quinta-feira, 10 de maio de 2012

MALENGU JUSTIN ISOLA COMPOSTOS QUÍMICOS DO DITUMBATE

PRIMEIRA TESE DE DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE AGOSTINHO NETO

Alguns dias depois de ter defendido a sua tese de doutoramento, o Professor Mulangu Malenga Justin, da Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto, ainda recebia os efusivos cumprimentos de colegas, alunos, familiares e até de pessoas desconhecidas. “O professor agora é doutor duas vezes”, brincou, em jeito de felicitação, um dos seus colegas.

POR: ISAQUIEL CORI

Intitulada “Contribuição para o estudo de plantas medicinais em Angola com actividade hepato-protectora: caracterização do perfil fenólico da Boerhaavia Diffusa L”, foi a primeira tese de doutoramento defendida na Universidade Agostinho Neto, em toda a sua história. O acto decorreu no dia 17 de Abril, no Campus Universitário da Camama, em Luanda. Malengu Justin obteve do júri, presidido pelo Magnífico Reitor da UAN, Professor Doutor Orlando da Mata, uma distinção com louvor, o mais alto nível de excelência.

A pesquisa desenvolvida por Malengu Justin, ao longo de quase dez anos, visou extrair, separar e identificar os compostos químicos activos da planta Boerhaavia Difusa, a nossa muito conhecida Ditumbate, em kimbundo, Kudyangulu, em Umbundo, e Bamba, em Côkwe. O estudo avaliou, igualmente, os efeitos da natureza do solo e das condições climáticas sobre a quantidade de compostos químicos activos da planta.



O investigador começou as análises científicas preliminares do Ditumbate em 2003, no Laboratório de Farmacognosia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, em Portugal. A espectrometria de massa, que consiste na separação das moléculas, foi feita num laboratório em Espanha. Já o trabalho de análise quantitativa e qualitativa das moléculas foi realizado inteiramente no laboratório da Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto, com a ajuda de um aparelho chamado Cromatógrafo Líquido de Alta Eficiência.

O LESRA (Laboratório de Engenharia de Separação, Reacção e Ambiente), segundo Malengu Justin, em entrevista ao Jornal Cultura, é um orgulho da instituição. Dispõe de equipamento de ponta, adquirido graças ao financiamento de empresas do ramo petrolífero que operam no país.

O Ditumbate prolifera em todas as regiões do país. No estudo foram utilizadas amostras provenientes de Porto Quipiri, Centro Emissor do Cazenga e do jardim do LESRA. Uma das curiosas conclusões foi de que cada amostra tinha o seu próprio perfil químico, em função da natureza dos solos.

O trabalho de investigação de Malengu Justin teve o mérito de identificar doze compostos químicos, oito dos quais foram detectados pela primeira vez no Ditumbate.

“Eu isolei e analisei as substâncias que compõem a planta, cabe agora, por exemplo, aos farmacêuticos determinar o efeito medicinal de cada uma delas”, disse Malengu Justin.

Segundo o cientista, vários estudos de etno-farmacologia e fito-farmacologia, em Angola e no estrangeiro, apuraram que o Ditumbate é eficaz no tratamento de patologias cardio-vasculares e genito-urinárias, da heptatite B, icterícia, e outras. Está igualmente consagrado que é um protector do fígado.

Malengu Justin reconhece o legado científico da bióloga Manuela Batalha Van-Dúnen, que fez um estudo pioneiro, no pós-independência, de catalogação sistemática das plantas medicinais, com base em pesquisas etno-botânicas em várias regiões do país. O académico faz um apelo aos jovens estudantes universitários: “temos de despertar o interesse pelas plantas medicinais. Há que resgatar o saber tradicional a respeito das suas propriedades terapêuticas. Esse saber constitui parte da memória colectiva e é o ponto de partida para os estudos científicos”.

Uma fonte da Reitoria da UAN afirmou a este jornal que o programa de defesa de teses de doutoramento vai prosseguir. A programação está dependente das várias Faculdades.



Perfil do académico



Mulangu Justin nasceu aos 23 de Setembro de 1943, em Lubumbashi, na República Democrática do Congo. Fez a licenciatura em Electroquímica na Universidade de Bruxelas, Bélgica. Vive em Angola há trinta anos. Casado, com quatro filhos, é professor titular do Departamento de Engenharia Química da Faculdade de Engenharia da UAN. Já teve participação em três projectos industriais. É adepto do Barcelona e do Petro de Luanda.

O estudioso revelou ao Jornal Cultura que lhe foi feita, por uma autoridade que não identificou, a proposta para requerer a cidadania angolana.

O seu trabalho de doutoramento serviu de base para um artigo que publicou na revista Phytochemical Analysis, editada em Inglaterra. Fala fluentemente o português, francês, swahili, lingala e tchiluba, e, razoavelmente, o inglês e o espanhol.

“Vou repousar um pouco e depois vou tentar interessar os meus alunos a continuarem as pesquisas, sob minha direcção”, disse, questionado a respeito dos seus planos.









Escritor João Maimona: "HÁ FRAGILIDADE DE CONTACTO ENTRE OS MÚSICOS E OS POETAS"


Encontrámos o poeta João Maimona na sua residência, numa dessas manhãs insuportavelmente quentes de Luanda.  O homem apresentava um aspecto radiante. A Bienal Internacional de Poesia de Luanda (BIP), de que ele é um dos mentores, já tinha as portas abertas no CEFOJOR. “Estamos a entrar na decadência. Nas décadas de 2030 ou 2040 vai ser difícil isolar ou desanichar valores literários”, avisou. Por outro lado, Maimona queixou-se da falta de contacto entre os músicos e os homens de letras: “os nossos músicos não falam com os poetas”.    

POR: ISAQUIEL CORI


Jornal Cultura – Como surgiu a ideia da realização em Luanda de uma bienal internacional de poesia?

João Maimona – Comecei a frequentar a Bienal Internacional de poesia de Liège, na Bélgica, na década de 1990. Depois frequentei as noites poéticas de Struga, na antiga Jugoslávia, e o Festival Internacional de Poesia de Berlim. Nasceu assim a ideia de conceber a Bienal Internacional de Poesia de Luanda. Convidei o Abreu Paxe, o Jomo Fortunato e o Fernando Alvim, juntámos as nossas ideias e os poucos recursos materiais que tínhamos e assim nasceu a BIP.



JC – A BIP nasce num contexto global em que as bienais de poesia tendem a desaparecer. Concorda?

JM – Esse desaparecimento tem muito a ver com a insuficiência de recursos materiais, que estão cada vez mais difíceis de captar. 

JC – De um modo geral, não terá mesmo decrescido a percepção da importância e do valor da poesia?

JM – Não. A poesia é um organismo funcional, vivo. A poesia não atrai muita gente porque é a arte mais sofisticada. Nem toda a gente consegue decifrar ou interpretar a mensagem poética. A prosa é mais fácil, a poesia é mais fechada. Mas não se pode falar da sua morte. Ela continua viva.

JC – De que modo a poesia está viva na BIP?

JM – A nossa ideia principal é revitalizar a presença da poesia angolana e, acima de tudo, internacionalizá-la de modo permanente e crescente. Pretendemos também revitalizar a presença da poesia angolana na vida cultural de Angola e na vida dos angolanos. Hoje estamos em Luanda, na próxima edição poderemos estar no Lubango, em Cabinda ou no Moxico. Mas também no Rio de Janeiro ou em São Paulo.

JC – Estaremos então diante de uma Bienal Internacional de Poesia de Luanda com regime itinerante?

JM – Apesar da designação Bienal Internacional de Poesia de Luanda, ela poderá deslocar-se a outras localidades. Levando sempre o nome de Luanda, o nome da Nação angolana

JC – Que valor atribui à poesia na formação do homem?

JM – Tem um valor significativo. Muito elevado. A poesia faz parte do segmento pedagógico da formação de cada um de nós, encaminha o homem para a descoberta de outras esferas. Na poesia a pessoa encontra segmentos linguísticos que servem para a sua própria formação. Sem receio de contradição, digo que a poesia é uma arquitectura pedagógica.

JC – Pode dizer-se que a poesia torna-nos mais humanos?

JM – Sim, a poesia humaniza. E eu dou o meu próprio exemplo. Quando entrei em contacto com a poesia, o meu diálogo estabeleceu-se no domínio da francofonia. Fui lendo René Char, Victor Hugo… e mais tarde passei para o horizonte da língua portuguesa. Passei então a ler poetas como Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e outros. Encontrei nessa poesia segmentos claros de humanização, como por exemplo, a exaltação da alegria. Quando o desassossego se transforma em alegria, estamos diante de algo fundamental. O mesmo acontece com as temáticas das liberdades individuais e da ausência de paz e estabilidade. Angola atravessou um longo período de ausência de paz social, mas conseguimos, com os nossos meios, através do diálogo, instalar o clima de estabilidade. Isto é humanização.

JC - A poesia terá então, também, contribuído para que os angolanos sobrevivessem à guerra e conquistassem a paz?

JM – Há pouca gente que lê poesia, mas a mensagem poética circula muito, a uma velocidade sui generis. Quando o verso sai da boca de um poeta é como se fosse o slogan de um político. A população capta imediatamente a mensagem. No meu livro “Trajectória Obliterada”, Prémio Sagrada Esperança em 1984, há uma estrofe do poema “Ramos de grito”, em que eu digo: “No silêncio distante, ardente silêncio / No íntimo das nuvens, tombam chamas / que agasalham as lágrimas”. Isto é, para o poeta, apesar de distante, o povo há-de chegar ao silêncio, à paz.

JC - A poesia associada à música não conseguiria uma maior difusão? O que falta para que haja uma aliança mais forte entre a música e a poesia, no contexto do país?

JM – É um tema complicado. Ao fazer a sua abordagem podemos ser acusados de elitismo. A verdade é que os nossos músicos não falam com os poetas. Não há contacto ou interacção entre os músicos e os homens de letras.

JC – Está a querer dizer que os músicos não conhecem ou não valorizam o acervo poético nacional?

JM – Há fragilidade de contactos entre os músicos e os poetas.

JC – Está a referir-se ao contacto pessoal ou com a produção poética?

JM – Eu diria que o músico não quer investigar. O poeta oferece o seu texto, que circula. O músico tem de ir ao encontro do texto, estudá-lo e então levá-lo à música. Isto é o que falta no nosso meio.

JC – A seu ver, a poesia angolana é suficientemente estudada nas escolas?

JM – Eu sou docente e duvido que haja um estudo profundo da nossa poesia nas escolas.

JC – Sendo assim, onde e como serão forjados os novos poetas?

JM – Estamos a entrar na decadência. Nas décadas de 2030 ou 2040 vai ser difícil isolar ou desanichar valores literários. Eu pertenço à geração de 1980 e sou produto do tempo colonial. Não estou aqui a elogiar o tempo colonial, mas a retratar o meu passado. A formação que tive não tem nada a ver com a arquitectura da formação de hoje. Como é que um aluno que não lê algum dia vai produzir uma obra literária? Fala-se mal o português e não há contacto com outras línguas, sejam africanas ou ocidentais. Isso é uma lacuna. Dentro de vinte ou trinta anos vamos ter um quadro literário limitadíssimo. Por exemplo, enquanto escritor, se eu conseguir, no seio da minha família, introduzir os hábitos de leitura, a formação e a educação, pode ser que surja nela um homem ou mulher de letras. E nas outras famílias?

JC – Por tudo o que acaba de dizer, a tendência é que haja igualmente cada vez menos leitores?

JM – O núcleo de leitores vai ficar reduzido. Se formos a uma biblioteca, encontraremos um número limitadíssimo de estudantes a consultar livros, apenas para responder às solicitações dos professores. Aquilo não é pesquisa. Quando vai a uma biblioteca, o estudante deve preocupar-se com as solicitações dos professores mas também fazer pesquisas no sentido de descobrir novos autores e penetrar mais profundamente no texto que encontrou. Há uma limitação enorme, que não podemos admitir.

JC – O que se deve então fazer para que o cenário sombrio não se concretize dentro dos próximos vinte ou trinta anos?

JM – Tudo começa por uma vontade política. As estruturas que definem e consolidam a política devem jogar um papel importante. O aluno é um sujeito que tem meios limitadíssimos, mas se  perceber que o Estado está a criar condições para que haja desenvolvimento, ele avança e corresponde. Enquanto não sentir que há projectos e definições sólidas, o aluno deixa-se estar.

JC - Os grandes poetas, que por si sós já constituem uma instituição, como é o seu caso, não poderiam também fazer a sua parte, de modo a propiciar o surgimento de novos valores literários?

JM – Obrigado no que me diz respeito. Tenho feito algo e o exemplo mais marcante é a iniciativa da Bienal Internacional de Poesia de Luanda. É uma contribuição valiosa para a formação do angolano. A BIP entrou no calendário cultural de Angola, que ganha assim uma nova dimensão.





João Maimona (Uíge, 1955) é médico veterinário especializado em  Virologia Médica e Epidemiologia Animal. Foi deputado à Assembleia Nacional (1993-2000) pela bancada do MPLA. Publicou os seguintes livros de poesia: “Trajectória Obliterada” (1985) - INALD, “Les roses perdues du Cunene” (1985) – LÉS ÉDITIONS JEAN-        -MARIE BOUCHAIN, “Traço de União”, (1987) – U.E.A., “As abelhas do dia”, (1988) – U.E.A., “Quando se ouvir o sino das sementes” (1993) – U.E.A., “Idade das palavras” (1997) - INALD, “No útero da noite”  (2001) – NZILA, “Festa de Monarquia” (2001) - KILOMBELOMBE, “Lugar e origem da beleza” (2003) - KILOMBELOMBE, “O sentido do regresso e a alma do barco” (2007) - KILOMBELOMBE. Teatro: “Diálogo com a peripécia” (1987) - INALD e “As colheitas do senhor governador” (2010) - KILOMBELOMBE.


Esta entrevista foi originariamente publicada na edição número 3 do Jornal Cultura, do grupo Edições Novembro

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Escritor João Tala: “Conto os meus mortos e revejo as cicatrizes”


 


O poeta e ficcionista João Tala lançou, recentemente, na União dos Escritores Angolanos, o livro de contos “Rosas & Munhungo”. Tala é autor dos livros “A Forma dos Desejos”, poesia, prémio Primeiro Livro da UEA, 1997, “O Gasto da Semente”, poesia, menção honrosa do Prémio Sagrada Esperança do INALD, 2000, “A forma dos Desejos II”, Chá de Caxinde, 2003, “Lugar Assim”, poesia, UEA, 2004, “Os Dias e os Tumultos”, contos, Grande Prémio de Ficção da UEA, 2004, “A Vitória é Uma Ilusão de Filósofos e de Loucos”, Grande Prémio de Poesia da UEA,  2005, “Surreambulando”, contos, UEA, 2007, e “Forno Feminino”, poesia, Kilombelombe, 2009.

Isaquiel Cori

Vida Cultural - Cada conto refere-se a uma mulher. São curtas mas grandes estórias de amor. Amores vividos ou sonhados?
João Tala - As personagens principais dos contos em Rosas & Munhungo  são mulheres distintas que vivem diversas situações, ou são reconhecidas num cenário do pós-guerra imediato. Um traço comum entre essas mulheres é a superação de traumas e outros estados psicológicos daí decorrentes, pelo amor. A característica estilística tem uma grande carga onírica onde o real vivido se revê na composição do sonho.
VC - O título "Rosas & Munhungo" sugere amor e boemia. Quer comentar?
JT - Rosas, como sendo flores, é simbologia feminina, portanto, associada à mulher. Essas personagens, a maioria delas, adaptaram-se a ambientes que lhes eram hostis, ou então a carência cede-lhes o argumento para “ir à rua”. Daí a expressão kimbundo munhungo que é sinónimo de libertinagem, num sentido mais ousado da boemia.
VC - A proveniência médica do autor está muito presente pelo uso notório de termos do jargão médico. Este uso é propositado ou decorre, digamos, de deformação profissional?
JT - Deformação profissional e porque a personagem representa gente. A essência da medicina são as pessoas.
VC - No estrito sentido do texto pressentem-se algumas ressonâncias intertextuais que fazem lembrar o argentino Jorge Luis Borges, o moçambicano Mia Couto, o angolano Boaventura Cardoso e mais remotamente o também angolano Luandino Vieira. Assume essas influências?
JT - Leio muitos escritores. Mas, no interesse da minha escrita, são os latino-americanos que mais me inspiram. Começou, esse interesse, com a leitura da colecção “Vozes da América Latina” que o nosso INALD dava à estampa nos primórdios de 80 do século passado, principalmente quando li “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo. Seguiram-se depois “O Trovão entre Folhas”, de Roa Bastos, os livros de Gabriel Garcia Marques, entre outros. Do Boaventura Cardoso fascinou-me mais “A Morte do Velho Kipacaça”. Já Luandino Vieira e Mia Couto, salvas as diferenças, parecem enquadrados dentro da mesma dinâmica de reinvenção que a mim fascina, mas não creio que perceba na minha escrita esse modo de conceber o texto. Borges é uma leitura mais recente.
VC - Desde “A Forma dos Desejos I” a mulher tem um lugar muito especial nas suas obras. É seu propósito constante homenagear a mulher? As mulheres tiveram ou têm um papel determinante na sua vida?
JT - Esclarecer sobre isto seria mais do domínio da psicanálise, já que é quase uma constante também na minha poesia. Evidentemente, não vou passar o filme da minha infância e flagrar o papel delas no meu “esquecimento”. Fica para depois.
VC - O contar recorrente de estórias e histórias humanas do tempo da guerra faz parte dos seus livros? Acredita que isso faz falta à reconciliação nacional?
JT - Não o faço pela reconciliação. Faço-o pelo hábito de contar. O militar que conte os cartuchos e o que ainda resta para esmagar. Eu conto os meus mortos, revejo as cicatrizes, teço sonhos, amo e amargo-me. Não fui voluntário quando um dia me cangaram para a tropa onde eu conviviria mais de perto com a guerra. Isso assim, é também matéria para poesia. Escrevo sobre aquilo que vivi e o que me está mais próximo é a guerra. Se analisar bem, saberá que só falta aos políticos reconciliarem-se e deixarem de arrastar os militantes dos partidos nas suas paranóias. De resto, nem a Bíblia reconciliaria. Por exemplo, não acredito que o malanjino não se dê bem com um bieno ou que um bakongo seja inimigo de um umbundo. Só entre militantes de uns e de outros é que se destilam ódios. É maka deles, os políticos.
VC – Sendo um dos autores mais premiados no país, a sua obra não deveria ter uma maior divulgação em Angola e no estrangeiro?
JT - Para tal, falta ao João Tala a cunha. Dizem que isso se faz com a imprensa e com agregação a grupos privilegiados. São coisas de acontecer.
VC - O que o faz escrever? O que o move enquanto escritor?
JT - A leitura. Eu leio mais do que escrevo e isso me inspira, insufla no meu cérebro imagens que persigo no acto da escrita. Depois há o hábito de contar, há a beleza da poesia.
VC - Na qualidade de poeta, que avaliação faz do legado poético de Agostinho Neto?
JT - Posta a pergunta em termos de “legado” fica difícil responder. Agostinho Neto concebeu belas criações poéticas, com um simbolismo que se remetia aos conteúdos da sua época, com plena satisfação estética. No seu tempo o neo-realismo fazia escola com preocupações que tinham no centro a vida simples dos homens mais simples. E no seu caso, a sua terra então colonizada e oprimida, estava no centro das suas inquietações.
VC - A literatura angolana está robusta? Vê nela sinais de renovação?
JT - A geração à qual pertenço, iniciou nos anos 80 uma movimentação que daria em fartos acontecimentos literários. Essa inspiração colectivista, depois que o tempo fez a sua natural selecção, permite hoje distinguir a maturidade dos que jamais se despojaram do interesse pelo estudo e trabalho. Sim, essa literatura está mais robusta. Quanto aos sintomas de renovação ou inovação costumam estar mais associados ao desempenho universal da literatura. Somos apenas peças dessa grande engrenagem, cada um contribuindo para o produto final. Só o génio é outra coisa.


OBS: ESTA ENTREVISTA FOI ORIGINARIAMENTE PUBLICADA NO SUPLEMENTO VIDA CULTURAL DO JORNAL DE ANGOLA, EDIÇÃO DE 09 DE OUTUBRO DE 2011.







quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Moçambique: UM PAÍS DE POESIA

Já foi publicada a antologia da nova poesia moçambicana - POETAS DE MOÇAMBIQUE - na nova edição da Revista Zunai, com seleção e organização de Amosse Mucavele (Movimento Kuphaluxa), nota introdutória de Ricardo Riso e poemas de Tânia Tomé, Sangare Okapi, Ruy Ligeiro, Emmy Xyx - Manuela Xavier, Manecas Cândido, Helder Faife, Dinis Muhai, Andes Chivangue, Celso Manguana, Amin Nordine e Mbate Pedro.
Segue o link para a antologia POETAS DE MOÇAMBIQUE:
http://www.revistazunai.com/poemas/index.htm
Abaixo reproduzo a introdução que que Ricardo Riso fez para a antologia.



Ricardo Riso

25 de julho de 2011.http://www.revistazunai.com/poemas/ricardo_riso_introducao.htm


Em boa hora chega para o público brasileiro esta antologia de poesia moçambicana organizada por este jovem guerreiro das letras chamado Amosse Mucavele, que esse novo canal de comunicação, a internet, e o amor pela literatura fizeram o prazer de nos apresentar.
Com pouco mais de cem anos, a poesia moçambicana pode se orgulhar de sua trajetória vigorosa escorada em nomes que se consagraram através de uma lírica contundente e crítica do triste passado colonial, tais como de Noémia de Sousa, Rui Knopfli e José Craveirinha, e mais recentemente Mia Couto, sem dúvida, um dos principais escritores do universo lusófono. Dentre tantos outros poetas que poderia citar, estes quatro são dignos representantes do consolidado sistema literário moçambicano e de reconhecimento entre os amantes da poesia em língua portuguesa.
Entretanto, a poesia moçambicana carece de maior disseminação entre nós, ainda mais quando se trata de agentes contemporâneos, pois por aqui temos apenas Paulina Chiziane, Nelson Saúte, Eduardo White e Luís Carlos Patraquim. Estes, já com alguma fortuna crítica em nossas universidades, porém restritos ao mundo acadêmico apesar dos dois primeiros possuírem títulos publicados no país. Por isso, a pertinência dos nomes selecionados por Amosse Mucavele para oferecer um panorama, ainda que breve, da poesia moçambicana contemporânea.
O leitor perceberá que um macrotema é desenvolvido com frequência pelos poetas aqui reunidos: o país, assim como as implicações do destino que tomou com a independência e de como a população absorveu irrealizações dos sonhos da revolução. Enquanto para José Craveirinha a noção de pertencimento à terra vinculava-se ao direito legítimo e incondicional da pátria livre do jugo colonial, basta lembrar o “Poema do futuro cidadão” e seus versos, “Homem qualquer/ cidadão de uma Nação que ainda não existe”, lemos em Celso Manguana o desencanto da contemporaneidade, “A nenhuma/ cidadania/ pertenço”, de um país à mercê da corrupção e da submissão ao neoliberalismo imposto pelos países desenvolvidos, situação de indignação do poeta por essa “pátria que me pariu”. O canto sofrido desse poeta revela-se na grave crise que assola famílias, “Dividida a pátria/ entre o coração/ e o estômago”, e recorre à intertextualidade ao livro de Nelson Saúte, “A pátria dividida” (1993), para demonstrar a inércia do quadro socioeconômico da nação desde o fim da guerra de desestabilização em 1992. Um país dilacerado entregue a esses jovens como demonstra Manecas Cândido: “Logo que nasci/ deram-me presentes/ de pobreza e um país/ de angústias”.
Refletir poeticamente sobre o país é recorrente na poesia moçambicana. A intertextualidade com esse macrotema vem desde Rui Knopfli e o clássico “O País dos Outros”, no final dos anos 1980 Eduardo White lança “País de Mim”, já Ruy Ligeiro publica “O País de Medo” (2003) sinalizando para as incertezas que dominam o moçambicano na atualidade. Novamente, a referência ao Velho Cravo se apresenta em Ruy Ligeiro: “volto a um país que não existe/ senão quando o habito/ entre abutres de sonhos/ que vêm enovelados/ em galerias de medo”.
Sonhos dilacerados por uma elite corrupta são mostrados pelo olhar ácido aos desvios éticos e políticos de Amin Nordine: “Um a outro os sabores desejados/ Com muitas regalias ministrados/ Banqueiros de banquete obsequiados/ Milhentas vezes da colheita graúda/ Cintilar grandes pratos arrojados;/ Melhorem o celeiro da fome aguda/ Ou vire trigo o grito nos acuda/ Em nome da plebe implorar ajuda”. Descaso e descaminhos que geram a indecisão dessa geração, Mbate Pedro desvela o seu medo diante da amargura de seus pares, “a geografia dos meus medos/ é limitada (em toda a sua extensão)/ pela angústia do meu povo”, enquanto Sangare Okapi desnuda o seu interior em conflito: “há um pequeno país/ no meu país:/ chama-se angústia”.
Entretanto, nem só de críticas ao país versam os poetas como o leitor poderá verificar em “Meu Moçambique” de Tânia Tomé. Neste, tal como em “Hino à minha terra” de José Craveirinha, a celebração ao país se apresenta e assim canta Tomé, “Eu sei Moçambique,/ no cume das árvores, na sede incontinente/ da minha falange, Rovuma ao Incomati,/ no xigubo terrestre dos pés descalços/ e em todos tambores que surdem/ das mãos coloridas nos braços em chaga”.
Concentrei-me na maneira como os poetas contemporâneos pensam poeticamente a nação moçambicana, mas outros temas e vertentes literárias são trabalhados pelos poetas desta antologia. Vale ressalta o simbolismo corrosivo repleto de metapoética e erotismo de Andes Chivangue, nome que merece maior visibilidade, assim como a maneira como Sangare Okapi e Mbate Pedro trabalham o lirismo erótico e a metapoética. Estas características também estão nos poemas de Tânia Tomé, Dinis Muhai, Manecas Cândido, para além do intimismo e das metáforas inusitadas e bem construídas de Helder Faifer e Manuela Xavier (Emmy Xyx).
Para finalizar, parabenizo a revista Zunai por esta bela iniciativa ao abrir espaço para os novos agentes deste país de poesia, tão perto e tão distante de nós, Moçambique.


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terça-feira, 13 de setembro de 2011

"Sandumingu: O Nome de um Miúdo", livro de Frederico Ningi


Frederico Ningi (dir) com o escritor Gociante Patissa
Isaquiel Cori

Acabo de ler o livro de Frederico Ningi, “Sandumingu: O Nome de um Miúdo”, editado pela União dos Escritores Angolanos na colecção “Sete Egos”.

É uma narrativa de 24 páginas, que durante vários dias ficou na minha mesa de leitura à espera de uma oportunidade para ser lida. O subtítulo “O Nome de um Miúdo”, ao remeter imediatamente para a ideia de um livro para crianças, é enganador. Se nas primeiras linhas, efectivamente, o autor parece hesitar entre a narrativa infantil e a, digamos, “adulta”, tão logo envereda para um retrato desapiedado de um sujeito embriagado pelos vinhos do poder.
O que parecia, pela sugestão do título e a hesitação inicial do autor acima referida, um livro destinado primordialmente a leitores infantis, explode tão logo numa prosa satírica, de escárnio, uma pintura de tintas fortes, carregadíssimas, a respeito da vida de um novo-rico que dá precisamente pelo nome de Sandumingu.
A narrativa é rápida, concisa, focada em cenas tão hilariantes que não pude deixar de, de quando em vez, largar umas boas e revitalizadoras gargalhadas.
Sandumingu não é um miúdo. É um indivíduo que se apresenta como “Sandumingu de Sandumingu”, do alto da mais pura arrogância. É um dos milhares de indivíduos que, favorecidos por uma conjuntura histórica, económica, política e social peculiares, se ergueram rapidamente do campesinato para a superestrutura do poder político, económico e empresarial.
Frederico Ningi desconstrói esse indivíduo, desnuda a sua psicologia, ridiculariza a sua arrogância e dá ao leitor um festim de riso de que poucos terão desfrutado ao ler um livro.
Retrato hilariante do novo-riquismo angolano, lá para o fim, a história desemboca num conflito entre Sandumingu e o Senhor-Figura, em que intervêm, ou são mencionadas, a chefe Rabú e a doutora Sorna…

O Autor

Frederico Ningi (n.17/02/1959) é natural de Benguela. Jornalista, artista plástico e poeta, ultimamente está muito voltado para a exploração do potencial artístico das novas tecnologias de informação e comunicação.
Membro da União dos Escritores Angolanos, é  autor dos livros:

 - Os Címbalos dos Mudos (poesia)1994.

- Infindos nas Ondas (poesia) 2002.

- Títulos de Areia (poesia) 2003.

 Tem poemas e crónicas esparsos por publicações angolanas e estrangeiras.


O livro por si mesmo (Excertos)

“Sandumingu, emocionado, descalçou os sapatos dos seus segredos e disse aos integrantes da sua equipe: - Eu fui nomeado e quero ser rico – e então vamos ter de arrumar e limpar o nosso caminho tirando todas as pedras do caminho. Vamos perdoar os casos perdoáveis, se casos da nossa causa forem. – Prometo trabalhar para todos, mas primeiro para mim e para os que estiverem comigo nessa caminhada, prometo dar coragem, que não tenho, posso dar a esperança, que não está em mim.” Pág. 14.

…//…

“Logo depois apareceu o próprio Sandumingu, em pessoa, para resolver as questões de tesouraria com a clínica e apresentar-se junto da equipe médica de serviço naquela noite no banco de urgência: - Eu sou Sandumingu de Sandumingu, como podem ver – e este paciente é o meu tio. Qualquer coisa, é só ligar para o meu móvel. – Por favor, não se acanhem…

- Ele é o que de quem? – perguntou o médico de serviço.

O seu assistente: - é o famoso famosíssimo Sandumingu de Sandumingu. O médico assistente: - é famoso porquê? – Na vaidade e na arrogância.” Pág 15.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Estou de volta, estou de saúde recuperada, obrigado!


 ISAQUIEL CORI

Durante vários meses deste ano de 2011 estive doente. Em alguns momentos eu próprio temi pela minha vida. Mas nunca me senti sozinho. A minha família esteve sempre a meu lado, dando-me um conforto inestimável. A minha esposa esteve na linha da frente do apoio emocional extraordinário de que desfrutei.

Os meus filhos foram o meu acalento nos longos momentos de solidão nos vários internamentos hospitalares a que tive de me submeter. Foi bom, valeu a pena a confirmação de que posso e deverei sempre contar, incondicionalmente, com o apoio dos meus entes queridos.

Mas há outras pessoas que não sendo meus parentes tiveram uma intervenção decisiva na recuperação do meu bom estado de saúde. Sublinho aqui com particular apreço o senhor José Ribeiro, Presidente do Conselho de Administração das Edições Novembro, cujo apoio decisivo é o principal responsável pelo restabelecimento da minha saúde. O senhor Eduardo Minvu, Administrador da mesma empresa, teve igualmente, na sequência, um papel fundamental.

Em Portugal, para onde fui encaminhado, tive a prestimosa ajuda da Dra. Luísa Figueiredo, directora dos serviços de radiologia do Hospital de Santa Marta.  O Dr. João Jácome de Castro, director dos serviços de endocrinologia do Hospital Militar Principal, será sempre merecedor do meu sentimento de gratidão e apreço, tal como a Dra. Maria Santana Lopes, nutricionista. Apesar de discreta, foi decisiva a intervenção do senhor Artur Queiroz.

Tal sentimento é extensivo ao Dr. Henrique Dias, ortopedista, bem como ao Dr. Carlos Morais, angiologista e cirurgião vascular.


Este meu preito de gratidão não ficaria completo se não mencionasse o Dr. Elieccer, angiologista cubano da Clínica Sagrada Esperança, em Luanda, e o enfermeiro Tintas, da mesma clínica.

Afinal, ainda existem pessoas de bom coração sobre a face da Terra. Foi bom comprovar essa verdade, que até então me parecia uma ficção.

De resto, obrigado aos internautas que nunca deixaram de visualizar este meu blog, que, reitero, é uma janela aberta para a vida em Angola e no Mundo.


quarta-feira, 20 de julho de 2011

Notas de um Verão frio em Lisboa

Isaquiel Cori | Lisboa



Ponte Vasco da Gama


Lisboa, a encantadora capital de Portugal, vive os dias de um verão atípico, com a temperatura ambiente a obrigar os forasteiros mais friorentos, sobretudo ao cair da noite e ao princípio da manhã, ao uso de roupas adequadas.

A cidade continua a atrair imensos cidadãos estrangeiros, apesar das notícias pouco animadoras a respeito da crise que afecta o país. O Rossio é a meca que todo o mundo sabe e é um deslumbre percorrê-lo todo, por entre a multidão de vozes em várias línguas, as montras apelativas das lojas e as esplanadas, quase sempre abarrotadas de clientela, dos restaurantes. A calçada, antiga mas muito bem cuidada, remete-nos imediatamente para o universo poético de Cesário Verde, que no século XIX descreveu, com uma beleza e precisão definitivas (Cristalizações), o trabalho pesado dos calceteiros lisboetas (“terrosos e grosseiros”).

Num outro lado da cidade, na parte oriental, estão jóias da modernidade como o Oceanário (considerado por muitos o melhor do mundo) e a ponte Vasco da Gama (cujo vulto enorme estende-se por toda a dimensão do olhar).

Por estes dias um fantasma percorre Lisboa e todo o Portugal. É o fantasma da crise económica que assombra os portugueses e ensombrece o Verão. A crise ainda não marca o quotidiano de modo exuberante mas já preenche os principais espaços das televisões e dos jornais. O recente anúncio do imposto extraordinário de 50 por cento sobre o subsídio de natal foi recebido pela população, de modo geral, com desagrado e ao mesmo tempo com resignação resultante da compreensão da necessidade de se consentir sacrifícios para se ultrapassar a situação.

O país, carregado de dívidas e com um défice orçamental enorme, tem de implementar, em três anos, um programa de austeridade imposto pela Troyka (União Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), com reformas estruturais que irão repercutir em todos os sectores da actividade económica e social. Prevêem-se, ao menos, dois anos de recessão e o desemprego deverá agravar-se, atingindo em 2012 os 13,2 por cento.

A grande dúvida que paira em muitos espíritos é se os sacrifícios exigidos pelo governo valerão mesmo a pena, quando é cada vez mais patente que os problemas e as soluções ultrapassam o quadro português e estendem-se a toda a zona do euro. Muitos analistas sustentam a teoria da conspiração e denunciam um ataque em toda a linha contra a moeda única europeia por forças do mercado interessadas na supremacia do dólar norte-americano. Nesse quadro, as todo-poderosas agências de notação, predominantemente americanas, com a Moodys à cabeça, são encaradas como as principais desestabilizadoras do mercado europeu. Só para lembrar, na semana passada, a sentença da Moodys, que atirou a dívida pública portuguesa à categoria de lixo, suscitou o repúdio da sociedade lusa que se uniu num sentimento geral de orgulho nacionalista. Aliás, a dita sentença da Moodys teve o condão de levantar, a nível europeu, todo um coro de solidariedade para com Portugal e aumentar a percepção geral a respeito do poder nefasto de tais agências.

Se o futuro próximo e distante de Portugal é mais do que complicado, hoje por hoje a vida em Lisboa segue o seu curso normal. As férias de verão levam muita gente às praias e os festivais musicais que se vão sucedendo reúnem multidões sedentas de diversão. Mas as pessoas sabem o que se passa e o que as espera nos próximos tempos, não fossem os cidadãos portugueses indivíduos muito bem informados. Os telejornais e os debates televisivos são acompanhados atentamente até nos restaurantes e os jornais, segundo estatísticas recentes, são cada vez mais procurados.

No verão os jornais adoptam estratégias diversas para aumentar as vendas. Só para citar um exemplo, o Diário de Notícias está a oferecer gratuitamente com as suas edições das segundas-feiras, quartas e sábados livros de bolso, com pouco mais de meia centena de páginas, que reúnem contos de autores universais. É uma verdadeira delícia reencontrar assim textos de mestres como Edgar Allan Poe, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Guy de Maupassant, e outros.
Raramente a imprensa consegue alcançar tamanha expressão de serviço público!

(Texto publicado na edição de 17/07/2011 do Jornal de Angola)


domingo, 2 de janeiro de 2011

Kandengues ontem, kotas hoje

Isaquiel Cori

Profundamente envolvidos na aventura de viver, cabisbaixos no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido pelos minutos e horas dos dias, nos transforma. Mas há dias em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.
Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de um dia de trabalho tão esgotante e entediante como os outros, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem, está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.
Foi como se tivesse apanhado um soco no peito. “Kota eu, desde quando?”, exclamei, quase cambaleando.
Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um profundo olhar sobre a minha vida. “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”
Lutando pela vida, a vida transcorrera sobre mim e eu não me apercebera do tempo que me corróia. Independentemente da minha vontade, a vida e com ela o tempo chamavam-me à responsabilidade.
“Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, assumindo então a minha condição de “kota da banda”.



O meu aldrabão favorito

Isaquiel Cori

Os aldrabões assumidos, confirmados e reconfirmados nos seus atributos, são figuras muito nossas conhecidas. Eles pululam em nosso redor.
Há os que se apresentam puros, inconfundíveis, até mesmo perfeccionistas: neles, o aldrabar já é um modo de vida. São, digamos assim, artistas da aldrabice.
Mas entendamo-nos: aqui, estamos a falar dos bons aldrabões, dos indivíduos em todo o caso honestos na sua desonestidade, e coerentes, porque sistemática e repetidamente incoerentes.
É fácil identificá-los nas suas falas versáteis e fluentes e nos gestos largos com que dão mais força às suas estórias engenhosas.
São aldrabões porque é assim que vivem e alimentam o seu ego. Mas porque já sobejamente conhecidos raramente provocam danos. Suscitam o riso, tiram-nos do sério e contribuem imensamente para o nosso bem-estar.
Alguns foram tão marcantes na nossa infância que as suas estórias continuam a povoar-nos o imaginário e eles próprios a habitar a nossa memória.
Há uma geração de ex-crianças do Kassequel do Buraco e do Kassequel do Lourenço, bem como da Calemba, do tempo em que os bairros, mais do que um conjunto de casas eram um sentimento incrustado no coração das pessoas, que conheceu muito bem o Mano Azevedo. Ele narrava-nos histórias incríveis, grosseiramente mentirosas e falsas, de tal modo que, trinta e tal anos depois, essa figura ergue-se na lembrança dos hoje adultos como a consumação da aldrabice e da mentira.
Mas trinta e tal anos atrás ele fora o portador do fantástico e do inverosímil para um pelotão de crianças ávidas do maravilhoso. As suas estórias convocavam e apelavam ao sonho, dinamitavam as frágeis, falsas e arbitrárias fronteiras da nossa realidade.
Até hoje, o Mano Azevedo é o meu aldrabão favorito.

Jornalismo Angolano Hoje

Da importância dos prémios aos profissionais


Isaquiel Cori

Os prémios, seja em que actividade for, constituem sempre um importante elemento de estímulo à criatividade e inovação e uma forma de conferir alguma transcendência àquilo que se faz todos os dias. 
Em algumas profissões um dos principais inimigos da eficiência contínua é o tédio, que resulta de se estar a fazer todos os dias a mesma coisa.
Daí que, pessoalmente, saúdo todos os prémios que visam incentivar os profissionais de uma determinada área ou a estimular e encorajar o acesso de novatos a essas áreas. Aliás, é minha opinião que os prémios deviam multiplicar-se, em todas as áreas, sejam profissionais, artísticas, desportivas, académicas ou culturais.
Enquanto profissional do jornalismo, tenho acompanhado o frenesim que se estabelece na classe quando se aproxima a data do anúncio dos vencedores dos concursos, sejam provinciais ou nacionais. Há como que um despertar da consciência de que se deve trabalhar mais e melhor para se ser considerado candidato ao galardão máximo. Ora, aí, como se diz vulgarmente, já é tarde e má hora.
Sendo anuais, os prémios precisam de ser abordados, pelo profissional interessado, com um projecto estratégico de trabalho coerente, cuja concretização se estenda ao longo de grande parte do ano. Isto porque a maioria dos júris tende a considerar mais os candidatos que se tenham revelado não só com qualidade mas também com bastante regularidade.
Independentemente da agenda de iniciativa das respectivas empresas, os jornalistas devem estabelecer uma agenda de trabalho pessoal, que deverão naturalmente submeter à direcção do órgão a que pertençam, garantindo assim a sua exequibilidade material e operacional.
O género mais susceptível a premiação é a reportagem, dado o seu maior impacto, resultante do facto de poder captar de forma mais completa e humanamente interessante os vários recortes da vida e de exigir do jornalista não só um grande domínio da narrativa jornalística mas também um olhar incisivo e acutilante sobre aquilo que constitui o objecto da reportagem. Os outros géneros, naturalmente, também são de considerar.
No fim de tudo, quando se anunciam os vencedores, caso não tenha sido um deles, o profissional não deve esmorecer: a sua postura pró-activa em torno de um trabalho continuado no tempo, certamente, terá contribuído para a elevação da sua reputação profissional.
Os prémios são, assim, também, um pretexto para se fazer algo que se eleve para lá da rotina do quotidiano. Daí que, efectivamente, deviam multiplicar-se, inclusive no âmbito interno das redacções. A competição profissional, saudável e leal, devia ser incrementada, de forma transparente, com a concessão de estímulos que tanto poderiam ser financeiros, materiais e até mesmo simbólicos.
Todos, certamente, sairiam a ganhar.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

PREFÁCIO A UMA ANTOLOGIA DO CONTO ANGOLANO

Publico aqui o prefácio a Antologia do Conto Angolano, ainda no prelo, a ser editada pela editora portuguesa Caminho, de autoria de Zetho Cunha Gonçalves e João Melo. O prefácio faz um apanhado panorâmico da literatura angolana contemporânea e situa a obra dos autores antologiados. É um bom exemplo de como uma antologia literária deve ser feita: isto é, deve fazer-se acompanhar de um texto que situe os autores e sua obra no contexto mais geral do sistema literário, justificando, de certo modo, a razão de terem sido eles os escolhidos. Este texto foi tomado do site Buala: Cultura Contemporânea Africana (www.buala.org/pt/a-ler/prefacio-a-uma-antologia-do-conto-angolano). As ilustrações são reproduções de obras do artista plástico angolano Marco Kabenda, igualmente tomadas do mesmo site.


Na origem e na formação das literaturas nacionais dos países africanos de língua oficial portuguesa, com as peculiaridades e motivações inerentes a cada país – diferindo mais que tudo os países continentais (Angola e Moçambique) dos países insulares (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – ilhas desabitadas aquando do seu achamento, e países bilingues, com os seus crioulos a par da língua oficial portuguesa) –, sempre a poesia teve a primazia na afirmação nacionalista (ou de identidade nacional, conforme se queira) sobre a prosa de ficção. E a razão encontra-se no facto de que, só a partir dos anos 30 do século XX, a prosa narrativa de ficção se começou a consolidar com inequívoca qualidade estética, numa perfeita ruptura com as literaturas coloniais.
Em Angola (cuja literatura escrita remonta a 1849, com a publicação, em Luanda, do primeiro livro impresso na África subsariana, Espontaneidades da Minha Alma. Às Senhoras Africanas, poemas do angolano José da Silva Maia Ferreira, ou antes ainda, com os escritos de António de Oliveira Cadornega no século XVII), é com Óscar Ribas e Castro Soromenho que se fecunda, nasce e impõe a moderna prosa de ficção narrativa.
Óscar Ribas, que viria a tornar-se um dos mais importantes e fecundos etnólogos e etnógrafos angolanos, reconhecido e galardoado internacionalmente por esse seu trabalho, publica, em 1927 (aos 18 anos de idade), na sua Luanda natal, a novela Nuvens que passam. Dois anos depois, dá à estampa O resgate de uma falta, outra novela.
São obras de juvenília, é certo – mas nelas está já o gérmen angolense e etnográfico que balizará toda a obra ficcional do autor, com todos os defeitos e todas as qualidades que tal opção estética comportará. Não raro, a sua obra narrativa de ficção se torna excessivamente explicativa, nela se encontrando ausente todo o poder sugestivo que a estrutura literária e a consumação estética exigem, com o etnógrafo sobrepondo-se quase sempre ao ficcionista.
Partindo dos contos, das lendas, dos ritos e das cosmogonias dos povos da Lunda, no Nordeste de Angola (que tão bem conheceu, e com quem intimamente conviveu na infância, em parte da adolescência, e já na idade adulta), Castro Soromenho, ao publicar, em 1938, o livro de contos Nhári. O drama da gente negra, reabilita e dignifica a memória cultural desses povos ágrafos ao lhes dar “voz” – ou melhor: restituir “a voz” –, na voz mais alta (ou assim cotada nos cânones do Ocidente), que é a “voz da escrita”.

Ao transpor, impiedosamente, para a sua escrita (que é a sua voz autoral), toda a tradição e memória culturais desses povos (em confronto com a ideologia colonial dominante), Castro Soromenho consolida, pela epopeia que nessa mesma obra se consuma – sempre em crescendo, até à derradeira e magnificente “Trilogia de Camaxilo”, com os romances Terra Morta (1949), Viragem (1957) e A Chaga (1970) – a modernidade da literatura ficcional angolana.
A década de 50 do século XX, na sequência do movimento «Vamos descobrir Angola!» (1948) e do «Movimento dos Novos Intelectuais de Angola» – através da sua revista Mensagem (1951-1952), logo seguida por Cultura II (1957-1961) – e da importantíssima actividade editorial da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, e, subsequentemente, a actividade das Publicações Imbondeiro, em Sá da Bandeira (actual Lubango), da responsabilidade de Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, e dos Cadernos Capricórnio, no Lobito, dirigidos por Orlando de Albuquerque, trouxeram novas perspectivas à criação e divulgação da emergente literatura angolana.
Agostinho Neto e António Jacinto, dois dos mais importantes intelectuais ligados ao movimento de Mensagem, deixaram na poesia a sua marca indelével na literatura angolana. Porém, ambos produziram ficção breve – estórias ou contos (ainda que obra reduzida, em volume quantitativo) –, na prossecução dos propósitos nacionalistas que norteavam a geração de Mensagem. A inclusão dos seus contos nesta antologia, mais que só uma homenagem, é, também, um acto de justiça, que a sua qualidade estética plenamente justifica.
Uanhenga Xitu – que poderia muito bem ter pertencido à geração da revista Mensagem ou de Cultura II –, por razões políticas (foi preso político e esteve no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde – onde escreveu grande parte da sua obra –, de 1962 a 1970), só em 1974 se revela como escritor, trazendo para a literatura angolana as “vozes da sanzala”, a oratura do interior, em sua polifonia linguística, carregada do humor inerente às situações simultaneamente trágicas e cómicas – bem patentes no conto aqui reproduzido, Bola com feitiço –, o que o torna, no dizer de Salvato Trigo, “inequivocamente um dos maiores ‘africanizadores’ da literatura angolana”.1
Henrique Abranches (que integrou o grupo de colaboradores de Cultura II), é autor de uma vasta obra literária e plástica, que vai do ensaio histórico e antropológico, à poesia e ao teatro, e do conto ao romance, passando pela ficção científica e pela banda desenhada. Alimentada por múltiplos interesses e inquietações, a obra ficcional de Henrique Abranches tem na História do próprio país e no resgate da literatura da tradição oral (pela reelaboração estética do maravilhoso e do fantástico, tornando não raro a escrita numa espécie de segunda voz da oratura), a sua marca e a sua vitalidade mais constantes.
Mário António, que publicara na revista Mensagem (a cuja geração pertence) o seu primeiro conto, construirá a sua obra ficcional reelaborando alguns contos da tradição oral angolana (“Histórias tradicionais recontadas livremente”, assim as designa o autor), como é o caso do conto aqui seleccionado, O homem que queria casar-se com a filha do Sol e da Lua, com todo o seu imaginário mítico, o seu poder encantatório e mágico, à semelhança e sob a nítida influência de Castro Soromenho. Outra temática (e esta afim de muita da sua poesia) é a questão da mestiçagem física e cultural na sociedade crioula de Luanda, de que se destacam os contos e novelas de Crónica da cidade estranha.
Arnaldo Santos e José Luandino Vieira pertencem à geração de Cultura, sucedânea da geração de Mensagem. São gerações altamente politizadas e politizantes, que utilizam a literatura como forma de denúncia, não raro panfletária, dos desmandos do colonialismo, e a colocam na vanguarda da formação e consciencialização da identidade nacional. E tanto assim é, que muitos dos intelectuais que as enformaram se tornaram dirigentes dos movimentos de libertação (sobretudo do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola), passando pelas masmorras da polícia política salazarista, como foi o caso de Agostinho Neto, António Jacinto, Henrique Guerra, Luandino Vieira e Uanhenga Xitu, para citar apenas o nome de autores aqui representados.
Deve-se à geração de Cultura II, essencialmente formada por poetas, e sob os auspícios de Castro Soromenho e à influência da literatura brasileira, através de escritores e poetas como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima (João Guimarães Rosa chegará depois, fulminante), “o projecto de criação de uma ficção angolana.” “Sobretudo através do conto.”, sendo esses mesmos autores “reunidos depois na antologia Contistas angolanos, 1960, da Casa dos Estudantes do Império, e, mais tarde, uns tantos nas antologias da Imbondeiro.”2
A cidade de Luanda, a cidade histórica e a cidade mítica, bem como os seus musseques, são o cenário comum a Arnaldo Santos e Luandino, do mesmo modo que a infância (A Cidade e a infância é, aliás, o título do primeiro livro de Luandino) é a vitalidade, a voz polífona, a crueldade, a cumplicidade e a transgressão, e se torna ela mesma personagem na tessitura das próprias narrativas, avivando a denúncia das contradições sociais e raciais na sociedade colonial.
Arnaldo Santos tem vindo a construir, desde 1960 (quando publicou o seu primeiro conto e o seu primeiro livro de poemas, Fuga), uma obra onde a memória e a poesia, a história recente do país e as transformações sociais nela implícitas, se aliam numa afirmação plena de valorização e enriquecimento da literatura angolana, de que A Boneca de Quilengues, uma das suas ficções mais recentes, é perfeito exemplo.
    José Luandino Vieira, porventura o mais conhecido e traduzido escritor angolano contemporâneo – escritor na linha directa de João Guimarães Rosa –, é autor fundacional de uma língua e de uma estilística, de uma estética caldeada por as mais variadas contribuições culturais e linguísticas, trazendo, pela escrita, à modernidade da ficção narrativa, uma oralidade radicalmente nova, encantatória e fulgurante de poesia. E é justamente essa força capaz de reinventar a língua portuguesa, revificando-a pela transgressão e violentação da sua convencionalidade estéril, que faz de José Luandino Vieira um dos vultos maiores da nossa contemporaneidade literária, assinando algumas obras-primas, como as estórias de No antigamente, na vida e Macandumba, ou os romances Nós, os do Makulusu e João Vêncio: os seus amores.
No resgate da literatura da tradição oral, e numa atenção crítica aos desmandos do quotidiano seu contemporâneo, também Dario de Melo (cuja obra na área da literatura infanto-juvenil é de capital importância) e Henrique Guerra se têm vivamente empenhado, construindo cada um, com sua voz própria e pessoalíssima cosmovisão interventiva, uma obra onde as palavras são para ser lidas como se fossem cantadas. Com muito gesto, conforme a tradição, e sempre acompanhadas pelo bater compassado e encantado das palmas.
Jofre Rocha, o poeta cujo canto é nascido da muita e de todas as sedes de contar, tem na mesma génese a construção e elaboração das suas estórias sobre as gentes humildes dos musseques luandenses. Não por acaso se chama “Estórias do musseque” o seu primeiro livro de ficção, burilado numa escrita onde a atenção ao coloquial padrão se transforma numa pessoalíssima e vigorosa angolanização da língua portuguesa.
Ruy Duarte de Carvalho entra na literatura angolana, em 1972, com a publicação de Chão de oferta, pela poesia – e pela porta mais alta: a de uma voz de catarse, “De uma nação de corpos transumantes/confundidos/na cor da crosta acúlea/de um negro chão elaborado em brasa.”3E voz, desvairadamente pessoal, telúrica. Voz de cisão, transmudante e transumante, inaugural. E é, na sequência da publicação de A decisão da idade (reunião da sua Obra Poética até então, em 1977), que Ruy Duarte de Carvalho dá à estampa Como se o mundo não tivesse leste – estórias do sul e seca, a sua primeira obra de ficção.
São estórias – e é a essas estórias que se vão buscar As águas do Capembáua, a estória que aqui se dá a ler, antologizada. Telúrica, e sábia de transumância: outros universos, enfim, na prosa de ficção angolana, de voz eivada e levada do deserto, lá do Namibe, no Sul do país, por Ruy Duarte de Carvalho, dono e senhor de uma das obras mais sólidas e avassaladoras da leitura antropológica da Terra e da humanidade sua habitante, vivente e sobrevivente, cujo corolário é a imensidão desse fresco enformado por Vou lá visitar pastores (1999), As paisagens propícias (2005), Desmedida: Luanda-São Paulo-São Francisco e volta. Crónicas do Brasil (2006) e A terceira metade (2009) – tetralogia dos mapas secretos da Terra, trânsfugas e comunicantes, coniventes – e a sua voz inteira. Em viagem, em atenção e registo lapidar e soberano – epopeia, em seu canto maior.
Pepetela (essencialmente romancista, não obstante a sua obra contar com um livro de contos e algumas peças de teatro) vem elaborando na literatura angolana de ficção uma espécie de epopeia fragmentada e em socalcos, quer pelos motivos que se propõe tratar, quer pelos tempos em que as acções decorrem. A obra de Pepetela revela um levantamento sociológico ímpar, de Angola e da angolanidade, narrado ao leitor com a mestria e a sageza de um contador de estórias a voz plena.
Manuel Rui, cujo primeiro livro de contos, Regresso adiado (1973), reflectindo o exílio e a dicotomia África/Europa, e, de onde é retirado o conto dado à estampa nesta antologia – inquestionavelmente um dos seus contos mais emblemáticos, quer pela temática [a humilhação ou a alienação do homem angolano durante o colonialismo, e onde a figura do mulato – Mulato de sangue azul – é uma metáfora contundente da sociedade colonial angolana, com todas as suas contradições de sangue, de raça e de classe social, pois se “Os brancos adiantam que mulato é filho de uma nota de vinte paus (nota de vinte escudos, ou seja, o preço de uma relação sexual de um branco com uma prostituta negra); os pretos, sempre que um mulato arreganha, cospem que mulato não tem terra.”], quer pelo seu alto nível de realização estética –, tem vindo a afirmar-se, com uma obra vasta e multifacetada, trabalhando o coloquial padrão das ruas de Luanda e seu natural “reinventar” da língua portuguesa, o seu absurdo quotidiano, o seu humor, a sua ironia fulminante, como uma das vozes mais estimulantes do panorama literário angolano, de que é justo salientar as novelas Quem me dera ser onda e De um comba.
Fragata de Morais constrói as suas narrativas mesclando a tradição da oralidade com as situações absurdas e hilariantes do quotidiano (sobretudo luandense), numa escrita quase de oratura, eivada de humor e espantada leveza, a que a crítica social sempre “ajindunga” e dá à estória a imagem mais fiel da impressão digital do seu autor.
Jacques Arlindo dos Santos é outro caso de “maquinar” humor nas estórias que nos inventa, onde a alegoria se nos apresenta como um dos seus recursos estilísticos mais constantes. Mas o que Jacques Arlindo dos Santos melhor faz na sua obra ficcional, é “a história das mentalidades, sem tirar nem pôr. Acredite quem quiser.”, disse, um dia, João Melo, para logo acrescentar: “Não faltam, até, as trepidantes aventuras sexuais.”
Boaventura Cardoso traz para a escrita um experimentalismo linguístico, numa “redescoberta de Angola”, pela sua linguagem e onirismo dela decorrente. Isso mesmo (e de modo mais explícito) nos diz o próprio autor:
Sem pretendermos influenciar a apreciação do leitor sobre o nosso processo de escrita, gostaríamos, no entanto, de frisar a linguagem gramaticalmente angolanizada, a sintaxe reinventada para surtir ritmos sincopados dos falares africanos, o recurso a linhas curvilíneas dos fios da história e a constante repetição de frases, o que é uma das componentes de fundo da narrativa afro-banto.4
E essa “envolvência da linguagem banto do maravilhoso e fantástico”5no seu discurso ficcional é um dos encantamentos, nem sempre fáceis, da sua obra literária.
José Mena Abrantes é um nome que se tem distinguido essencialmente no domínio da escrita para teatro, ou sobre o teatro – para além de ser, também, fundador ou co-fundador, e encenador, de vários e importantes grupos no panorama nacional, como é o caso do “Elinga Teatro”, formado nos anos de 1980. A sua obra, quer como dramaturgo, quer como ficcionista, alimenta-se da matéria temática da História do país (inclusive da História recente, com as inevitáveis sequelas da longa e terrível guerra civil e seus protagonistas – com toda a violência, terror, inumanidade e perfídia) em consonância com as literaturas orais, de cujo poder ancestral José Mena Abrantes recolhe e remaneja o sentido transcendente que torna a esperança possível – e a Vida, para quem já praticamente não existe, uma espécie de “vingadora do Além”.
O que primeiro ressalta na obra de Fernando Fonseca Santos é a força telúrica e o encantamento poético da sua escrita. Recorrendo a lendas e mitos fundadores da tradição oral, sobretudo dos povos do centro e Sul de Angola, Fernando Fonseca Santos caldeia o maravilhoso e o fantástico dessa memória ancestral, tanta vez visionária, com a História do país, quer a mais recente (em que a presença da tragédia da guerra civil tem papel preponderante), quer a História mais recuada, onde a afirmação nacionalista se rescreve, reflectindo o autor “a necessidade da literatura e da cultura angolanas recuperarem e readaptarem a herança das culturas orais das suas várias comunidades.”6
Paula Tavares, indiscutivelmente um dos nomes a reter no panorama da poesia moderna angolana, rememorando e resgatando tradições ancestrais e seus ritos; incorporando adágios e provérbios na sua obra (quer poética quer narrativa), traz com a narrativa Cartas de Noéji e Ana Joaquina, uma visão da História de Angola mais recuada, a do grande Império da Lunda. A obra de Paula Tavares, construída a partir de um atentíssimo olhar feminino, é uma obra profundamente religiosa – não tanto pelo seu quase constante diálogo com os temas bíblicos, mas no sentido mais fundo de religação das “coisas” do Mundo: a Terra e o erotismo dos corpos sobre ela; a sensualidade dos cheiros, desde a infância remota; os frutos cantados como quem os possui e saboreia, amante. Não raro, em Paula Tavares, a prosa (crónica ou conto) é proesia, prosema, Poema.
João Melo, contista revelado em 1999 com Imitação de Sartre e de Simone de Beauvoir, traz para a ribalta literária, numa linguagem surpreendente de humor e sarcasmo, o “desbundante” quotidiano angolano dos nossos dias, através de uma escrita que revela um ficcionista com arguto senso de observação, capaz de flagrar como poucos os descompassos da cena urbana luandense e situá-los sob as lentes de uma ácida ironia. Sob esse particular, pode-se verificar que os contos do autor não raro retomam algumas personagens caras à prosa angolana contemporânea como as crianças marginalizadas, por exemplo, mas sem qualquer piedade, com uma linguagem crua que ilumina essas criaturas sob uma nova perspectiva.7
Em João Melo, para além da mestria iconoclasta na construção narrativa do contar e fazer (en)cantar das suas estórias, é de realçar, ainda, a atenção e o espaço que a temática da mulher e/ou da condição feminina detêm na sua obra.
José Luís Mendonça, poeta sobejamente conhecido e autor de uma das obras mais consistentes da poesia angolana contemporânea, é aqui revelado como contista, numa estória onde o maravilhoso e o fantástico são as traves mestras de que a narrativa se constrói e sustenta, num diálogo sereno da modernidade literária com a voz da tradição e da ancestralidade mítica e fundacional.
João Tala é outro poeta que, à semelhança de José Luís Mendonça, encontrou na estória e no seu contar uma outra forma de comunicabilidade e continuidade do fazer poético. Uma inventividade e uma frescura discursivas, onde a “surrealidade” do quotidiano e a herança literária advinda do movimento surrealista se dão as mãos, fazem de João Tala uma outra voz firme no panorama da nova (ou mais recente) produção ficcional angolana.
Luís Kandjimbo, cuja obra ensaística sobre a literatura angolana se tornou já um marco fundamental nas nossas letras, é outro poeta a quem também só o poema não basta como forma de expressão e criação literária, trazendo para as suas estórias a memória cosmopolita em confronto com os múltiplos quotidianos urbanos, com particular enfoque para a sua antiga e sempre jovem cidade de Benguela.
Tal como José Luís Mendonça, também o autor destas linhas se revela aqui como contista.
José Eduardo Agualusa é um mistificador impenitente – quero eu dizer: um ficcionista nato, um contador d’estórias de voz bem colocada e mão cheia, na escrita. E a escrita de José Eduardo Agualusa é uma escrita “viandante”: uma prosa de trazer o mar todo a uma praia única e como que transumante e transcontinental (de Angola, Áfricas, Europas, Brasil), numa proposta de aproximação e encontro, de doação e partilha, de inquirição e festa, de revelação e magia. As narrativas de José Eduardo Agualusa – da crónica ao romance, passando pelo conto –, fluem entre a História mais recente do país (num olhar não isento de humor e rebeldia), e o “maravilhoso” da literatura fantástica ou do realismo mágico, na linha de um Juan Rulfo, de um García Márquez ou de um Jorge Luis Borges.
A obra de José Eduardo Agualusa, iniciada com o romance histórico A Conjura, em 1989, é uma das obras mais límpidas, mais seguras e consistentes, no universo da ficção contemporânea de língua portuguesa.
Luís Fernando, para quem a crítica social produzida através do trabalho estético sobre a História e o quotidiano mais recentes é uma das suas imagens de marca mais consistentes, ao falar dos propósitos e característicos da sua obra, afirma que a elaboração da mesma é “unicamente para proporcionar humor, coragem, optimismo e alegria ao leitor”, porque “a vida é um caleidoscópio de emoções onde a componente riso e boa disposição deve estar presente.”8
Carmo Neto, não obstante a sua ainda parca obra publicada, é outro espantoso cronista de costumes, através da criação de personagens e situações buscadas nos quotidianos luandense e malanjino, socorrendo-se de uma estrutura narrativa que Osvaldo Silva9 assim descreve:
As intrigas [na obra de Carmo Neto] são caracterizadas por episódios de viés picaresco, burlesco e até paródico, tendo nas personagens, e na rede de relações que essas constituem, o centro simbólico da crítica dos valores, discursos e ações que enformam o universo perverso das novas ordens sociais e políticas. De tal sorte que o aparente carácter fragmentário da obra é degenerado pela noção de afinidade subjacente ao estatuto semântico e temático conferido às personagens, numa elaboração temporal que justifica o recurso às memórias do presente e do passado.
Ismael Mateus traz para a sua obra o centro dos furacões do poder, onde acção governativa, intriga política e seus actores se expõem numa trama narrativa consistente, sustentada por uma prosa desembaraçada, sem excessos descritivos, e onde a acção se sobrepõe à tentação fácil de divagar por explicações e justificações que certamente assassinariam todo o prazer jubiloso da fruição plena do texto.
A prosa de Marta Santos é uma prosa carregada de poesia, de sensualidade, não raro de um humor desconcertante, mas sempre com um profundo respeito pela sabedoria que os mais-velhos transmitem aos mais novos, e que é um dos valores fundamentais da cultura angolana da tradição oral.
A presença da personagem do mais-velho em contraponto com a personagem da criança é um dos característicos da obra de Marta Santos, também ela autora de literatura infanto-juvenil, na qual recupera a tradição da contação de estórias ao luar, em roda de uma fogueira, numa transmissão de memórias e ensinamentos ancestrais pela voz sábia dos mais-velhos aos mais novos e às crianças.
Roderick Nehone traz para a prosa angolana a tragédia e a comédia (as duas faces da moeda) do quotidiano, o seu lado absurdo e caricato, ou o seu lado fantástico e maravilhoso. A escrita move-se numa prosa límpida, trabalhada, aparentemente simples na sua construção e funcionalidade narrativas.
A obra de Roderick Nehone revela uma leitura atentíssima dos paradigmas da sociedade angolana contemporânea, onde a condição da mulher, sobretudo no período do pós-guerra, assume um papel de extrema relevância. Tal como o humor trasbordante, que é por certo um dos maiores encantamentos desta prosa.
Sónia Gomes trabalha na sua obra uma temática obsessiva e rara no panorama da literatura angolana: a maternidade, a saúde pública e o flagelo do HIV/SIDA. Profissional de saúde, Sónia Gomes parte da experiência do seu dia a dia como enfermeira para dar ao leitor uma obra inquietante e poderosa, não raro de pendor moralista, e como que um despertar de consciências no vertiginoso redemoinho de transformações e desigualdades sociais em que a sociedade angola se move.
Isaquiel Cori é outro autor de parca obra publicada, que tem na História recente de Angola o húmus da sua criação literária. E nela, o que sobremaneira ressalta, é a vivência e a construção das suas personagens, arrancadas em carne viva aos dramas e às tragédias vividos ao longo da guerra civil que durante anos devastou o país. A obra ficcional (ainda breve) de Isaquiel Cori, a par do seu trabalho como jornalista, trazem à literatura angolana mais uma voz na afirmação da sua pujança e multiplicidade.
Profundamente influenciado pela obra de José Luandino Vieira, de Mia Couto e do poeta brasileiro Manoel de Barros – cujo cordão umbilical é o seu catapultar festivo e trangiverso para a escrita –, “Ondjaki é”, segundo Pepetela, no texto que escreveu para a orelha de E se amanhã o medo (Editorial Caminho, Lisboa, 2005), “um jovem que escreve uma ficção viçosa e jovem. (…) Esperemos que saiba sempre aliar o estudo e a pesquisa com o sentimento de prazer, que fornece a frescura e a alegria a um texto.”
De literatura emergente e de combate, a literatura angolana de ficção é hoje uma literatura com uma pujança e uma modernidade que a edição, a crítica, os estudos universitários e a fortuna de leitores têm vindo a solidificar e a confirmar. Jovem, é certo, se comparada com outras – mas literatura com estórias para contar. Estórias vivas – e muitas! –, cheias de gente dentro – com seus dramas, suas alegrias, seus casos e magias, seu(s) humor(es). Esse é o segredo, a sedução da moderna ficção angolana: ter estórias para contar, encantar, e enfeitiçar – em suas afinidades e ressonâncias, seu rosto e voz (polífona e polígrafa) voltados para o Mundo.



Antologia do Conto Angolano. Em colaboração com João Melo. Alfragide: Editorial Caminho, no prelo.

1. 1. TRIGO, Salvato. Uanhenga Xitu. Da oratura à literatura. Cadernos de Literatura, 12, 1982.

2. 2. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa 2. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, vol. 7, 2.ª ed., 1986, pp. 54 e 55.

3. 3. CARVALHO, Ruy Duarte de. A decisão da idade. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 3.ª ed., 1977, p. 13.

4. 4. CARDOSO, Boaventura. A escrita literária de um contador africano. In: Cavalcante Padilha, Laura e Calafate Ribeiro, Margarida (Org.). Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p.18.

5. 5. Ibid.

6. 6. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 123.

7. 7. MACEDO, Tânia. Posfácio. A poesia, retrato sem molduras. In: Melo, João. Auto-retrato. Lisboa: Editorial Caminho, 2007, pp. 73 e 74.

8. 8. FERNANDO, Luís. In: www.portalangop.co.ao, 6 de Março de 2010.

9. 9. SILVA, Osvaldo. Degravata: entre ter, aparecer e ser. Revista Crioula − Revista Eletrônica dos Alunos de Pós-Graduação, n.º 5. DLCV-FFLC-USP, Maio 2009.