segunda-feira, 22 de julho de 2019





FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL CORI (2)
UM ROMANCE DE MATRIZ REALISTA

Por: Hélder Simbad




 Mas quem seria tão estúpido ao ponto de apresentar, como prova de um crime, uma obra literária? O que é ficção – não ignorando as noções de intertextualidade e de verossimilhança que por analogia podem nos remeter a situações reais – deve ser interpretado como ficção e não o contrário. Apesar de ténue, nunca se deve transpor a fronteira, pelo que qualquer semelhança entre as ideias susceptíveis de serem extraídas desse livro e a realidade é mera coincidência.
Sobre o autor, Isaquiel Cori, diga-se que é um dos mestres do realismo angolano do pós-independência, pela coragem, relativamente às opções temáticas, e pela concisão do discurso e expressividade. Por esse motivo, faz parte da restricta elite de escritores que é lido e estudado anualmente naquela que é tida como a maior Universidade do país, coexistindo com nomes como os de Agostinho Neto, Luandino Vieira, Pepetela, Almeida Garret, Agualusa, etc., etc.
«Dias da Nossa Vida» é um romance de matriz realista que nos dá a conhecer o quotidiano de um responsável dos Serviços de Informação da República de um país fictício que, numa relação de analogia entre a realidade e a ficção, bem se poderia chamar Angola, em razão da biografia do autor; do quadro político que traça, muito similar ao de uma Angola não tão longínqua; da alusão à cidade capital, Luanda, e de todo um conjunto de factores e ideais que vêm formalmente objectivadas na obra, que se ligam à realidade através das categorias de intertextualidade e verossimilhança.
 O título «Dias da Nossa Vida», por inerência do possessivo «nossa», pode sugerir a ideia de um diário colectivo. Entretanto, tal ideia se desvanece por força do enredo e dos monólogos que introduzem cada capítulo (a partir do segundo), mantendo-se, ainda assim, apesar do caracter heterodiegético do narrador, a ideia de um «diário» implícita. Trata-se, na verdade, de um «romance de personagem», em que os eventos são relatados por uma entidade intradiegética que se anula completamente na diegese e que parece emergir nos monólogos que introduzem os capítulos, confundindo-se algumas vezes com o protagonista ou com o próprio autor. Um romance de enredo simples – pelo número de acções – cuja complexidade reside no modo como os eventos se vão entrelaçando através duma relação de causa e efeito que se torna surprendente pela forma como o narrador brinca com o tempo da história.
«Dias da Nossa Vida» traça o degradado quadro político-social de uma sociedade contemporânea em vias de convulsão, causada por um grupo de activistas cívicos em cujo caderno de reivindicação se discutiam, entre outros assuntos, questões como a «má governação, corrupção encabeçada pelo governador, pobreza extrema da maioria da população, saque das terras dos camponeses, favorecimento de estrangeiros em prejuízo dos nacionais”. O grupo era liderado por Armindo Gasolina – um jovem «baixinho de estatura», destemido, provavelmente nos seus 20 anos, bastante inteligente, perspicaz, com forte educação de base, mestre em sarcasmo – e decidiu (o grupo) reivindicar as acções daquele governo, como se pode constatar nas seguintes passagens:
«somos um movimento de jovens estudantes patriotas agastados com a corrupção que grassa no país, e cá na província, em particular». Página 66.
 Para se evitarem males maiores é chamado o herói, Reinaldo Bartolomeu, chefe dos Serviços de Informação da República (SIR) naquela província, que o autor prefere não nomear, provavelmente para confundir os leitores (?) na medida em que ao se referir a Luanda-capital, deixa explicitamente a ideia do «país (Angola) », que terá sido o «motivo estético» para construção da narrativa. Reinaldo Bartolomeu vive dividido entre o trabalho e a família, facto que dificulta, em muitos casos, a eficiência das suas acções, dedicando-se com maior afinco ao trabalho. Verdade que pode ser explicada pela natureza do trabalho que desempenha e por se constituir como o suporte financeiro que move a vida da família. Dois eventos simultâneos fazem da sua vida um gabinete de crise: a manifestação dos jovens activistas e a decisão de seu filho, caçula, Andrezinho, nos seus sete anos de idade, em querer ser «bufo» como o pai quando crescer. Para o último caso, Reinaldo parte em busca de respostas, encontra formas de deixar a mulher longe dos acontecimentos, pedindo-lhe que vá para Luanda; vai fazer um breve trabalho de campo à escola do filho e conclui que não é ali onde nascera um pensamento que terá provindo provavelmente no seio familiar, através de conversas esporádicas que geralmente os familiares trocam. «Na família (de Reinaldo) havia uma verdadeira dinastia de bufos» cuja árvore genológica nos levaria a um período em que não se falava ainda de Angola, senão de reinos:
Eis a amostra de um quadro genealógico da família de «bufos» de Reinaldo:
Período
Relação familiar
Território
Órgão de representação
Função
Pré-colonial
Ancestral
Reino da Matamba e Ndongo.

Guarda da Corte
Segurança pessoal da Rainha Njinga
Colonial
Parentes
Portugal, Angola Ultramarina.

PIDE e MPLA
Agentes duplos, operando simultâneamente na PIDE e nas forças clandestinas do MPLA
Pós-independência
Tio1, primo da mãe;
Tio2, irmão da mãe
Angola independente, mergulhada em guerra fratricida
DISA;

DISA
Alto dirigente da DISA
Membro da DISA, morto no 27 de Maio

Pós-4-de-Abril (dedução)
Sobrinhos
Angola em paz
Serviços de Informação da República
Bufos

Fruto dessa linhagem fiel, na história dos Serviços de Informação da República, Reinaldo Bartolomeu gozava de muitos privilégios, aliado ao facto de ser confidente do governador Arlindo Seteko «Não Se Mete», personagem-tipo, protótipo de governação que num passado recente caracterizava a Angola Real. Arlindo Seteko «Não Se Mete» tinha a seu favor uma história de luta anticolonial que o levara a sacrificar a juventude, era um homem frágil do ponto de vista psíquico, com uma variação espetacular de humor, que em termos psicopatológicos poder-se-lhe-ia diagnosticar o transtorno bipolar associado a outros, porquanto ora estava «deprimido» ora «muito alegre» e gostava de alimentar o seu ego com bajulação; gozava de alguma autonomia, ao ponto de impedir que jornais privados circulassem pela «sua» província pelo facto de supostamente o terem caluniado; «era mestre em misturar tudo», e fazia uma gestão danosa da coisa pública; não respeitava as autoridades tradicionais; praticava um nepotismo exacerbado, ao ponto de invocar o principio da discricionariedade para pegar numa parcela territorial maior que a Alemanha, elaborar uma lista de beneficiários, dentre os quais, os primeiros 100 nomes eram de familiares seus, incluindo os sete filhos que tinha; era um ser tão meticuloso que conseguiu deixar estupefacto a mais atenta das personagens, Reinaldo, ao descobrir as riquezas que o chefe escondia dele.
Relativamente ao problema maior, os tumultos que ameaçavam a estabilidade social, Reinaldo Bartolomeu, pressionado pelo mais alto dirigente dos SIR, a partir da capital, Admirável Redondo, autoritário, rude, defensor de atitudes violentas, movia-se dentro duma mentalidade político-partidária; mal aconselhado pelos dirigentes das forças de segurança local, vai destacar-se, sobretudo, pela sua inteligência – evitando medidas extremas, apelando ao diálogo, ao bom senso. Não se pode negar também o facto de Reinaldo ter contado com alguma sorte, resultante da mudança cataclísmica das atitudes de Armindo Gasolina, que terá sido motivado provavelmente por aquilo que poderia ter sido um derramamento de sangue, aquando da mega manifestação.
Na historiografia da narratologia angolana, Luanda ocupa o «espaço diégético» central, sendo esmagadoramente eleita pelos romancistas como o espaço físico de eleição, interagindo com outros espaços, sobretudo naquelas narrativas de revisitação ao passado nostálgico, que nos levam aos caminhos da guerra fratricida de fundamentos inaceitáveis, porquanto só há guerra quando os homens perdem a razão, entendendo-a  assim como é: um acto irracional protagonizado por seres racionais. Isaquiel Cori, em «Dias da Nossa Vida» subterceiriza esse espaço habitual que é Luanda, construindo uma cidade fictícia que, no âmbito do dialogismo literário, interage com todas as restantes províncias de Angola, podendo ser o referente literário de cada uma delas.
A concisão, as opções temáticas, o linguajar – oscilando entre a prosa corrente e os tropos que nos levam à poesia,
« A filhota fluía leve, levezinha, a traçar figurinhas invisíveis no chão. Reinaldo mirou a mesa do Governador e viu-o só (…) numa cadeira dourada de encosto alto.» Página 128.
– são procedimentos técnicos de estruturação da narrativa aos quais Isaquiel Cori interpõe recurso para tornar a sua prosa mais expressiva. Contudo, a narrativa eleva-se, ainda mais, em termos de expressividade, quando joga a tal linguagem continuamente oscilando entre a prosa corrente e os tropos com o «erotismo», este espaço sublime de contemplação do belo:
« O lençol branco mal cobria a sua nudez, de mulher madura (…). Reinaldo Bartolomeu aproximou-se, sorrateiramente, e foi com a boca toda a arfar de sede, para o vértice rasgado do corpo dela, que ela adorava que ele para lá fosse com a boca» Página 87.
Entretanto, torna-se necessário referir que o «erotismo» em «Dias da Nossa vida» não reside apenas no contacto físico e íntimo entre as pessoas, funcionando como uma ferramenta linguística  de manutenção  da expressividade como se pode vislumbrar no excerto que se segue:
«… o pedaço de terra lavrada parecia uma mulher em idade primaveril no auge da ovulação, palpitante, sedenta e desejosa dos esguichos seminais do homem amado.» Página 96.
« Dias da Nossa Vida» configura-se como uma paródia contra uma forma de governação que fez escola ou tradição pela negativa, uma análise clínica de um escritor que veste a capa de reformador em quase todas as suas obras. Mas ela, a obra em análise, está impregnada de vários simbolismos, que resultam principalmente das superstições de sociedades onde o «animismo» é escola invísivel.
« ‘Logo dois cães a se foderem mal um gajo sai à rua?’. Uma sensação de mau presságio misturada com um medo repentino e visceral obscureceu a mente de Reinaldo e arrepiou-o todo. ‘Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?’» Página 13.
Já foi referido aqui que a obra em análise é, decerto, um romance de personagem. Em si  mesma, isto é, de um ponto de vista ontológico, é a representação da vida do protagonista, inserido numa familia algo desestruturada por força do seu «serviço» e por razões académicas. Por alguma razão, a narrativa começa em casa, com um dos integrantes da família do herói ausente, no caso, a filha; e termina numa festa, em casa do Governador, com outro integrante da família ausente, provavelmente por força de uma norma social que impede menores de estarem em certas cerimónias, revelando assim a incapacidade de o herói em ser uma figura omnipresente que se doa simultaneamente à família e ao trabalho.
Por fim, «Dias da Nossa Vida», pese embora, circunscreva a sua acção a determinado periodo da realidade que nos envolve, não está imbuída de anacronismo pelo simples facto de esse período ser recente e ainda dialogar com certas realidades  que, apesar da mudança de paradigma de governação, conservam essa mentalidade.




FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL CORI (1)

 A TEIMOSIA DA ESPERANÇA



                                                Por: Adriano Mixinge
Historiador e Crítico de Arte







A primeira década e meia de paz e prosperidade em Angola (2002-2015) coincide, também, com anos de relações sociais, económicas e políticas tensas e conflituosas, próprias de um país que é, ainda, a emanação de uma forte tradição monopartidária: sem nunca perder a confiança, tenta reerguer-se sobre as cinzas e a pólvora dos anos de sucessivas e prolongadas guerras, aspira a reestruturar o seu tecido social, melhorar a sua economia e a educar o cidadão como seu património mais valioso, preparando-o para enfrentar os desafios do presente e do futuro.
Com a pacificação e o crescimento económico notório do país surgiram inúmeras perspectivas de desenvolvimento, umas prestes a consumar-se, outras somente esboçadas, mas todas elas estão matizadas pelo optimismo e, também, pelos medos provocados pelo surgimento da classe média e da burguesia nacional (novos ricos) refém da corrupção, a emergência de uma sociedade civil consciente, activa e engagée preocupada com a liberdade de expressão, a distribuição justa da riqueza, a transparência na governação e a consolidação da democracia.
É neste contexto histórico amplo e complexo, herdeiro da mais pura tradição literária à volta da esperança assumida como um valor sagrado que serviu para resistir face ao colonialismo e que, actualmente, é sinal de rebeldia construtiva e teimosia constante, que transcorre a história do último romance de Isaquiel Cori: Andrezinho, o menino que, repetindo o destino familiar, sonha com ser "bufo" e um velho que, enquanto agoniza, vai escrevendo o diário que lhe faz desejar um mundo melhor são os dois protagonistas que, em "Dias da nossa vida", nos chamam imediatamente a atenção e nos incitam a ler  uma história contada de uma forma cuidada, com uma escrita contida e eficaz.
         Duas histórias entrelaçadas, uma patética e alucinante, sem deixar de ser real, e a outra intimista e testemunhal, com uma voz marcadamente transcendente, ambas narradas através de pequenos episódios ou reflexões que se vão concatenando de maneira fluída, independentemente da diferença do perfil dos narradores, articulam este que, a meu ver, é já o romance mais maduro e conseguido de Isaquiel Cori.
         "Dias da nossa vida" é um romance que, pelas histórias que conta, pela maneira e oportunidade dos temas que aborda e, também, pelo alcance e desfecho que propõe, faz jus ao seu próprio título. Mas, que história é essa que "Dias da nossa vida" conta? Quais são as personagens que desfilam no romance? Qual é a principal mensagem do livro?
         Uma história patética e alucinante preocupa  Reinaldo: Andrezinho, o filho,  herdeiro de uma "dinastia de bufos", parece estar a ser influenciado por alguma força desconhecida, que lhe estaria a induzir a ser agente do serviço de informação.
         Mas dois conflitos permitem contar a história. O primeiro conflito é o que acontece entre Reinaldo Bartolomeu, o pai de Andrezinho, agente dos Serviços de Informação da República (SIR), discípulo de Admirável Redondo, e que é homem de campo do Governador Arlindo Seteko "Não Se Mete", novo rico, "mestre em misturar tudo", que gere a província à sua maneira e através de expedientes diversos, sempre com recurso ao uso abusivo dos poderes de que dispõe: eles fariam tudo para  abafar (ou desbaratar) qualquer manifestação de estudantes contestatários liderados por Armindo Gasolina.
         O conflito secundário, mas não por isso menos importante, é  aquele em que se mostra a história de amor e desafecto que vive Reinaldo Bartolomeu com Rebeca, a esposa, e  Ana Flor, a irmã desta, numa tensão sexual inconclusa e que serve para  fazer um retrato de alguns dos vícios, hábitos, posturas e inclinações de certas famílias de classe média e da burguesia nacional emergente.
         A história intimista e testemunhal do livro é a do diário de um indivíduo - Lento o chamavam no tempo em que foi soldado - face ao patetismo e ao compêndio de situações surrealistas vividas, uma série de histórias que cimentam um desencanto incapaz de asfixiar a esperança, uma mensagem  que, pelo desfecho das histórias, fica bem patente numa série de interrogações:
          "Mas será a morte, necessariamente, escuridão? Não será um vasto túnel de luz em que a esperança, teimosa, é um ponto escuro, lá bem no fundo?".
         Enfim, o “Não Se Mete”, o “Gasolina”, o “Lento” e as outras personagens são diferentes protótipos sociais que ajudam a articular as histórias do romance “Dias da nossa vida”, de Isaquiel Cori, que é, no seu conjunto, um retrato colectivo da sociedade angolana e coloca o cidadão e a República face ao espelho das suas vivências e da complexidade da actual situação política, social e económica.

Madrid, 26/09/2016

terça-feira, 13 de novembro de 2018

ESCRITOR MANUEL RUI: “Não troco este país por outro”


Isaquiel Cori*

Pertence à geração que proclamou a Independência Nacional e esteve no centro dos acontecimentos da época, tanto na qualidade de ministro da Informação do Governo de Transição como de alto responsável do MPLA. Escritor consagrado, autor da letra do hino nacional, Manuel Rui tem opinião qualificada sobre a história recente e o momento actual do país. "Dos Santos deveria voltar à sociedade civil, fazer conferências em universidades, falar com o povo, ter um programa de televisão sobre as suas memórias", afirma.

Foto de Paulino Damião "Cinquenta"

É autor de letras de músicas, algumas com muito sucesso de público. Como é o seu processo de participação nas músicas?
Eu faço letras em cima de músicas e as pessoas dizem que é difícil. Prefiro que me dêem uma música para eu passar uma letra em cima. A pessoa dá-me a música e eu passo a letra em cima. Ao criar o hino da UCCLA, fiz uma letra que tinha estrofes com x sílabas e depois outra com menos sílabas e o músico meu amigo disse-me que não gostava de trabalhar assim, com sílabas… Eu disse que não era problema nenhum, “dá-me a música e eu ponho o mesmo conteúdo, as mesmas palavras dessa letra nas sílabas que me trouxeres”… O “Pôr do sol”, do André Mingas… eu fui a casa dele e ele disse-me “tenho aqui uma coisa para te mostrar, que fiz agora”… Tocou a primeira frase, pedi-lhe papel e em dez minutos fizemos o “Pôr do sol”: “Tantas vezes o mar já viu…”
Na criação do Hino Nacional a letra também foi feita em cima da melodia?
Foi uma emergência. Dois dias antes da independência, ali em minha casa, no Saneamento, o Rui Mingas com o violão tirou uma frase musical e eu pedi-lhe para repetir enquanto escrevia… Foi assim que surgiu o Hino. Estavam pessoas a assistir, a letra, o Hino surgiram ali mesmo.
O nosso Hino é considerado um dos mais bonitos do mundo…
Sim. Tenho uma enciclopédia de hinos e  falam isso. Falam da letra, da sua intemporalidade: “Unidos lutaremos pela paz, com as forças progressistas do mundo”… Isso é intocável. Quando quiseram mudar o Hino, a Unita quis mudar, fui chamado ao MPLA, com o Rui Mingas, pediram-me para tirar o “Poder popular”; o Rui Mingas não quis. Tirei e fiz outra versão. Foi  João Lourenço quem nos recebeu, na altura. A maka era o “Poder Popular”. Mas o que é certo é que as Constituições dizem que a soberania reside no povo. Isso também é poder popular. Há hinos que são bélicos, falam em canhões e nunca mudaram para mísseis…
O Carlos Lamartine também participou na criação do hino?
Não. O Lamartine não estava. Mas um momento: depois do hino ser aprovado pelo Comité Central [do MPLA] alargado, que incluía os que estavam no Governo e representantes dos comités, era preciso arranjar jovens para constituirem o coro. Mas primeiro fomos à Rádio Nacional para gravar; aí estava também o Lamartine. A Katila e mais gente, inclusive eu também cantei nesse coro improvisado. O Lamartine ficou incumbido de arranjar jovens para o coro. O ensaio foi feito mesmo no 1º de Maio. Será por isso que o Lamartine diz que também é autor do Hino nacional?  Mas isso não me importa. Não me pagaram nada nem eu ia querer direitos naquele tempo. Nem tenho uma pensão. Nem passaporte diplomático tenho.
Não lhe foi atribuída uma patente militar?
Por ser autor do Hino nacional não tenho nada. Tenho uma reforma que nem vou falar na miséria…
Mas está reformado como? Funcionário público?
Não. Trabalhei em vários sítios. Numa empresa eu era consultor e tinha contrato, portanto descontava para a segurança social; a Universidade (ISCED do Lubango, onde cheguei a ser director) fez um papel de má fé, para eu não receber (tenho aí o papel). A Endiama - eu é que inventei o nome Endiama, quando comandava o processo de nacionalização da Diamang, que ocorreu pacificamente, com os accionistas a quem prometemos que seriam parceiros no fornecimento de tecnologia e na compra dos diamantes - fez um papel para a minha reforma, todo mal feito, sem o salário que eu estaria a ganhar actualmente. Olha, o papel está aí atirado. Portanto, não tenho nenhum benefício pelo Hino nacional, tirando as pessoas me alegrarem quando vou ao supermercado: “Desculpe, não é o autor do Hino nacional?” Ou os estudantes virem bater-me à porta, no fim das suas licenciaturas, para me entrevistarem sobre o Hino nacional. Essas são as únicas vantagens que eu tenho. No mais, fechei o escritório de advogados cansado da perversidade da Justiça.
O que é feito do seu projecto 11 Poemas em Novembro, que consistia em publicar todos os anos, em Novembro, um poemário com onze poemas?
Precisava de ter uma pessoa que me arrumasse os poemas. Este ano já vou tarde, mas para o ano vou retomar.
E a antologia dos 11 Poemas em Novembro?
Já saiu uma, dos primeiros cinco anos. Os 11 Poemas em Novembro saíram durante sete anos, queria pelo menos chegar aos dez anos. A periodicidade dos 11 Poemas em Novembro pressupõe pessoas empenhadas. Quem se empenhou nisso primeiro foi o Costa Andrade “Ndunduma”, depois o David Mestre, que então trabalhava no Jornal de Angola. As pessoas não ligam muito às coisas. Fico espantado quando fazem a festa das Edições Novembro… Quem inventou a Revista Novembro? E o jornal? Há um despacho, publicado e está no vosso arquivo: “Encarrega-me o camarada ministro da Informação Dr. Manuel Rui Monteiro, de proceder ao seguinte despacho:  a partir de amanhã o jornal “A Província de Angola” passa a chamar-se “Jornal de Angola”. Assinado: Fernando Oliveira. Depois reunimo-nos ali na descida onde era a “Revista Novembro”. O (Mário de) Alcântara Monteiro, fixem este nome, foi o primeiro director da “Revista Novembro”. As edições dessa revista para saírem eram uma chatice. A luta pelo jornal “A Província de Angola” passou pela explosão de uma bomba já os sindicalistas haviam tomado o jornal. Tem gente ainda viva aí no jornal que deveria contar isso tudo. A televisão, abriu contra o Conselho de Ministros, o Alto-Comissário tuga odiava a comunicação social. Fui falar com Agostinho Neto que deu luz verde e a televisão entrou no ar… mas há quem viva por omissões da história...
Qual surge primeiro: a Revista Novembro ou a Edições Novembro?
A Revista Novembro. Depois era preciso ter uma estrutura à maneira socialista, um kolkhoze, para tomar conta da revista, do jornal… Fizeram tudo para que só houvesse um jornal. Fecharam o “Diário de Luanda” por causa do Nito Alves, enquanto que em Moçambique mantiveram todos os jornais.
O espírito de participação, de engajamento político e cívico da sua geração é comparável com o das gerações actualmente jovens?
Não é comparável porque nós tínhamos a certeza da vitória. Nós éramos Tanu, não éramos Zumbi, personagens do meu último romance  “Kalunga”. E além disso, mesmo na Universidade, em Coimbra, eu tive a sorte de encontrar uma geração de ouro. Grandes poetas portugueses, músicos da craveira de um  Zeca Afonso ou Adriano Correia de Oliveira…
E eram fundamentalmente de esquerda…
Absolutamente de esquerda. Marxistas, a maioria de nós. Marxista-Leninista nunca fui, porque nunca acreditei no centralismo democrático e no governo dos operários e camponeses, que nunca existiu, era tudo uma falácia. Quando começo a conhecer os países socialistas um por um, eu disse: “não quero essa porcaria”. Congelaram o pensamento de Marx. Deixou de haver liberdade.  Havia uma aparente igualdade de satisfação de bens materiais por toda a população, mas as elites tinham as suas lojas próprias. E depois havia os campos de concentração, os delitos de opinião, as prisões… Não sei se vocês souberam, mas parece que a revista do João Melo (África 21) publicou sobre Cuba quando eu estive lá num festival do livro, estavam lá também a nossa ministra da Cultura e outras pessoas do aparelho daqui… Eles fizeram uma edição do meu livro “Quem me dera ser onda”, que lá chegou a ser considerado contra-revolucionário, sem me pedirem autorização, não vi capa nem nada. A TV dava todos os dias o Chaves de meia em meia hora, e o Fidel em fato de treino. Na conferência perguntaram-me o que achava da TV (que felizmente não tinha publicidade). “Acho que é melhor que as outras, pelo menos tem menos merda”, respondi. “Mas falta a voz popular, vocês aqui em Cuba ainda não se libertaram das esquizofrenias recebidas do Leste, como nós em Angola recebemos e foi com vocês mesmo que aprendemos a usar os cartões para comer e beber, e o próprio povo é que destruiu isso, com a sua tendência para as esferas antigas, a troca das coisas, a carne pelo peixe, o feijão pelo milho. Vocês deviam acabar com as esquizofrenias que são do Leste. E o principal, acabar com os delitos de opinião e pôr os presos políticos cá fora”. Aquilo gelou a sala. Houve pessoas da delegação angolana que saíram. Quando cheguei ao hotel, disseram-me: “camarada Manuel Rui, isso não se faz, eles são os anfitriões”. Eu disse: “mas eu sou irmão do povo cubano, que verteu sangue lá em Angola, e eu com os meus irmãos tenho de ser sincero. Há pessoas muito importantes, não são como eu, um Gabriel Garcia Marques, que também já se chatearam com o Fidel e disseram que isso tinha de acabar, tinha de mudar”. Hoje, neste momento em que estamos a falar, estou a rir-me porque a nova Constituição cubana já fala em propriedade privada.

“Neto era um comandante poderoso, com carisma e alto astral”

O apoio dos países socialistas era incontornável?
Os países do Leste, isto temos que reconhecer, apoiavam os movimentos de libertação. Mesmo na ONU batiam-se por nós contra Portugal com os americanos por trás. Só que a determinada altura houve uma espécie de pacto. Houve um aproveitamento da guerra fria. Vieram fazer a guerra fria aqui, experimentar armamento aqui. A segunda batalha com o maior número de blindados, depois da II Guerra Mundial, foi aqui em Angola. Foi uma tremenda estupidez nossa andarmos em guerra uns contra os outros, em vez de conversarmos. Mas como não tínhamos conversado durante a guerrilha, tornava-se impossível conversar com o Savimbi. E quer na UNITA, quer na FNLA, quer no MPLA, os presidentes eram a simbologia do poder e não presidentes de partidos. E estupidamente fomos aceitar aqueles acordos do Alvor, que não serviram para nada, Portugal nem tinha experiência de democracia.  A França quando dá a independência ao Senegal já tinha a democracia e o Senghor já tinha sido ministro da Cultura em França. Foi um erro tremendo, não sabermos conversar uns com os outros. Os colonos deixaram uma economia forte, uma capital que os outros não tinham. Em cada província o colono deixou um palácio, há países que não têm palácios de Presidente assim. Temos uma rede de rios, água com fartura, temos riquezas minerais, temos tudo. Porquê que nos fomos meter na guerra? Se não fosse a guerra não tínhamos esta gente toda que está cá. As pessoas que enriqueceram com a guerra… Eu não imagino a potência que seria Angola. Os sul-africanos diziam, quando conversavam connosco: “Vocês têm coisas que nós não temos. Vocês ultrapassaram o problema racial, até mesmo os problemas tribais vocês ultrapassaram”.
É a insolúvel questão do “se”. Infelizmente não é possível modificar o passado.
Sim. Ainda voltando à questão que colocou sobre o marxismo. O marxismo para mim é uma forma de pensamento para reflectir uma socedade, mas não é uma forma tipo Bíblia ou Corão, que possa incluir todas as soluções, quer espirituais quer materiais de forma dogmática e estacionária. No socialismo não há mudanças e quando as há é para importar o mais perverso do capitalismo.
Não faltaram alertas à sua geração, e mesmo à anterior, sobre o marxismo. Já se tinham publicado livros sobre as purgas, os gulag, a inexistência de liberdade e intelectuais de nomeada no Ocidente demarcaram-se do comunismo.
Sim. Aqui, quando algumas pessoas como eu agarraram nesses livros e os entregamos a pessoas que mandavam, vieram ralhar comigo. Que era contra-revolucionário. Havia pessoas com a cabeça quadrada e outras que utilizavam o marxismo para roubar. O marxismo servia para tudo aqui. Sob o olhar silencioso de Lénine. O problema de fundo é que nós não tivemos pensamento, no sentido de cientistas políticos ou pensadores políticos, como o PAIGC teve o Amílcar Cabral, mesmo o próprio Mondlane ou Samora Machel em Moçambique. É só juntar os discursos do Samora Machel e ver como é que um enfermeiro é um grande pensador. No livro do Óscar Monteiro, que eu fiz a contracapa, há uma parte em que os portugueses estão a bombardear imenso, a matar muita gente, e o Samora faz uma reunião alargada com os quadros todos, os intelectuais estavam todos lá, tinham poucos mas estavam lá todos, no MPLA sempre houve chatice com os intelectuais e divisões (Revolta Activa, etc., etc., etc.). Os intelectuais ponderaram que era preciso mudar a estratégia, ver como é que se deviam posicionar perante a forte resposta colonial; Samora disse: “O que está a faltar à Frelimo é produzir pensamento, todos nós temos que produzir pensamento, produzindo pensamento vamos vencer”. Isto define uma liderança. Agora, tem um aspecto que é inevitável, a nata do pensamento em Angola estava no MPLA. A pouco e pouco essa nata foi absorvida pelo pensamento dos guerrilheiros, dos maquisards.
Qual era o pensamento dos maquisards?
Era uma via muito estreita e empírica do marxismo-leninismo. Um pensamento igualitário, idealista, impossível de alcançar em qualquer sociedade. Enquanto que os outros já pensavam nos erros do campo socialista, já faziam uma reflexão crítica. É tudo bonito dizer que a gente vai reunir para tomar decisões, mas todos nós estamos a pensar que vamos votar na decisão que o chefe quer. Eu nas primeiras reuniões via as pessoas a correr e de repente estava eu sentado do lado direito da cabeceira do Agostinho Neto e era o primeiro a falar; se dissesse asneira estava lixado. Todos fugiam daquele lugar.
A figura de Agostinho Neto era completamente absorvente?
O Neto era o capitão do navio, um comandante poderoso, ele era  cheio de energia.
A isso chama-se carisma…
Não era só carisma. Era alto astral.
Mas essas qualidades não impediam o surgimento de outras vozes, com outros pensamentos…
Sim. Mas é no tempo do Neto que se sai do marxismo-leninismo. Sem dizer nada. Em Moçambique a Frelimo ainda fez uma pequena declaração antes.
Há quem diga com convicção que a morte de Neto em Moscovo terá resultado dessa guinada que ele faz para o centro do espectro ideológico…
Ele começou a observar que os fenómenos, a prática, não era consoante aquilo que ele teria pensado.
Enquanto autor sente-se realizado?
Não totalmente. Podia ter escrito mais. Aqui em Angola não há uma actividade editorial consequente. Não há livrarias, as pessoas não lêem. Os jornais publicam coisas que não são literatura, transformam os amigos em escritores, as pessoas compram os livros desses autores e depois não compram mais, desistem. Se for a um restaurante e a comida não presta, deixo de ir a esse restaurante.
Para si dá para viver da escrita?
Não. Os direitos de autor que recebo, neste momento, vêem mais de fora. Sempre há um disco. O ano passado correu bem, foram três livros. “Os meninos do Huambo” fazem um bocado de dinheiro, por exemplo. Agora quero publicar os meus primeiros livros de poesia, “A onda” e “Poesia sem notícia”. Tenho várias séries de crónicas. Já publiquei duas em livro, “Maninha” e “As Novas da Maninha”. A primeira série de crónicas foi publicada no Jornal de Angola, “O Kikas e o Kocas”, a falar na problemática da alteração alfabética, da ortografia, já naquele tempo. Tenho umas três séries de crónicas no Jornal de Angola, outra naquele jornal Semanário Angolense. Gostaria de publicar em livro as séries de crónicas que estão no Jornal de Angola, com um texto introdutório de uma pessoa que conheça a história do Jornal de Angola.
Como é que o Diário de Luanda desaparece?
Administrativamente. Estava lá o António Cardoso, que era um stalinista, a dirigir. Aquilo era um coito do Nito Alves. À boa maneira do MPLA, em vez de tirarem o Cardoso e o Nito Alves, fecharam o jornal. Para nunca mais abrir.


27 de Maio: “Até agora faz sentido criar uma comissão da verdade”

Naquela altura Estado e Partido misturavam-se, mas era o Partido a mandar no Estado.
Já havia Estado, Constituição, Hino Nacional, Bandeira, mas para o MPLA era como se isso não existisse. Assim, houve um conflito dentro do Movimento, fizeram uma reunião, que devia ser um Conselho de Ministros, mas fizeram uma reunião do Comité Central, onde expulsaram os chamados fraccionistas, democraticamente, quando o golpe já vinha sendo preparado. Nas vésperas do 27 de Maio de 1977 o José Van-Dúnem queria que eu me encontrasse com ele, queria falar comigo. Se eu me tivesse encontrado com ele também tinha desaparecido.
É verdade que fez parte da chamada comissão de lágrimas? Qual era o seu objectivo?
A tal comissão esteve dois dias a trabalhar. O objectivo era ouvir se pertenciam, se estiveram por dentro da organização (do golpe).
Não tinha também a missão de determinar se as pessoas eram ou não culpadas?
Não. E tudo era gravado pela televisão. Não sei se já deitaram fora as gravações. A gente não estava a fazer relatórios a dizer “mata este”, “mata aquele”. Era uma comissão com lágrima no olho, nós estávamos comovidos com aquilo. O Diógenes [Boavida], o [Ambrósio] Lukoki, eu… Estávamos a ser usados como tribunal à margem da lei. Havia um Estado, fizeram uma reunião do Comité Central, expulsaram os homens quando há a tentativa do golpe de Estado, aquilo devia passar para os tribunais, ou militares ou civis, e não ser resolvido dentro da estrutura da guerrilha. Ao contrário do que muitos dizem, que eu andei a torturar pessoas, começamos é a safar as pessoas. Mas o mundo faz-se disso. Havia pessoas que se queriam promover em Portugal e o protagonismo era a vitimização na imprensa.Tudo foi feito segundo a estrutura da guerrilha e era gravado pela televisão, tudo era instrumentalizado. Quando alguém fosse fuzilado dizia-se que foi para uma bolsa de estudo em Cuba. Usava-se essa expressão.
Depois de tudo isso o que é que devia ter sido feito, para reconciliar verdadeira e profundamente as pessoas no seio do MPLA?
Devia-se ter feito uma comissão da verdade.
Ainda hoje faz sentido criar uma comissão da verdade sobre os acontecimentos que se seguiram ao 27 de Maio de 1977?
Até agora faz sentido. Se não a história vai ficar cheia de mentiras. O Nito Alves vai aparecer como um libertador que foi amputado, quando seria uma desgraça se ele ganhasse. Isto seria um Kampucheia, um Cambodja. Houve essa confusão, o desprezo pelas estruturas do Estado, que se vai agravando consoante a guerra que nós tínhamos, na ilusão de que ela se resolveria com tiros, quando afinal dava jeito para alguns que houvesse guerra. É nessa continuidade que não se inventa um esquema económico de  satisfazer as novas exigências e que se cortam verdadeiramente as comunicações humanas, que ainda hoje estão por restabelecer (estamos a caminho disso). É só com essas comunicações humanas que o feijão pode ir de um lado ao outro, que o peixe seco pode ir para o interior, que os medicamentos podem chegar aos hospitais, sem serem roubados, para as pessoas terem consciência de que estão ao serviço da sociedade e não de meia dúzia de ladrões, em suma, para diminuir as desigualdades. Até à entrada deste novo presidente o povo sabia que a economia estava ao serviço dos milionários. O povo sabe tudo. As empregadas dos mwatas contam aos maridos, os maridos contam aos amigos, estes contam nos candongueiros… O povo é que é a Internet. Internet sem fake news.
Voltando à ideia da criação, ainda hoje, da comissão da verdade sobre o 27 de Maio. Qual seria o formato dessa comissão? Ao jeito da que foi criada na África do Sul?
Já falei sobre isso numa entrevista que dei há anos ao Folha 8. A África do Sul fez isso com coisas muito mais graves do que as nossas.
O ponto prévio seria que todo o mundo que se oferecesse a prestar depoimento teria o perdão?
Nós aqui vamos perdoar a quem? O ponto de partida seria a verdade.
Esse processo deveria ser dinamizado sobretudo pelo MPLA?
Sim. E não seria assim tão difícil.
Qual seria a saída para toda essa crise económica e social, com fortes raízes éticas e morais, em que nos encontramos?
A saída seria um socialismo democrático. Não impedir o crescimento da riqueza. As pessoas que têm propriedade privada que a desenvolvam. Essa economia está dependente disso. Está provado que o Estado não pode ser produtor. Mas reservar áreas da economia para o Estado. Áreas que são propriedade do povo. A água é propriedade do povo. Antes de haver MPLA, antes de haver independência, e se este é o continente-berço, antes de se inventar Deus (Deus foi inventado no continente-berço), a água era do povo. Num dos meus contos eu falo nisso. Há áreas que no meu entender não podem ser privatizadas. A água, a energia eléctrica, a indústria diamantífera, os petróleos… Portanto, as infraestruturas de base. Nós só devíamos poder pagar o custo da água acrescido de um milésimo, porque a água custa para chegar às nossas casas. A energia eléctrica também. Mas podemos fazer tabelas diferentes. Lá onde o dinheiro vale mais, por exemplo no Huambo, o preço tem de ser diferente. As cooperativas agrícolas. Os silos. A população produziu, entrega o seu milho, o seu feijão, parte é guardado, parte é comprado e tem as lojas para comprar panos, tem as farmácias… Portanto, há uma economia privada de cariz eminentemente capitalista que visa o lucro mas é controlada, há zonas comerciais com os preços controlados e tratamento fiscal especial, por exemplo os medicamentos não pagam impostos, para serem baratos. O ensino gratuito com livros de graça até um determinado nível e a entrada nas universidades por critérios de meritocracia. Na Universidade já há uma ligação com as empresas e estruturas do Estado. Evita-se a concorrência desleal. Eu sou ministro, agarro no telefone e digo: “Olha, arranja-me um lugar no Ministério das Finanças, o meu filho formou-se em economia”. No tempo antigo só faltaria acrescentar: “Eh pá, o gajo também quer roubar um bocado”. (Risos).
O que pensa de todo esse processo de discussão sobre a implementação das autarquias?
O tempo que se quer dar para fazer autarquias, 10 anos, é muito tempo. Actualmente o poder local nas províncias são pequenos feudos. O governador manda mais do que toda a gente e até pode mandar matar uma pessoa indirectamente.
E a sua opinião sobre a legislação de repatriamento dos activos obtidos ilicitamente? Todo o mundo devia ir para a cadeia?
Acho que ninguém devia ir para a cadeia. A solução do Presidente actual é sábia, resolver os problemas na justiça sem fazer a divisão física entre os cidadãos. Há famílias poderosas que vão ficar incomodadas. Os milionários têm o seu séquito. Cada milionário tem a volta de si umas três mil pessoas. É preciso evitar que a sociedade se deflagre por causa dos actos ilícitos mas que foram consentidos por quem mandava.  As pessoas não foram com uma espingarda ou uma bomba roubar a caixa forte de um banco. Tiraram com a consciência de que era ilícito. E isso de tirar em cima vinha até cá abaixo, onde só se podia pedir uma gasosa. Penso que esse dinheiro tem de voltar para cá mas para ser aplicado em infraestruturas, hospitais, escolas. Se o dinheiro vem e fica nas mãos deles lançam no mercado e vamos todos comprar os dólares. Ou o dinheiro vem e depois dizem-lhes: “você vai fazer uma fábrica de chouriço?” Isso é absurdo. Aliás é absurdo devolver o roubado ao ladrão. Veja o caso Lava Jacto no Brasil. E é preciso fazer a prova e dar o contraditório para não ser inquisitorial. Não me incomoda muito o que foi roubado, mas o que vamos produzir. Agora estamos todos à procura de ladrões. Eu não estou a pensar num Estado-Polícia. Já perdemos o medo de falar. Nos jornais isso vê-se, até no vosso. Agora não vamos inventar outros medos. Um sistema fossilizado é como um balão. Tem de ser esvaziado cuidadosamente para não rebentar. Veja, os garotos compram nos armazéns dos estrangeiros que arranjaram licenças pela mão de agentes do Estado, para venderem na rua, as quitandeiras compram legumes e frutas nos camiões, os medicamentos andam nos mercados. Basta cortar um elemento do sistema, por exemplo, os armazéns, para os miúdos não terem nada para vender e se parar as quitandeiras deixamos de ter a comida à porta (forma subtil de obrigar as pessoas a irem aos grandes espaços propriedade dos donos disto tudo)…
O facto de já haver pessoas detidas faz-lhe pensar em quê?
É impensável, nem em ficção, no romance, eu escreveria que um Fundo Soberano, que é equivalente à Reserva Federal dos EUA, seja entregue a meia dúzia de jovens para gerir. Fazer isto é um crime. Ainda por cima a um filho. Você é presidente de uma República e não vai entregar o Fundo Soberano a um filho. Entregar a gestão da maior indústria que sustenta esta economia, que é o petróleo, a uma filha; a comunicação social a outro filho. Isto tem nome. O outro comprou um relógio a 500 mil dólares. É igual ao Obiang. Aquele relógio do Obiang, filho do nosso ilustre parceiro na CPLP. Mas eu peço desculpa a Dos Santos porque está fragilizado. Ele deveria ser o primeiro a vir a público falar dos erros, porque se se vai melhorar o que está bem é porque no seu consulado também se fizeram coisas boas. Dos Santos deveria voltar à sociedade civil, fazer conferências em universidades, falar com o povo, ter um programa de televisão sobre as suas memórias.

João Lourenço versus Dos Santos

É possível comparar esses dois homens: José Eduardo dos Santos e João Lourenço?
Primeiro no perfil do pensamento, este homem [João Lourenço] estudou História, compreende melhor uma filosofia política de acção, e é marido de uma cientista de economia que já esteve no FMI… Quanto a Dos Santos fico por aqui porque não é positivo falar de pugilistas tombados no ringue, com o desmoronar da sua família seria mais um acto de crueldade. No entanto, sublinho  que  João Lourenço foi um opositor mas com uma consciência dos passos que devia dar. São pessoas totalmente diferentes. Um tolerou ou fomentou o nepotismo, a corrupção e a miséria do povo, o outro é contra o nepotismo, contra a corrupção e diz-se empenhado em resolver os problemas do povo. Isso é interessante. Na fenomenologia política isso é inédito e deve-nos honrar. Dentro do seu próprio partido fazer mudanças que correspondem a uma revolução e as próprias pessoas do partido aceitarem a ideia anti-corrupção, quando algumas delas são parte activa nesse fenómeno da corrupção. Mas isso é saudável porque tem uma inspiração da tradição africana. É bom chamar os mais velhos e traçar um plano de solução que satisfaça os interesses da maioria. Claro que 99,9 % do povo está de acordo com o Presidente. As pessoas que não têm poder, porque  as que têm muito poder económico nem todas estão de acordo com ele, há algumas que já não sabem quando é que roubaram ou quanto é que não roubaram. Mas temo que a questão do regresso da riqueza não vá a bom porto. Por mim era daqui para a frente.
Não haverá um risco de desestabilização por parte da franja que sendo minoritária tem poder real?
Têm poder real e isso é que tem de ser controlado.
Como?
Lembras-te da figura do Tanu, que sem querer tinha poder económico no Quilombo? Mas o Zumbi tinha o poder político. O Tanu é que tinha razão. Se Zumbi o tivesse deixado fazer o que queria, ir pelas encostas atrás dos fazendeiros, a coisa teria sido diferente. E além disso este Presidente é um homem que não cultiva a “estabilidade”, a paralisação, como o outro. As coisas estavam todas em águas mornas. Inaugurar no fim do seu governo obras que ainda não estavam acabadas! Fazer coisas que me parecem inócuas; assim que começou o processo eleitoral o governo devia ser só de gestão corrente e não fazer leis para depois de sair, criar imunidades para si próprio! Não é possível comparar essas duas pessoas.
Como é que vê o futuro deste povo, deste país?
Com optimismo. Por tudo aquilo que a gente já passou, aqui em África não há um país com a estabilidade como a nossa. Posso ir de noite daqui até ao Namibe, daqui até ao Huambo, desde que a estrada me deixe. Já fui de noite daqui até ao Uíge. No Quénia não é possível. Eles têm pequenas aldeias com bares e prostitutas, os camiões ficam ali parados até de manhã, não se viaja à noite. Na Namíbia também já está a ficar assim, na África do Sul está assim há muito tempo. As pessoas querem vir para cá.
Está a advogar a ideia de que os angolanos são especiais?
Não somos especiais. Tivemos uma história diferente. Uma colonização de 500 anos que nos pôs a falar a língua do invasor tal como ele fala ou melhor. As lutas dos reinos contra os colonos. As primeiras revoltas nas minas sul-africanas foram comandadas por um angolano, kwanhama. No Sul os portugueses levaram muita tareia, os kwanhamas nunca pagaram imposto, até ao fim do colonialismo. É todo esse tipo de trama, das lutas, da revolta da Baixa de Cassanje, do 4 de Fevereiro, é o Savimbi que tem a coragem e a filosofia maoísta de se encontrar com os portugueses para negociar, a avalanche toda da poesia de Neto, do Viriato da Cruz, etc., etc., em paralelo com os grandes poetas da Negritude que estava a acontecer em França, é a origem do MPLA, por exemplo, em que os estudantes fogem de Portugal para depois descerem para o Marrocos para fazer treino militar e ir para a guerra… Tudo isso é diferente de receber a independência através de um papel. Fazendo a soma disso tudo, aí está a nossa endurance, que faz de nós a única ex-colónia que vai bater o pé ao ex-colonizador. Chegar lá e dizer, “o meu processo não fica aqui, vai para Luanda”. Tudo isso aponta para a singularidade deste país, mas também para a singularidade do Magreb, da África do Sul, etc., etc. Outro fenómeno é a liberdade religiosa. Não troco este país por outro.

 *Esta entrevista foi originalmente publicada na edição de 11/11/2018 do Jornal de Angola.