FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL
CORI (2)
UM ROMANCE DE
MATRIZ REALISTA
Por: Hélder Simbad
Mas quem seria tão estúpido ao ponto de
apresentar, como prova de um crime, uma obra literária? O que é ficção – não
ignorando as noções de intertextualidade e de verossimilhança que por analogia
podem nos remeter a situações reais – deve ser interpretado como ficção e não o
contrário. Apesar de ténue, nunca se deve transpor a fronteira, pelo que
qualquer semelhança entre as ideias susceptíveis de serem extraídas desse livro
e a realidade é mera coincidência.
Sobre o autor, Isaquiel Cori, diga-se
que é um dos mestres do realismo angolano do pós-independência, pela coragem,
relativamente às opções temáticas, e pela concisão do discurso e
expressividade. Por esse motivo, faz parte da restricta elite de escritores que
é lido e estudado anualmente naquela que é tida como a maior Universidade do
país, coexistindo com nomes como os de Agostinho Neto, Luandino Vieira,
Pepetela, Almeida Garret, Agualusa,
etc., etc.
«Dias da Nossa Vida» é um romance de
matriz realista que nos dá a conhecer o quotidiano de um responsável dos Serviços
de Informação da República de um país fictício que, numa relação de analogia
entre a realidade e a ficção, bem se poderia chamar Angola, em razão da
biografia do autor; do quadro político que traça, muito similar ao de uma
Angola não tão longínqua; da alusão à cidade capital, Luanda, e de todo um
conjunto de factores e ideais que vêm formalmente objectivadas na obra, que se
ligam à realidade através das categorias de intertextualidade e
verossimilhança.
O
título «Dias da Nossa Vida», por inerência do possessivo «nossa», pode sugerir
a ideia de um diário colectivo. Entretanto, tal ideia se desvanece por força do
enredo e dos monólogos que introduzem cada capítulo (a partir do segundo),
mantendo-se, ainda assim, apesar do caracter heterodiegético do narrador, a
ideia de um «diário» implícita. Trata-se, na verdade, de um «romance de
personagem», em que os eventos são relatados por uma entidade intradiegética
que se anula completamente na diegese e que parece emergir nos monólogos que
introduzem os capítulos, confundindo-se algumas vezes com o protagonista ou com
o próprio autor. Um romance de enredo simples – pelo número de acções – cuja
complexidade reside no modo como os eventos se vão entrelaçando através duma
relação de causa e efeito que se torna surprendente pela forma como o narrador
brinca com o tempo da história.
«Dias da Nossa Vida» traça o degradado quadro
político-social de uma sociedade contemporânea em vias de convulsão, causada
por um grupo de activistas cívicos em cujo caderno de reivindicação se
discutiam, entre outros assuntos, questões como a «má governação, corrupção
encabeçada pelo governador, pobreza extrema da maioria da população, saque das
terras dos camponeses, favorecimento de estrangeiros em prejuízo dos nacionais”.
O grupo era liderado por Armindo Gasolina – um jovem «baixinho de estatura»,
destemido, provavelmente nos seus 20 anos, bastante inteligente, perspicaz, com
forte educação de base, mestre em sarcasmo – e decidiu (o grupo) reivindicar as
acções daquele governo, como se pode constatar nas seguintes passagens:
«somos
um movimento de jovens estudantes patriotas agastados com a corrupção que
grassa no país, e cá na província, em particular». Página 66.
Para se evitarem males maiores é chamado o
herói, Reinaldo Bartolomeu, chefe dos Serviços de Informação da República (SIR)
naquela província, que o autor prefere não nomear, provavelmente para confundir
os leitores (?) na medida em que ao se referir a Luanda-capital, deixa
explicitamente a ideia do «país (Angola) », que terá sido o «motivo estético»
para construção da narrativa. Reinaldo Bartolomeu vive dividido entre o
trabalho e a família, facto que dificulta, em muitos casos, a eficiência das
suas acções, dedicando-se com maior afinco ao trabalho. Verdade que pode ser
explicada pela natureza do trabalho que desempenha e por se constituir como o
suporte financeiro que move a vida da família. Dois eventos simultâneos fazem
da sua vida um gabinete de crise: a manifestação dos jovens activistas e a
decisão de seu filho, caçula, Andrezinho, nos seus sete anos de idade, em querer
ser «bufo» como o pai quando crescer. Para o último caso, Reinaldo parte em
busca de respostas, encontra formas de deixar a mulher longe dos
acontecimentos, pedindo-lhe que vá para Luanda; vai fazer um breve trabalho de
campo à escola do filho e conclui que não é ali onde nascera um pensamento que
terá provindo provavelmente no seio familiar, através de conversas esporádicas
que geralmente os familiares trocam. «Na família (de Reinaldo) havia uma
verdadeira dinastia de bufos» cuja árvore genológica nos levaria a um período
em que não se falava ainda de Angola, senão de reinos:
Período
|
Relação
familiar
|
Território
|
Órgão de
representação
|
Função
|
Pré-colonial
|
Ancestral
|
Reino
da Matamba e Ndongo.
|
Guarda
da Corte
|
Segurança
pessoal da Rainha Njinga
|
Colonial
|
Parentes
|
Portugal,
Angola Ultramarina.
|
PIDE
e MPLA
|
Agentes
duplos, operando simultâneamente na PIDE e nas forças clandestinas do MPLA
|
Pós-independência
|
Tio1,
primo da mãe;
Tio2,
irmão da mãe
|
Angola
independente, mergulhada em guerra fratricida
|
DISA;
DISA
|
Alto
dirigente da DISA
Membro
da DISA, morto no 27 de Maio
|
Pós-4-de-Abril
(dedução)
|
Sobrinhos
|
Angola
em paz
|
Serviços
de Informação da República
|
Bufos
|
Fruto dessa linhagem fiel, na história
dos Serviços de Informação da República, Reinaldo Bartolomeu gozava de muitos privilégios,
aliado ao facto de ser confidente do governador Arlindo Seteko «Não Se Mete»,
personagem-tipo, protótipo de governação que num passado recente caracterizava
a Angola Real. Arlindo Seteko «Não Se Mete» tinha a seu favor uma história de
luta anticolonial que o levara a sacrificar a juventude, era um homem frágil do
ponto de vista psíquico, com uma variação espetacular de humor, que em termos psicopatológicos
poder-se-lhe-ia diagnosticar o transtorno bipolar associado a outros, porquanto
ora estava «deprimido» ora «muito alegre» e gostava de alimentar o seu ego com
bajulação; gozava de alguma autonomia, ao ponto de impedir que jornais privados
circulassem pela «sua» província pelo facto de supostamente o terem caluniado;
«era mestre em misturar tudo», e fazia uma gestão danosa da coisa pública; não
respeitava as autoridades tradicionais; praticava um nepotismo exacerbado, ao
ponto de invocar o principio da discricionariedade para pegar numa parcela
territorial maior que a Alemanha, elaborar uma lista de beneficiários, dentre
os quais, os primeiros 100 nomes eram de familiares seus, incluindo os sete
filhos que tinha; era um ser tão meticuloso que conseguiu deixar estupefacto a
mais atenta das personagens, Reinaldo, ao descobrir as riquezas que o chefe
escondia dele.
Relativamente ao problema maior, os
tumultos que ameaçavam a estabilidade social, Reinaldo Bartolomeu, pressionado
pelo mais alto dirigente dos SIR, a partir da capital, Admirável Redondo, autoritário,
rude, defensor de atitudes violentas, movia-se dentro duma mentalidade
político-partidária; mal aconselhado pelos dirigentes das forças de segurança
local, vai destacar-se, sobretudo, pela sua inteligência – evitando medidas
extremas, apelando ao diálogo, ao bom senso. Não se pode negar também o facto
de Reinaldo ter contado com alguma sorte, resultante da mudança cataclísmica
das atitudes de Armindo Gasolina, que terá sido motivado provavelmente por
aquilo que poderia ter sido um derramamento de sangue, aquando da mega
manifestação.
Na historiografia da narratologia
angolana, Luanda ocupa o «espaço diégético» central, sendo esmagadoramente
eleita pelos romancistas como o espaço físico de eleição, interagindo com
outros espaços, sobretudo naquelas narrativas de revisitação ao passado
nostálgico, que nos levam aos caminhos da guerra fratricida de fundamentos
inaceitáveis, porquanto só há guerra quando os homens perdem a razão,
entendendo-a assim como é: um acto
irracional protagonizado por seres racionais. Isaquiel Cori, em «Dias da Nossa
Vida» subterceiriza esse espaço habitual que é Luanda, construindo uma cidade
fictícia que, no âmbito do dialogismo literário, interage com todas as restantes
províncias de Angola, podendo ser o referente literário de cada uma delas.
A concisão, as opções temáticas, o
linguajar – oscilando entre a prosa corrente e os tropos que nos levam à
poesia,
«
A filhota fluía leve, levezinha, a traçar figurinhas invisíveis no chão.
Reinaldo mirou a mesa do Governador e viu-o só (…) numa cadeira dourada de
encosto alto.» Página
128.
– são procedimentos técnicos de
estruturação da narrativa aos quais Isaquiel Cori interpõe recurso para tornar
a sua prosa mais expressiva. Contudo, a narrativa eleva-se, ainda mais, em
termos de expressividade, quando joga a tal linguagem continuamente oscilando
entre a prosa corrente e os tropos com o «erotismo», este espaço sublime de
contemplação do belo:
«
O lençol branco mal cobria a sua nudez, de mulher madura (…). Reinaldo
Bartolomeu aproximou-se, sorrateiramente, e foi com a boca toda a arfar de
sede, para o vértice rasgado do corpo dela, que ela adorava que ele para lá
fosse com a boca»
Página 87.
Entretanto, torna-se necessário referir
que o «erotismo» em «Dias da Nossa vida» não reside apenas no contacto físico e
íntimo entre as pessoas, funcionando como uma ferramenta linguística de manutenção
da expressividade como se pode vislumbrar no excerto que se segue:
«…
o pedaço de terra lavrada parecia uma mulher em idade primaveril no auge da
ovulação, palpitante, sedenta e desejosa dos esguichos seminais do homem
amado.» Página 96.
« Dias da Nossa Vida» configura-se como
uma paródia contra uma forma de governação que fez escola ou tradição pela
negativa, uma análise clínica de um escritor que veste a capa de reformador em
quase todas as suas obras. Mas ela, a obra em análise, está impregnada de
vários simbolismos, que resultam principalmente das superstições de sociedades
onde o «animismo» é escola invísivel.
« ‘Logo
dois cães a se foderem mal um gajo sai à rua?’. Uma sensação de mau presságio
misturada com um medo repentino e visceral obscureceu a mente de Reinaldo e
arrepiou-o todo. ‘Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?’» Página 13.
Já foi referido aqui que a obra em
análise é, decerto, um romance de personagem. Em si mesma, isto é, de um ponto de vista
ontológico, é a representação da vida do protagonista, inserido numa familia algo
desestruturada por força do seu «serviço» e por razões académicas. Por alguma
razão, a narrativa começa em casa, com um dos integrantes da família do herói
ausente, no caso, a filha; e termina numa festa, em casa do Governador, com
outro integrante da família ausente, provavelmente por força de uma norma
social que impede menores de estarem em certas cerimónias, revelando assim a
incapacidade de o herói em ser uma figura omnipresente que se doa simultaneamente
à família e ao trabalho.
Por fim, «Dias da Nossa Vida», pese
embora, circunscreva a sua acção a determinado periodo da realidade que nos
envolve, não está imbuída de anacronismo pelo simples facto de esse período ser
recente e ainda dialogar com certas realidades
que, apesar da mudança de paradigma de governação, conservam essa
mentalidade.
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