segunda-feira, 22 de julho de 2019





FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL CORI (1)

 A TEIMOSIA DA ESPERANÇA



                                                Por: Adriano Mixinge
Historiador e Crítico de Arte







A primeira década e meia de paz e prosperidade em Angola (2002-2015) coincide, também, com anos de relações sociais, económicas e políticas tensas e conflituosas, próprias de um país que é, ainda, a emanação de uma forte tradição monopartidária: sem nunca perder a confiança, tenta reerguer-se sobre as cinzas e a pólvora dos anos de sucessivas e prolongadas guerras, aspira a reestruturar o seu tecido social, melhorar a sua economia e a educar o cidadão como seu património mais valioso, preparando-o para enfrentar os desafios do presente e do futuro.
Com a pacificação e o crescimento económico notório do país surgiram inúmeras perspectivas de desenvolvimento, umas prestes a consumar-se, outras somente esboçadas, mas todas elas estão matizadas pelo optimismo e, também, pelos medos provocados pelo surgimento da classe média e da burguesia nacional (novos ricos) refém da corrupção, a emergência de uma sociedade civil consciente, activa e engagée preocupada com a liberdade de expressão, a distribuição justa da riqueza, a transparência na governação e a consolidação da democracia.
É neste contexto histórico amplo e complexo, herdeiro da mais pura tradição literária à volta da esperança assumida como um valor sagrado que serviu para resistir face ao colonialismo e que, actualmente, é sinal de rebeldia construtiva e teimosia constante, que transcorre a história do último romance de Isaquiel Cori: Andrezinho, o menino que, repetindo o destino familiar, sonha com ser "bufo" e um velho que, enquanto agoniza, vai escrevendo o diário que lhe faz desejar um mundo melhor são os dois protagonistas que, em "Dias da nossa vida", nos chamam imediatamente a atenção e nos incitam a ler  uma história contada de uma forma cuidada, com uma escrita contida e eficaz.
         Duas histórias entrelaçadas, uma patética e alucinante, sem deixar de ser real, e a outra intimista e testemunhal, com uma voz marcadamente transcendente, ambas narradas através de pequenos episódios ou reflexões que se vão concatenando de maneira fluída, independentemente da diferença do perfil dos narradores, articulam este que, a meu ver, é já o romance mais maduro e conseguido de Isaquiel Cori.
         "Dias da nossa vida" é um romance que, pelas histórias que conta, pela maneira e oportunidade dos temas que aborda e, também, pelo alcance e desfecho que propõe, faz jus ao seu próprio título. Mas, que história é essa que "Dias da nossa vida" conta? Quais são as personagens que desfilam no romance? Qual é a principal mensagem do livro?
         Uma história patética e alucinante preocupa  Reinaldo: Andrezinho, o filho,  herdeiro de uma "dinastia de bufos", parece estar a ser influenciado por alguma força desconhecida, que lhe estaria a induzir a ser agente do serviço de informação.
         Mas dois conflitos permitem contar a história. O primeiro conflito é o que acontece entre Reinaldo Bartolomeu, o pai de Andrezinho, agente dos Serviços de Informação da República (SIR), discípulo de Admirável Redondo, e que é homem de campo do Governador Arlindo Seteko "Não Se Mete", novo rico, "mestre em misturar tudo", que gere a província à sua maneira e através de expedientes diversos, sempre com recurso ao uso abusivo dos poderes de que dispõe: eles fariam tudo para  abafar (ou desbaratar) qualquer manifestação de estudantes contestatários liderados por Armindo Gasolina.
         O conflito secundário, mas não por isso menos importante, é  aquele em que se mostra a história de amor e desafecto que vive Reinaldo Bartolomeu com Rebeca, a esposa, e  Ana Flor, a irmã desta, numa tensão sexual inconclusa e que serve para  fazer um retrato de alguns dos vícios, hábitos, posturas e inclinações de certas famílias de classe média e da burguesia nacional emergente.
         A história intimista e testemunhal do livro é a do diário de um indivíduo - Lento o chamavam no tempo em que foi soldado - face ao patetismo e ao compêndio de situações surrealistas vividas, uma série de histórias que cimentam um desencanto incapaz de asfixiar a esperança, uma mensagem  que, pelo desfecho das histórias, fica bem patente numa série de interrogações:
          "Mas será a morte, necessariamente, escuridão? Não será um vasto túnel de luz em que a esperança, teimosa, é um ponto escuro, lá bem no fundo?".
         Enfim, o “Não Se Mete”, o “Gasolina”, o “Lento” e as outras personagens são diferentes protótipos sociais que ajudam a articular as histórias do romance “Dias da nossa vida”, de Isaquiel Cori, que é, no seu conjunto, um retrato colectivo da sociedade angolana e coloca o cidadão e a República face ao espelho das suas vivências e da complexidade da actual situação política, social e económica.

Madrid, 26/09/2016

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