o sítio aonde queremos morrer.
CADERNOS ÉME – Acaba de dizer que esteve fora de Angola estes anos todos por razões estrictamente familiares e particulares. Será então escusado perguntar-lhe das circunstâncias que o levaram a sair de Angola em 1992?
LV – Em 1992, quando recomeçou a guerra civil, naqueles termos, eu já não tinha nenhum cargo, nenhum compromisso; e foi-me dada uma bolsa para criação literária, de dois anos. Recebi a bolsa e fui para Portugal para pesquisar e para tentar escrever. Não consegui escrever naquele tempo e entretanto comprometi-me com a minha mãe a ficar com ela até aos seus últimos dias. E foi o que sucedeu.
CADERNOS ÉME – Constou-me que chegou a rasgar (ou a queimar) um romance que já tinha pronto.
LV – Eu ainda trabalho à moda antiga. Não tenho computador e escrevo à mão. Não sei guardar arquivos e, portanto, só a minha memória é o meu arquivo. Depois de escrever achei que o melhor era queimar; às vezes é melhor começar tudo de novo do que tentar emendar. Às vezes o pano onde a gente quer pôr o remendo já não aguenta o remendo.
Razões da recusa do Prémio Camões
CADERNOS ÉME – Tem dito repetidamente, quando perguntado, que negou o Prémio Camões por razões pessoais e íntimas. Será descabido supôr que essa negação terá também alguma coisa a ver com o escândalo que resultou da atribuição do Prémio Motta Veiga ao seu livro “Luuanda”, em 1972, com o governo colonial a dissolver a instituição responsável pelo prémio?
LV – Não tem nenhuma relação com os prémios anteriores, nem com o modo como existe o Prémio Camões.
CADERNOS ÉME – A sua recusa não significa então uma negação do Prémio Camões enquanto instituição?
LV – O Prémio Camões é uma boa instituição. Eu não conheço em pormenores os regulamentos e a filosofia do prémio mas sei que é um prémio para os escritores que enaltecem ou desenvolvem a língua portuguesa, para escritores de todos os países que utilizam a língua portuguesa. Neguei-o por razões pessoais e íntimas. A última vez que escrevi e publiquei, não quer dizer que seja a última vez que escrevi, foi em 1972. De 1972 a 2006 quantos anos se passaram? Se se meditar um pouco sobre isso, os leitores actualizados da literatura, os que lêem e vão seguindo o movimento editorial, os que conhecem outros escritores, outras obras dos antigos escritores, novas obras dos novos escritores, o surgimento de novos talentos, de novas correntes literárias, haveriam por exemplo de perguntar (não quero dizer que seja essa a razão, mas eu se fosse leitor perguntava) como é que não sendo o prémio de carreira, porquê que atribuem um prémio a um escritor que está morto? O Prémio Camões não é um prémio póstumo. E um escritor que fica tanto tempo sem publicar... Poucas pessoas sabiam que eu estava vivo, mesmo fisicamente. Estou convencido que muita gente dizia: “Ele deve ter morrido, nunca mais o vimos, nunca mais o ouvimos”. Isto é apenas um exemplo. As minhas razões foram rigorosamente íntimas e pessoais. Não têm nada a ver com a instituição do prémio, nem como o prémio é atribuído ou não atribuído. Têm a ver com o modo como eu vejo a minha situação de escritor dentro do sistema literário em língua portuguesa, o meu papel e o meu lugar nesse sistema literário.
Arnaldo Santos – Contra a vontade do entrevistador atrevo-me a dizer que não há escritores mortos como o Luandino estava aqui a defender. Porque os escritores, como Agostinho Neto, Viriato Cruz, etc., que até fisicamente estão mortos, continuam muito vivos. É um argumento que eu tenho contra o meu compadre.
LV – Até podemos entrar em polémica. A polémica seria sobre se aquilo que se chama um escritor e que é definido por um nome se refere à pessoa ou às obras. É evidente que essas obras foram produzidas por alguém. Mas no trabalho literário o próprio escritor, depois, às vezes pergunta “quem é que em mim escreveu isto?”
CADERNOS ÉME – Defende uma perspectiva mística do acto de escrever?
LV – Não é mística, porque sucede. A gente escreve e mais tarde lê e diz assim, “mas eu escrevi isto? Fui eu? Alguém em mim escreveu isto?”
CADERNOS ÉME – Ou: “Terei sido possuído por...”
LV – Não, não é isso. Penso que não é a possessão, nesse sentido. Mas a nossa identidade pessoal é uma coisa muito complexa e é feita de muitos dados. O nosso ADN literário, digamos assim, inclui tudo quanto a gente leu e tudo quanto a gente sonhou e quanto a gente ouviu. Nenhum de nós sabe o que é que está arquivado aqui nessas pastas do nosso cérebro. E muitas vezes nós não temos a mínima percepção de que isto estava lá guardado e damo-nos conta de que estava porque apareceu na escrita. O Arnaldo está aqui e sabe que se começamos um texto da maneira errada, isto é, se conduzir é com o volante à esquerda e a gente começa a conduzir com o volante à direita, temos que parar e mudar de trânsito. Isto é, rasgar e começar de novo; por aquele caminho não vamos lá. Quem é que nos diz que por aquele caminho não vamos lá? A nossa identidade literária determina muitas vezes muitos textos dos quais não tínhamos sequer a percepção de que existia essa capacidade em nós. Ou essa incapacidade, quando falhamos: “porquê que falhei se tinha tudo tão bem pensado na minha cabeça?”
CADERNOS ÉME – Dirijo-me ao Arnaldo Santos. Concorda com o Luandino?
AS – Você já notou que nós não temos as mesmas ideias sobre este assunto. Porque eu não considerava, de forma nenhuma, o Luandino um escritor morto. E mais ainda: eu tinha boas razões para admitir que o júri, que era formado por gente, à partida, inteligente, sabedora, etc., quando pegou na obra dele, não estava por estas considerações, com as quais eu concordo plenamente, para avaliar a obra do escritor Luandino Vieira, para lhe atribuir o Prémio Camões. O júri foi mesmo buscar essa obra, independentemente do autor se ter arquivado lá no convento de Sampaio. Eu não considerava de forma nenhuma o Luandino um escritor morto. Eu sabia que o escritor continuava vivo, movia-se ou vivia como escritor, portava-se como escritor, eu convivia com ele como escritor, falava e inclusivamente mandava os meus textos a ele como escritor. Logo, o escritor estava aí. Ele só precisava era sacudir aquela preguiça que normalmente os escritores costumam passar. Ele sacudiu e temos aí um escritor vivo para mais livros, muitos mais livros.
Redescoberta da dimensão ecológica
CADERNOS ÉME – Luandino: é verdade que durante os anos todos em que ficou sem publicar fez como que uma longa viagem interior e vivia como um eremita? Fez um auto-exílio, na tentativa de, se calhar, recuperar motivação para a escrita?
LV – Não, não foi na tentativa de recuperar motivação para a escrita. Ao longo destes anos fui sempre escrevendo. Pelo menos guardando na minha memória temas e mesmo frases e palavras. Passei a meditar sobre a literatura, sobre o meu trabalho anterior, sobre a realidade que tinha dado origem ao meu trabalho anterior, sobre a minha participação modesta nessa realidade e sobre os elementos fundamentais dessa realidade; portanto, era uma meditação mais sobre a minha identidade. De modo que ao longo destes anos todos o isolamento físico ajudou... O isolamento físico é devido também ao meu modo de estar no mundo. Não sou pessoa de muita confusão. Mas isso permitiu-me ver uma parte do meu relacionamento com a nossa realidade que eu não tinha aprofundado muito mas que em todos os livros já estava. Eu voltei ao Domingos Xavier (“A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, 1974) e obviamente o aspecto militante do livro... li e segui o aspecto humano dos personagens, sendo personagens que foram criados sobre figuras que eu conheci e passaram aqueles dramas... Por exemplo, num capítulo, um dos personagens, já não me lembro quem, olha para o rio Kwanza... eu me dei conta de que logo ali, num romance que não tinha nenhuma intenção de tocar na nossa natureza, que é afinal o nosso grande aquário onde todos nós angolanos nos movemos, já estava lá essa preocupação com a natureza, com o rio Kwanza. No Domingos Xavier já estava lá o Kwanza!... E fui descobrir que aos oito/nove anos eu tinha feito uma viagem pelo kwanza acima, num daqueles barcos que faziam ainda cabotagem para Calumbo... coisa que no meu subconsciente estava adormecida, tal e qual como andei na escola ou ia, pela mão do meu pai, ao centro espírita, como ia aos Coqueiros, ao Clube Atlético de Luanda... coisas que não tendo sido valorizadas estavam na génese dos quadros em que se movia o meu trabalho literário, a minha ficção literária. Isso fez-me compreender que a presença da terra angolana (rios, montanhas, pássaros) – agora aqui com o meu compadre, aqui na casa dele, a gente a primeira coisa que faz é identificar quem está a cantar na mulembeira; aí um “dikole” farta-se de cantar, um “mbolo quinhentos” canta, canta, canta; os “plim-plau” não saem daqui... – então isso fez-me reflectir: ... “Afinal eu tenho pecado, tenho reduzido a minha maneira de ver a nossa realidade porque a presença avassaladora da terra e esses valores não têm sido reflectidos”. Agora, isso que chamam exílio, auto-exílio, não existe. Eu já disse isto e posso repetir: há uma certa tendência da comunicação social para emoldurar as atitudes das pessoas. E então em relação aos escritores, aos artistas, aos músicos, essa moldura passa também por alguns preconceitos. Vamos ser claros.
CADERNOS ÉME – O auto-exílio pode acontecer em qualquer lado, não implica necessariamente uma viagem de um lado para o outro.
LV – Sim. E podia estar aqui muito mais exilado do que eu estava lá, em Portugal. Eu nunca deixei de estar em Angola. Devo fazer esta precisão: têm que nos dar, a nós também escritores e artistas, a possibilidade, este privilégio de sermos também humanos e de podermos ficar num sítio qualquer só porque procuramos trabalho, porque há o emprego, porque gostamos de viver ali, porque a nossa família nos pede para estar... O escritor, o músico, o artista, se não está é porque exilou-se, auto-exilou-se... Exílio político? Não está de acordo? Não é nada disso. Eu sinto necessidade de ir fazendo algumas introspecções porque até os combóios que andam em duas linhas paralelas, em certa altura tem que ter agulheiros, tem agulhas para desviar... Se queremos viver conscientemente temos que ir de vez em quando, não digo permanentemente, ir aferindo a nossa própria actividade, a ver se está de acordo com aquilo que nós somos e sentimos sinceramente ou se nos estamos a desviar dessa nossa matriz que é a nossa força interior. Pode soar a desculpa, mas não é.
CADERNOS ÉME – “O Livro dos Rios” é assim a redescoberta do tema da Natureza...
LV – É a assumpção. Assumir inteiramente que do nosso real a Natureza tem tanta força como a acção dos homens. Mais: porque os homens reflectem no seio dessa Natureza. Só que nós, os humanos, somos muito vaidosos e não estamos atentos. Passamos por uma árvore e é uma árvore... metemos a moto-serra e a cortamos. Chegamos a um sítio qualquer e não vemos que sem este sítio nós não teríamos a nossa identidade. Sobretudo nós, os urbanos, os citadinos. Eu gosto de estar aqui, na casa do meu compadre, porque a mulembeira está ali, e o sape-sapeiro... hoje vamos tentar podar um pau de maçã da Índia que está com uma doença, a ver se ainda a salvamos. Isto faz parte da nossa identidade. E este “O Livro dos Rios” e os outros dois que se seguem, tratam fundamentalmente disto: a relação do homem angolano com a terra angolana, naquilo que a terra define e ajuda a definir, naquilo em que o homem tem consciência. Isso traz um grande orgulho. Penso que se alguma coisa de novo eu pude introduzir nesse primeiro livro já não é só o orgulho de sermos angolanos, de termos as conquistas que fizémos em 40 anos de luta... É também esse orgulho da terra, dos rios... A angolanidade é um todo.
Ontem, falando com alguém que me estava a tentar dar umas indicações sobre a questão dos diamantes no nosso país, quando é que aparecem referidos como riqueza, ele me relatou um facto relativo ao século XVII. E falámos de Santa Maria da Matamba, da igreja onde se passaram as exéquias de Njinga Mbande ou do momento em que se lançou a primeira pedra dessa igreja... A palavra Matamba, que desperta logo o nosso imaginário histórico, lá onde a Njinga ficou os últimos anos da sua longa e combatente vida, desperta-nos também para aquela região. E aí a gente caminha e vê Kalandula, caminha e vê o Lucala... e não pode deixar de pensar nas Pedras de Pungu-a-Ndongo... Portanto, toda a história angolana é a relação, também, dos homens angolanos com a sua terra e a sua constante luta com as forças de conquista e ocupação. É também uma história de lugares. E eu sou muito sensível a isso. Esse quadro da natureza passou a ser muito mais importante do que, inconscientemente, já era... E uma história como a da mafumeira do Kinaxixi, que nós vimos em criança, presenciámos o derrube, o corte daquela árvore... a história do corte daquela árvore pode ser vista do ponto vista simbólico, mitológico, religioso, no quadro das religiões tradicionais, dos espíritos que aí moravam. E pode ser vista como um choque entre a modernidade e o passado que não queria que se mexesse ali... mas era preciso rasgar aquilo, asfaltar, criar a urbe, avançar... o famoso progresso, não é, o crescimento ou o desenvolvimento. Tudo pode ser narrado sem esse facto, sem a lagoa do Kinaxixi, sem a mafumeira, sem os espíritos... mas acho que será um relato mais pobre do que se relatarmos com todas aquelas nuances. Mas sobre o Kinaxixi este senhor [referindo-se ao escritor Arnaldo Santos] pode me corrigir, ele gosta de me corrigir, ele que também foi “apanhado” pela mafumeira. Eu fui apanhado pelo galho da mafumeira, na chuva. Se era um sinal, se não era um sinal, não sei.
Em termos de militância o coração está antes do cartão
CADERNOS ÉME – No início desta conversa perguntei-lhe se podia tratá-lo por “Camarada”...
LV – Com certeza.
CADERNOS ÉME – Mesmo em Portugal, nesses últimos 14 anos, foi acompanhando a evolução política do país? Ou reactualizou-se agora, no seu regresso?
LV – Eu acompanho sempre. Claro que não é no pormenor. A questão política do nosso país já não se vê só nas questões de pormenor, nem nas questões tácticas ou circunstanciais. Obviamente que estando longe, não podendo ver o dia-a-dia, eu vou tendo conhecimento do que foram as opções estratégicas; e também não tenho formação política nem conhecimentos para dizer se foram certas ou erradas, naquele momento. Só posso ver é o resultado, como cidadão e como “camarada”. Porque isto de ser do MPLA, primeiro não é o cartão. Primeiro é o coração, depois é que é o cartão. O cartão a gente perde; rasgam-nos ou caçumbulam-nos. Mas o coração, este, ninguém nos tira.
A questão estratégica deve ser medida por resultados. E quando, agora, no dia 11 [de Novembro] eu fui posto perante o resultado... Se houvesse um só resultado já era muito bom para uma geração.
Nós tivémos a sorte histórica de poder participar num momento absolutamente ímpar da nossa história, que foi a luta de libertação nacional, que deu lugar à independência política. A independência política está aí. Nunca esteve em causa. Outra coisa: a integridade territorial. Quando agora nós percebemos que todos os planos, desde há muito anos, era se para nos dominarem fosse preciso partiam-nos aos bocados... Ninguém conseguiu partir a nossa Nação, o nosso território. Estão aí as nossas fronteiras... E a despeito, e sobretudo devido a multiplicidade cultural e sociológica do nosso país, a unidade nacional está aí. Ao fim de 31 anos de independência, diga-me um outro país que se pode gabar desses três factos que são estruturantes e estratégicos? Não são muitos.
Os quatro anos de paz traduzem-se no vertiginoso crescer desta cidade. E eu espero que quando visitar Benguela, Lubango, Cabinda e outros lugares, encontre esse mesmo fervilhar. É certo que há muitos defeitos... Mas eu me lembro dum mais velho que me ensinou, no campo de concentração, uma coisa: quando passa um elefante, o caçador não pode estar a olhar para as pulgas. Porque o elefante leva lama, leva pulgas, tem a pele rasgada, carrega porcaria... você vai dizer “ai, o elefante está cheio de porcaria!”... Está a passar um elefante e você está a olhar para as pulgas?
CADERNOS ÉME – Foi propositado fazer coincidir o lançamento do seu livro com o dia da Independência do país?
LV – Quando me perguntaram qual era a data que queria para o lançamento, eu não pensei duas vezes. Se tivesse pensado teria percebido que no dia 11 há coisas muito, muito mais importantes do que o lançamento de dois livros de dois velhos escritores. Mas era uma parte daquele orgulho. E sobretudo porque eu pedi apenas para que no lançamento estivessem meus restados camaradas do campo de concentração do Tarrafal, a quem o livro é dedicado. Foi só o entusiasmo. Depois a realidade obrigou a corrigir. [Inicialmente previsto para o dia 11 de Novembro, o acto formal de lançamento acabou por acontecer no dia 14].
Participação na luta pela independência nacional
CADERNOS ÉME - Recuemos no tempo. Pode falar-nos das circunstâncias que o levaram ao campo de concentração do Tarrafal?
LV – Eu acho que isso individualmente não tem importância, porque nós tivémos o privilégio histórico, a nossa geração, de estar naquele momento histórico em que as condições se reuniram para que a luta pela libertação nacional, pela independência política, tivesse sucesso.
CADERNOS ÉME – A questão do mérito coloca-se porque apesar das condições históricas, as pessoas tiveram que agir em determinado sentido...
LV – Pois, mas houve sempre resistência popular ao invasor, houve a partir do momento em que começou a haver intelectualidade, a introdução da imprensa... isso você sabe melhor do que eu. Houve vários surtos. O nacionalismo angolano não começou no pós-segunda guerra mundial, tem raízes pelos séculos fora... se não quisermos ver o nacionalismo duma maneira estreita, como uma ideologia. Não. Esse sentimento, esse movimento que resultava do choque e das contradições das forças, entre invasores e invadidos, ocupados e ocupantes, os que colaboravam e os que não colaboravam, os reinos e os que vinham... isso se foi formando, se foi caldeando o nosso país.
Então, nós tivémos o privilégio de estar naquele momento histórico e participámos. Participações individuais? Foram sempre participações de grupos, de tal maneira que, por exemplo em 1959 (para pôrmos a coisa já naquele período em que a polícia política portuguesa, a PIDE, já estava instalada e começou a actuar organizadamente sobre as ideias e os movimentos nacionalistas...) todos os dias saíam panfletos e não eram assinados pela mesma organização. Uma pessoa podia às vezes copiar a ideia que saía num panfleto, voltar a glosar esta ideia, que já era assinada por outro dos movimentos que proliferavam: MINA, MIA, ELA, PLUA, PCA... que sei eu?
Foi essa a época que veio da luta pela difusão das ideias nacionalistas, pela organização e contra a repressão, que depois deu, como resultado, uma maior eficácia e a possibilidade do MPLA dirigir essas forças todas que actuavam em seu nome, com o seu programa (muitas vezes não lido, só de ouvido: sabia-se que o programa mínimo era este, o programa maior era aquele...). Para resumir, o camarada Mendes de Carvalho foi o que até hoje, como é um escritor, é o nosso mais velho e o nosso mestre em muita coisa, quase tudo, sintetizou melhor o MPLA. Ele disse que o MPLA é um rio de muitas águas. Isso é o que faz a força do MPLA. Nós tivémos a sorte de estar ou num ribeiro, ou num afluente da margem esquerda ou num afluente da margem direita, às vezes estávamos só no muije, outros estavam numa pequena lagoa... todas essas águas quando se juntaram foram imparáveis. Hoje parece que isso é reconhecido.
CADERNOS ÉME – O Luandino continua modesto. Na verdade ficou preso quantos anos?
LV – Da primeira vez que fui preso, no Processo dos 50, tiraram-me porque eu era muito miúdo e, (penso eu que o juiz interpretou, para o despacho de pronúncia final, orientações superiores) não convinha misturar sobretudo os brancos que tinham uma boa situação... como é que uma pessoa que é gerente de uma empresa, tem dinheiro, tem privilégios... “se mete nisto?”, como eles diziam. Depois, em 1961, fui condenado a 14 anos e cumpri 12 em prisão; depois pegaram em mim e puseram-me em Lisboa com residência vigiada. Tinha uma caderneta e cada vez que queria me deslocar tinha de ir à PIDE, eles punham lá um carimbo... “segue para Santarém”... Ia lá visitar o meu pai... quando lá chegava a primeira coisa a fazer, antes de ver o meu pai, era me apresentar à PIDE para carimbarem a caderneta... Só depois é que, vigiado obviamente, podia visitar a família.
Temos que render homenagem é à memória dos milhares e milhares de angolanos que morreram, que deram o seu sangue, a sua vida, para a conquista da independência política. Nós que passamos estes anos todos de cativeiro, temos o direito a dizer isso com a modéstia e ao mesmo tempo o orgulho que temos nisso. Mas o nosso sofrimento (pelo menos falo pessoalmente) comparado com o das grandes massas... não, não tem comparação possível. Não é ser modesto... Trinta e um anos depois a gente já pode ver qual é realmente o nosso lugar. É um pequeno lugar, está ali, não é mais do que isso.
Uma torrente de escrita chamada “Nós, os do Makulusu”
CADERNOS ÉME – Escreveu “Nós, os do Makulusu” em 15 dias. Continua com este ritmo frenético de escrita?
LV – Não. Em relação ao “Nós, os do Makulusu” até hoje não compreendo... Eu não sou uma pessoa muito mística, ao contrário aqui do meu compadre, que tem a abertura de espírito suficiente para enquadrar desde o misticismo ao realismo mais científico, só comprovado por experiência... É verdade que o ambiente cultural da nossa terra e o ambiente natural, também um bocado mágico, dá-nos essa percepção de que nem tudo na realidade é perceptível apenas com os instrumentos científicos, da razão. Há coisas que é melhor desconfiar. Desconfiar é uma atitude correcta. Enquanto não tivermos a certeza desconfiámos. Alguém passeia em nós.
Nós atravessávamos no campo de concentração um período muito, muito difícil. As notícias que nos chegavam... Não sei como é que nos chegou a notícia da morte do Hoji-ya-Henda... e também d’alguns problemas que houve na Checoslováquia... a morte do Che Guevara... Mas sobretudo internamente nós passávamos um período de muito mais repressão, muitas limitações... E foi também um período muito difícil para mim, pessoalmente, estive muitos meses sem notícias da família... Então sucedeu que este livro [“Nós, os do Makulusu” ] foi escrito em 7 dias.
Nós saíamos da caserna para dar umas voltas, para lavar a roupa, para apanhar sol... o chamado recreio... Eu sentava-me no chão, debaixo de uma grande acácia, no meio do campo, e fui escrevendo. O romance foi escrito assim, como se eu estivesse, e agora vou arriscar, possuído por um espírito. Alguém me diz que sim, que é assim, porque foi nessa mesma árvore onde o Mendes de Carvalho gravou à canivete uma frase, que eu já não lembro e que ficou lá. E ambos sofremos muito, anos depois, no dia em que visitámos de novo aquele campo e vimos que uma moto-serra tinha cortado aquela árvore. Outras árvores ficaram, mas aquela tinha sido cortada. Fazendo ficção, estou a ler sinais que não existem. Mas a verdade é que estas coisas se passaram. Como é que nós, por exemplo um mais velho como o Mendes de Carvalho ou eu que também já vou a caminho de ser um kota, como é que nós vamos ler isso? Porquê que cortaram precisamente aquela árvore? Ah, é o acaso... Outros dizem, ah, isso é um milagre... Há muitas coisas na vida para as quais a curta vida humana, quer individual quer às vezes grandes colectivos, ainda não pode encontrar resposta. A resposta é mais estratégica, precisa às vezes de séculos. Ainda há pouco tempo na Europa toda a gente defendia que a terra estava quieta e que o sol é que girava à volta da terra. Hoje sabe-se, cientificamente, que é o contrário.
CADERNOS ÉME – No quadro global da sua obra, qual é o livro que mais aprecia? Incluindo “O Livro dos Rios”.
LV – É difícil dizer. Não é a velha e estafada imagem de que todos são nossos filhos e que todo o pai ama a todos por igual. Todos eles, quando os publiquei, publiquei conscientemente. Tenho a noção do que cada um deles representa ou pode ter de valimento. Mas se me disserem assim: só podemos editar um livro... Em homenagem a esse espírito que naquele momento deve ter habitado em mim (e tenho pena que se tenha ido embora depois) eu escolheria mesmo o “Nós, os do Makulusu”.
CADERNOS ÉME – Acredito que tenha uma ideia geral daquilo que é a literatura angolana hoje. O que acha dela?
LV – Nenhum de nós pode fazer futurologia. O hoje da literatura angolana conheço mal, porque em Portugal não chegam algumas obras, pelos motivos que todos sabemos. Conhecendo mal era muito atrevimento estar a fazer um balanço. A única coisa que eu posso dizer, é tentando também ver as coisas em termos estratégicos, fazendo a leitura do passado, tentando tirar ilações. E se no fim do século XIX nos debruçássemos ou estivéssemos a ver a literatura que era produzida naquele tempo, nomeadamente a que era publicada nos jornais, se se pusesse essa questão aos homens do fim do século XIX e princípios do século XX, àquela geração, será que eles poderiam por exemplo prever a geração dos Novos Intelectuais de Angola, o movimento da Mensagem... seguramente que não. Retrospectivamente, nós podemos agora encontrar uma ligação entre a literatura feita em nome de ideias proto-nacionalistas, vamos utilizar o termo, e a que depois apareceu já com ideias mais definidas, mais nacionalistas claras. Mas é lendo, fazendo a leitura para trás. E quando o movimento da Mensagem produziu a [revista] Mensagem ou quando o Mário [de Andrade] e o Francisco José Tenreiro publicaram o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa podia prever-se, por exemplo, o que foi a actividade de 1975 a 1980, aquelas tiragens de 15 mil, 25 mil exemplares, os livros a circularem a preço de maço de tabaco, as FAPLA a distribuir quase com um carregador [de munições] um livro... Podia-se prever? Era muito difícil. O que une isso tudo é que há uma linha de continuidade no modo como se vê a relação do homem angolano com a terra e os seus deveres para com a realidade. Em todos os escritos há uma linha de continuidade que pode ser simplesmente reduzida a isto: no meu entendimento o escritor angolano sempre foi comprometido civicamente. Teve sempre uma noção de que a sua arte é a literatura, que é a expressão dum sistema um pouco autônomo, mas o cidadão nunca fica de parte; há um mínimo de participação que resulta dessa consciência cívica.
CADERNOS ÉME – Essa participação cívica tem necessariamente uma expressão política?
LV – Às vezes tem expressão política e até militar. Houve escritores que foram para a guerrilha... A participação cívica, como cidadãos, ficou na maneira como os escritores angolanos vêem a sua literatura. E penso que esse traço também define o nosso sistema literário nacional. Há críticos que dizem “ah, estes são poemas militantes”. Está bem. Muitas vezes a qualidade literária é aferida por isso mas outras vezes é essa característica que dá a grande qualidade literária. A gente pode dizer que o poema do António Jacinto, “O grande desafio”, é um poema absolutamente político; é radicalmente político... E é, em simultâneo, radicamente literário. Estas coisas não são muito simples, nem se pode lançar o anátema de que “ah, é militante, está a fazer poesia militante, logo, não presta”. Ou ao contrário, “ah, não é militante, logo, é bom”. Em última instância a obra publicada é que responde, não é o homem, sendo ou não militante. Agora, o homem que faz a obra está lá na obra, quer seja como presença quer seja como ausência. E o responsável último é ele.
Quando se está diante da globalização…
CADERNOS ÉME – Nós estamos num mundo cada vez mais globalizado. Como é que se vê, a si e à sua obra, neste mundo globalizado?
LV – Eu vejo a globalização como esse grande movimento de aproximação das actividades económicas em todo o mundo, o que, por arrasto, leva também a aspectos sociais e culturais. Penso que me está a dirigir a pergunta no sentido de eu, talvez, estabelecer a minha relação com as novas formas de informação e comunicação. Eu confesso que quando começou esse grande movimento, fiz uma má avaliação. Não do alcance, porque se percebeu logo que essa revolução tecnológia ia trazer uma nova revolução no modo de entender e de nos relacionarmos com o mundo. Fiz uma má avaliação do tempo. Pensei para comigo, “bom, quando isso chegar a ser um dado fundamental no relacionamento entre as pessoas e, no nosso caso, no relacionamento das pessoas que vivem no campo da criação ou das ideias ou da troca de ideias ou do conhecimento ou da informação... quando isso chegar eu já cá não estou”. Pensava que levaria algum tempo mais e afinal sou surpreendido, por exemplo em 2005, com essa realidade de ser um excluído, um info-excluído.
CADERNOS ÉME – Pode remediar isso...
LV – Pode ser remediado. As tecnologias são humanas, bem como o modo de as utilizar. Portanto, não é nada que qualquer cidadão, desde que queira, não possa adquirir as competências mínimas para também meter o seu fiozinho na rede e ficar ligado a todos os outros cidadãos, individual ou colectivamente. Disso eu tenho a perfeita noção. Eu fiz uma avaliação do tempo e então fiquei descansado com o meu método de trabalho da canetinha e apontamento e confiando na minha memória. Agora dou-me conta que isso é insuficiente como modo de estar ligado, de estar informado e de estar a participar tanto quanto mais não seja tendo conhecimento do que se passa. Ainda não tomei a decisão de me “incluir”, por preguiça. É que um infeliz traço do meu carácter é ser muito preguiçoso; e isso é capaz de dar muito trabalho…
CADERNOS ÉME – Querendo ou não, a informação sobre o Luandino e a sua obra está muito presente na Internet.
LV – O meu neto e o meu filho e outras pessoas ficam muito irritados quando eu digo “printa e mete no correio”, quando afinal é só fazer um clique para enviar ou reenviar [Risos].
CADERNOS ÉME – Como é que tem sido a sua relação com as outras artes angolanas? Essa fruição, essa apreciação das outras artes acrescenta alguma coisa à sua criação literária?
LV – Até 1992 eu tive uma relação muito intensa com as outras áreas da criação artística. Eu era inclusive membro da UNAP [União Nacional dos Artistas Plásticos]. Desde criança que eu gosto da boa música.
CADERNOS ÉME – O que é que considera “boa música”?
LV – Bom... Música que é feita com algum conhecimento técnico e com sinceridade. Por exemplo oiço sempre com muita atenção a música tradicional, a música popular, sobretudo o cancioneiro urbano. Com a pintura... sou um desenhador e pintor frustrado. Houve uma altura em que na UNAP me incluíram nos “pioneiros da gravura”... Fiz uns linóleos no tempo em que nos multiplicávamos com muitos pseudónimos para ocupar o lugar nos jornais, para dar a ideia de que éramos muitos, para a PIDE ficar baralhada... eu era o Luandino, o José Muimbo, o Zé Graça... A gente ia multiplicando também as expressões, para baralhar a polícia.
Sou apreciador, pouco crítico, de jazz. O Gegê Belo não gosta que eu diga isto, mas eu gosto de todo o jazz, sobretudo dos priomórdios, do período da formação, das influências, quando vêem as canções de trabalho mais os blues...
Mantive sempre ligações, por exemplo com o Ole, o Kidá e os jovens que estavam, em pintura, a estudar em Portugal, o Vitó (o filho do Viteix)... Pude me dar conta de que para além da manutenção de uma linha que se vê em quase todos, de expressão artística baseada não só em temas mas também em figurações populares e uma coisa interessante que era uma certa expressão surrealista, sobretudo em alguns pintores dos anos ’90, já não me lembro de nomes, acho que se fez um bom caminho nas artes plásticas.
Na música houve uma multiplicidade de estilos e a entrada do conceito de fusão e a tal globalização, que faz com que se façam descargas de tudo na Net e se misture... Mas não há dúvida que a música sempre foi um sector de grande vitalidade. Quanto ao teatro não tenho absolutamente nada a dizer, já que não tenho acompanhado o seu movimento.
No cômputo geral, a actividade artística e criativa acompanha o desenvolvimento do país. Umas vezes com uma certa perplexidade, à procura de caminhos; outras já com a consciência de qual é o caminho da afirmação. Acho que as artes também vão neste movimento de crescimento e de irrupção das forças que estavam contidas pela guerra.
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