quarta-feira, 20 de abril de 2022

MÉDICO E NACIONALISTA MANUEL VIDEIRA: “O mais importante para os da minha geração é escrever sobre o processo da Independência”




O médico urologista e cirugião (na reforma) Manuel Videira recebeu-nos na sua residência, em Luanda, numa manhã sem sol, a prenunciar chuva. “Vai um café? Com ou sem cafeína?”, convidou, mal nos sentámos num confortável sofá. Enquanto o café não vinha fomos directos à conversa que nos interessava. Manuel Videira revelou-se um homem tranquilo, com um discurso lúcido, ponderado mas que não foge às questões aparentemente difíceis. Quisemos saber pormenores do seu percurso como nacionalista activo, a sua convivência no seio do MPLA em Leópoldiville e depois no interior de Angola até ao momento da sua prisão em 1976 e o consequente abandono da vida política activa.  O seu livro de memórias “Angola: Um Intelectual na Rebelião”, prefaciado pelo reputado historiador Jean-Michel Mabeko Tali, esteve no centro da conversa

 Isaquiel Cori (Textos)

Considera-se um dos fundadores do MPLA?

Não. Fui um dos militantes que “fundaram” o MPLA em Léopoldville (actual Kinshasa). Não me considero um fundador do MPLA.

 

Quando vai para estudar em Portugal, em 1954, já se falava em movimentos nacionalistas angolanos organizados?

Eu só oiço falar do MPLA como tal apenas em 1961, depois do 4 de Fevereiro. Pelo menos em Coimbra não sabíamos da existência do MPLA como “partido” organizado. Cerca de cem estudantes do Ultramar fugiram de Portugal sobretudo por causa da mobilização militar. Eu fui chamado para prestar serviço no exercito português e deram-me um prazo de 15 dias para me apresentar no quartel. Nesses quinze dias tive contacto com a organização clandestina que nós tínhamos em Coimbra e fugi (em Junho de 1961) para Paris. Só em Paris é que realmente tivemos contacto directo com Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Lúcio Lara e tomamos conhecimento da existência real do MPLA.

A base desta nossa conversa é o seu livro. Como é que o escreveu? Baseou-se, além das suas memórias, em apontamentos feitos ao longo dos anos em cadernos e também em pesquisa documental?

Baseei-me em tudo o que referiu. Principalmente em memórias mas também nos cadernos de apontamentos que eu tinha e na literatura que já estava publicada. Claro que fiz pesquisa. Sobretudo em livros da Fundação Tchiweka, de Lúcio Lara, que publicou todos os comunicados que eram elaborados pelo Comité Director que davam conhecimento aos militantes dos factos que iam passando. Isto para poder me alinhar sobretudo em relação ao tempo, para não escrever fora do tempo.

Viriato Cruz defendia em 1962, em Léopoldiville, que devia haver um “recuo estratégico” dos mestiços nas estruturas dirigentes do Movimento. O que é que isso queria dizer excatamente? Qual era o contexto da afirmação de Viriato da Cruz?

Essa deriva do pensamento de Viriato Cruz resultou de uma grande pressão que era feita pela UPA de Holden Roberto contra a direcção do MPLA, dizendo aos seus militantes e fazendo espalhar que o MPLA se tratava de um movimento de brancos e de mulatos e portanto não tinha nenhum significado para a luta em Angola. Como chegou a haver actos de agressão a uma delegação de médicos do CVAAR que foram à fronteira, em Matadi, fazer um reconhecimento das populações para prestar assistência... essa atitude dos militantes da UPA provocou realmente um desencorajamento muito grande. Segundo me lembro, o primeiro responsável a falar nessa teoria não foi o Viriato mas o Dr. Eduardo Macedo dos Santos, que na altura era membro do Comité Director. Mas depois o Viriato achou que essa deveria ser uma estratégia a adoptar para proteger a própria organização em si.

Além dessa interferência da UPA, no seio da massa militante do MPLA havia também a percepção de que os brancos e os mulatos não deveriam participar na luta de libertação nacional e em particular na guerrilha?

Não, não havia. Houve mais tarde, por parte de alguns membros. Nos períodos de grande crise, como sabe, o que predominava era a fome, a luta pela sobrevivência. Mas em 1962 não houve pressão da parte dos militantes do MPLA. Houve pressão da parte da UPA, do governo congolês, de certas teorias do Frantz Fanon, que era um dos conselheiros da luta dos argelinos, ele que escreveu o livro “Os condenados da terra” e curiosamente era mestiço.

No livro fala da visita de Savimbi, em 1961, ao grupo de estudantes em França  fugidos de Portugal. E refere que já na altura Savimbi “denotava uma clara preocupação em encarnar a personagem política de Patrice Lumumba”. Aquela influência, que ia até à forma de se vestir, foi momentânea ou perdurou no tempo?

Não sei dizer durante quanto tempo durou, mas para mim foi marcante. Nós estávamos na Cimade, que era um centro das igrejas protestantes especialmente dedicado a prestar assistência aos refugiados políticos, sobretudo aos jovens refugiados políticos. Quando lá estávamos fomos surpreendidos pelo pedido para visitar o grupo feito pelo Jonas Savimbi, que alguns de nós conhecíamos de Lisboa e outros de Angola. Mas ele foi especialmente para visitar o Dr. Lihauca, que acho que tinha estudado na mesma missão em que ele tinha estudado. O Savimbi apresentou-se vestido com o seu “abako”, igual ao de Lumumba, tal como os óculos, o que era extremamente raro em França na altura, mesmo por parte de africanos. Tanto é assim que nós dizíamos “olha está aí o irmão do Lumumba”.

 

No livro dedica largos espaços, capítulos inteiros, a traçar o retrato de figuras com as quais se cruzou e conviveu, algumas das quais constam da história da luta anti-colonial. Sãos os casos de Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Gentil Viana, Deolinda Rodrigues, Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral, Sócrates Dáskalos, Comandante Benedito e outros. Foi sua preocupação homenagear dessa forma aquelas personalidades?

Sim. Pretendi sobretudo relembrar personalidades que foram muito importantes na vida do Movimento e da luta de libertação de Angola. São figuras de que nunca se fala nos tempos actuais e que na minha opinião devem merecer evocação de tempos em tempos e até que sejam oficialmente reconhecidas com, por exemplo, a aplicação dos seus nomes em ruas das cidades. Um comandante Benedito, por exemplo, deveria o seu nome em ruas.

Mário Pinto de Andrade é um dos retratados. Refere-se a ele como figura central na organização da rede clandestina no exterior, na frente diplomática e como idealizador do CVAAR. Quais eram os pontos fortes e os fracos da personalidade e da liderança de MPA?

Dos pontos fortes era sobretudo a sua grande cultura. Era um homem que frequentou a  Sorbonne (universidade), trabalhava na Présence Africaine já há alguns anos, ele tinha um avanço de conhecimentos culturais muito acentuado. E sobretudo conhecimento político e diplomático. Era um homem, um cidadão totalmente urbanizado, como ele próprio reconhecia. Mas tudo isso existia ou habitava numa pessoa de estrutura física débil, ele não tinha fisicamente nenhuma condição de se deslocar nas matas onde alguns de nós andamos a trilhar durante anos. Essa era a sua debilidade. Mas do ponto de vista mental era brilhante, não só no MPLA mas em qualquer cenário africano.

Outro dos aspectos fascinantes do seu livro é a forma aberta, desassombrada, sem censura (ou auto-censura) como aborda questões durante muito tempo tabu no seio do MPLA, como por exemplo a questão do racismo, não só na fase inicial em Léopoldville mas também na fase que culminou mais tarde com a Revolta do Leste e depois a Revolta Activa. As contradições raciais no seio do MPLA e na sociedade angolana, na sua opinião, solucionaram-se com a Independência?

Acho que não. Isso é um fenómeno muito generalizado e não podemos esquecer que logo a seguir à guerra pela Independência veio a guerra civil. Uma guerra civil tende a ter um factor racial muito pesado. Foi isso que nos levou e talvez nos leva ainda hoje a ter alguns problemas. A Independência em si claro que não conseguiu resolver essas questões. E sobretudo porque infelizmente a UPA sempre primou a sua filosofia política com base no racismo e no tribalismo. A UPA não foi só racista, foi sobretudo tribalista. Eles não admitiam, por exempo, no seu comando, senão indivíduos de origem kikongo.

Isso tudo, claro, dificultou a criação de uma frente única anti-colonial?

Impediu completamente. A UPA de Holden Roberto, enquanto esteve no Congo e mesmo após o MPLA ter aberto a Frente Leste eles nunca aceitaram fazer uma frente unida, porque achavam que com as alianças que tinham com Mobutu iriam facilmente ganhar a Independência.

Em Junho de 1962 Agostinho Neto, então presidente de honra do MPLA, sai da prisão em Portugal e ainda nesse ano em Léopoldville assume as funções de presidente efectivo do MPLA, substituindo MPA. Essa substituição foi natural, esperada e absolutamente consensual?

Agostinho Neto quando desce de Marrocos, passando pelo Gana e pela Guiné, e chega  a Léopoldville já tinha sido eleito presidente de honra do MPLA. Mário Pinto de Andrade, que como disse anteriormente, era um militante especialmente devotado às actividades diplomáticas, reuniu o Comité Director e disse “olha, vocês sabem que eu como presidente estou de passagem, o verdadeiro presidente é o camarada Agostinho Neto”. No princípio não houve problema nenhum. Não me lembro se na primeira reunião Viriato da Cruz estava ou não. Infelizmente para o MPLA, Agostinho Neto chega justamente naquele período em que o Viriato da Cruz perfilhava a estratégia do recuo dos mestiços e não participava nas reuniões do Comité Director. É a partir daí que justamente se começam a acumular os desentendimentos entre um e outro.

 

Como o senhor mostra no livro, não tardou a haver os embates entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto...

O Viriato da Cruz tinha uma mentalidade marxista e como secretário-geral, em princípio, era o homem mais importante do Movimento, ele achava que ele é que devia dominar a máquina, toda a actividade e sobretudo todo o pensamento político da organização. Agostinho Neto tinha outra concepção, achava que o presidente é que tinha de ser a personalidade mais importante.

 Mas estatutariamente como é que era na altura, quem é que devia ter mais poder?

Pelos estatutos realmente o secretário-geral deveria ter mais poder. Viriato da Cruz dizia que Agostinho Neto chegou a Léopoldville, tomou os cargos, começou logo por organizar, em menos de uma semana, uma conferência de imprensa sem o consultar, quando ele é que devia transmitir a Agostinho Neto qual era a situação real do MPLA. Eu penso que Agostinho Neto não reuniu com Viriato porque este praticamente tinha se afastado. Dizia-se, isto não está no livro, que Viriato tinha uma entrevista com Neto e este deixou-o muito tempo a espera... Começaram aí os desentendimentos. Por outro lado Agostinho Neto vinha com muita “fúria” e muita pressa e convencido que iria convencer o Holden Roberto a fazer uma plataforma qualquer de entendimento, tipo uma frente unida...

 Viriato não concordava com isso, apesar de mais tarde aproximar-se de Holden de Roberto...

Uma das primeiras atitudes políticas do presidente Agostinho Neto em Léopoldiville foi escrever uma carta ao Holden a pedir uma reunião para discutirem formas de entendimento. Mas uma semana depois recebeu a resposta de Holden muito pouco simpática a recusar esse encontro.

Por que teria Holden Roberto recusado?

Porque achava que o MPLA não valia nada e nunca conseguiria implantação no interior de Angola. Um outro pormenor: pouco depois de Agostinho Neto chegar a Léopoldville, chegou também um antigo missionário, o bispo Dodge, que tinha sido professor de Agostinho Neto. Dodge chegou, acho que secretamente, a Léopoldville, para cumprimentar e falar com Agostinho Neto e  convidar-lhe para fazer uma tournée nos Estados Unidos. Infelizmente o Viriato da Cruz fez espalhar a notícia desse convite, que devia permanecer secreto, para provocar na embaixada da União Soviética uma reacção evidentemente desfavorável. Ele espalhou que a ida de Agostinho Neto aos Estados Unidos seria uma traição, de tal modo que Neto se viu obrigado a cancelar essa viagem. No meu conhecimento esses são os principais factores que afastam Agostinho Neto de Viriato da Cruz. Mas também houve aí conflito de personalidades, ambos eram homens de poder e não gostavam de partilhar o poder.

A História não é feita de “se”, de situações hipotéticas, mas se, vamos lá fazer esse exercício, Agostinho Neto em 1963 tivesse ido em digressão pelos Estados Unidos, eventualmente o MPLA se teria afastado do universo socialista, teria sido uma força mais vinculada aos interesses ocidentais, nomeadamente norte-americanos?

É como você diz, a História não se faz de “se”. Mas, dada a experiência anterior que nós tivemos, por exemplo a fuga dos estudantes ultramarinos, que afinal, no fundo, foi organizada pelas igrejas protestantes, como está no meu livro isso veio a saber-se cinquenta anos mais tarde, é bem possível que o MPLA, pelo menos, tivesse sido visto pela parte americana de uma outra maneira, porque a UPA conseguiu criar na opinião pública americana a percepção de que o MPLA era um movimento de comunistas. E colou-nos esse rótulo, de que o MPLA dificilmente conseguiu libertar-se. Isso também porque a potência que efectivamente apoiava os movimentos de libertação aqui em África era a União Soviética. E ainda porque os estatutos que foram criados pelo Viriato da Cruz eram certamente inspirados pelos princípios marxistas.

Jovens intelectuais actualmente perguntam: Agostinho Neto, durante o período da luta de libertação, era mesmo comunista?

O presidente Agostinho Neto era pessoa de poucas falas. Eu nunca lhe ouvi a fazer afirmações nesse sentido. Ele era um revolucionário de ideias de inspiração marxista, daí a ser comunista acho que não. Agora, a revolução que houve aqui em Angola, com a luta pela independência e depois com a participação de Cuba e de cooperantes soviéticos, alemães (da ex-RDA), etc., etc., é que veio dar ao MPLA esse cunho de partido comunista. Mas eu acho que o MPLA nunca foi um partido comunista, nem sequer um partido de comunistas.

Retive da leitura do seu livro que em 1968 chegou a contactar Amílcar Cabral para ingressar nas fileiras do PAIGC.  Quais foram os motivos que o levaram àquela tentativa?

O primeiro motivo foi que eu conhecia pessoalmente Amílcar Cabral, éramos não digo amigos mas conhecidos. Segundo é que nessa altura o PAIGC tinha organizado na Guiné Conakry um hospital e tinha ido para lá um médico angolano que se tinha refugiado no Congo e tinha sido meu colega em Coimbra. Tive conhecimento disso em Argel e como na altura não tinha funções nenhumas ao nível do MPLA achava que poderia ir dar a minha ajuda ao serviço de assistência do PAIGC enquanto médico. Não seria como militante do PAIGC mas como angolano a participar e a ajudar os serviços de assistência médica do PAIGC. Encontrei-me com Cabral em Argel, pus-lhe a hipótese, ele admitiu imediatamente que sim mas achava que eu deveria ter, na qualidade de angolano, a autorização do presidente Agostinho Neto. Fiz um pedido escrito de autorização mas Agostinho Neto recusou, disse que tinha funções para me atribuir, como realmente o fez cerca de um ano e meio depois, enviando-me para a Frente Leste.

A perseguição que sofreu por ter participado  na Revolta Activa e que culminou com a sua prisão logo depois da independência, em Março de 1976, deixou-o amargurado? Ainda tem mágoas por tudo o que passou e sofreu?

Já passaram quase cinquenta anos, todos nós, angolanos, estamos em fase activa de reconciliação e, portanto, não guardo mágoa. Já participei em várias actividades do MPLA, de que sou portador de um cartão de militante, fui contemplado com a medalha dos cinquenta anos do MPLA e como nunca tive funções exclusivamente políticas nem ambições políticas, desde Kinshasa, estou absolutamente satisfeito.

Passou à reforma com a patente de coronel, quando todos os nacionalistas do seu tempo são generais. O que é que se passou?

[Risos] Passei à reforma como major e acho que por interferência superior fui designado coronel. O que se passou é que eu pertenci à direcção da Revolta Activa, penso eu.

Quando esteve preso não foi submetido a nenhum processo, não foi condenado...

Sim, é verdade.

 

Porque é que esteve preso, afinal?

Não tive processo nem julgamento, é certo. A acusação era de traição à pátria [Risos]. Fui preso a 12 ou 15 de Março de 1976, estava eu na Lunda como único médico e director dos serviços de saúde da Diamang, quando fui abordado por um camarada (na altura todos éramos camaradas) que levava uma ordem de prisão assinada plo director máximo da Segurança, que na altura era o Ludy Kissassunda, com a acusação de que estava a conspirar contra a segurança do Estado. Fiquei dois anos, sete meses e mais uns dias na cadeia.

 

Como é que passou o 27 de Maio de 1997, na cadeia?

Foi dramático, assustador. Fomos acordados pela primeira bazucada que foi disparada contra a cadeia do S. Paulo. A bazuca foi atirada justamente para o ângulo onde se encontrava a camarata da Revolta Activa. Não sei se foi por acaso ou intencional. Eram 6 horas e 25 minutos da manhã. A cela era colectiva mas não muito grande. Lá estávamos seis ou sete, os considerados dirigentes da Revolta Activa.

Quem eram os outros que estavam consigo na cela?

Estavam o Gentil Viana, o Mário Paiva, os três irmãos Pinto de Andrade (o Justino, o Vicente e o mais novo, já falecido), um jovem, o Lukamba, que agora está na Inglaterra, o Jota Carmelino...

Na altura correram o especial risco de serem fuzilados?

Houve dois incidentes que apontavam para esse desfecho. Um quando alguém andava à nossa procura e depois de nos identificar disse “ai é, logo à noite vocês vão parar o motor no Campo da Revolução”. E foi-se embora. Passada cerca de meia hora o Sabata, penso que você já ouviu falar dele, com uma AK foi a procura dos membros da Revolta Activa e começou a alinhá-los para iniciar o fuzilamento, aí mesmo na cadeia. Felizmente para nós a comissária Virinhas, que fez parte do assalto (alguns dizem que foi ela que comandou o assalto à cadeia do S.Paulo, que durou horas) vinha a atravessar o pátio e veio a correr, chega ao pé do Sabata e dá um grito: “Óh Sabata, quem é que te deu ordem de fazer isso?”. Ela, mesmo grávida, tinha para aí uns cinco meses de gravidez, deu um golpe ao Sabata e tira-lhe a arma. “Comissário aqui é que manda, quem te deu ordem?”, ela foi ralhando com o Sabata, que, envergonhado por ser desarmado por uma mulher, saiu pelo portão grande e nunca mais o vimos. Foi assim que a Virinhas nos salvou.

 A comissária Virinhas viria também a desaparecer para sempre...

O que constou é que deixaram-lhe dar à luz o filho e depois foi executada. Ela está enterrada no cemitério de Benguela.

 Olhando para trás arrepende-se de alguma coisa? Faria as mesmas opções?

Arrependimento da minha actividade como nacionalista não. Fui lutar pela independência de Angola, não pela independência do MPLA. Fui para o MPLA porque tinha de participar numa organização. É dessa maneira que equaciono todo esse percurso que eu tive na luta de libertação.  O meu partido é o MPLA e vou morrer no MPLA.

Sente que a sua biografia foi ou está a ser devidamente valorizada ao longo desses anos todos, não só no seio do MPLA, mas do país?

É dificil de responder a essa pergunta. O MPLA tem uma longevidade tão grande, teve uma participação tão volumosa na libertação deste país que é dificil poder seguir a vida de todos os seus militantes. Eu escrevi o livro sobretudo para lembrar alguns acontecimentos e algumas personalidades que não devem ser esquecidas e também porque muita gente insiste que os mais-velhos têm que escrever. E sou de opinião que sim, que devem escrever aquilo que podem e que sabem para contribuir para o processo histórico deste país. O mais importante para nós, os da minha geração, é escrever sobre a nossa participação no processo da independência e da libertação do país. Depois disto há outras gerações que devem escrever sobre o que fizeram para este país poder ter paz e progresso.

O livro termina com a lembrança da sua prisão, de onde saiu há quase 45 anos. O que viveu de lá para cá não merece um segundo volume?

Esse livro é de memórias mas não é uma auto-biografia. É um livro de memória em que eu reflicto sobre o que aconteceu num tempo que eu achei essencial, fundamental, que nunca mais se vai repetir em Angola, pois nunca mais ninguém vai lutar pela independência de Angola.

 

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Biografia breve

Manuel Videira nasceu em Porto Amboim, em 1935. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1961, tendo sido dirigente eleito da Associação Académica, sócio da Casa dos Estudantes do Império e um dos organizadores da fuga de estudantes para França em 1961.

Em Paris, filia-se no MPLA, tendo organizado nova fuga clandestina no mesmo ano, desta vez para o Gana, de onde partiu para Léopoldville (actual Kinshasa). Foi um dos fundadores do CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados), organismo que serviu de ponta-de-lança à penetração política do MPLA no Congo.

Combateu na guerrilha do MPLA e, mais tarde, fez parte da Revolta Activa. Com a Independência, regressou a Angola, tendo sido preso durante 2 anos, 6 meses e 14 dias. De volta à vida civil, foi médico (cirurgião e urologista) e director-geral do Hospital Universitário Américo Boavida.

Está reformado com a patente de Coronel.

*Entrevista publicada na edição do dia 20/04/2022 do Jornal de Angola

“Angola: Um Intelectual na Rebelião”

 Isaquiel Cori




“Angola – Um Intelectual na Rebelião” - (420 páginas) -, livro de memórias do médico angolano Manuel Videira, publicado no ano passado em Portugal pela editora Guerra & Paz (disponível em Angola pela mão do autor), surge numa altura em que muitos já pensavam que tudo estava contado a respeito do processo de luta de libertação nacional. Este livro não trazendo, em termos do quadro geral, nada de que não se soubesse já, revela-se riquíssimo em detalhes na descrição do carácter de personalidades que se cruzaram e conviveram com o autor e que se destacaram naquele processo. Figuras como Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Deolinda Rodrigues, Comandante Benedito, Manuel dos Santos Lima, Gentil Viana, Eduardo Macedo dos Santos e várias outras aparecem retratadas no livro na força e nas fragilidades da sua humanidade. Referindo-se, por exemplo, ao primeiro encontro com Viriato da Cruz, em 1961, em Paris, escreve o autor que já então notara nele um “grande carisma que seduzia e subjugava”.

Manuel Videira sem qualquer tipo de auto-censura vai ao âmago das sucessivas crises vividas pelo MPLA e disseca as suas causas. A saber, as contradições raciais e tribais (transportadas da própria sociedade colonial angolana), de visão estratégica e o puro choque de personalidades vocacionadas pelo poder sem contestação.

A chegada de Agostinho Neto a Léopoldville em 1962, depois da fuga da cadeia em Portugal em Junho desse mesmo ano (com o apoio da rede clandestina do PCP)  e as medidas imediatas que tomou para relançar a acção do Movimento, então mergulhado numa relativa apatia e desavenças intestinas que culminariam, em Julho de 1963, com a expulsão de José Bernardo Domingos, Viriato da Cruz, Matias Miguéis e José Miguel, é narrada ao pormenor. A difícil situação do MPLA fica muitíssimo mais complicada quando uma comissão da OUA, naquele mesmo ano, reconhece as forças combatentes da FNLA como sendo “de longe, maiores do que qualquer outra”, sendo as “mais eficazes” e constituírem “de facto a única verdadeira frente de combate em Angola”. Naquela altura o MPLA tinha como um dos seus principais activos o CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados, idealizado por Mário Pinto de Andrade) cujo contingente de médicos angolanos chegou a ser em maior número que o total de médicos congoleses em todo o território do Congo-Léopoldville.

Através do percurso de vida do autor, das peripécias por que passou, e pelo facto de ter estado no centro de muitos acontecimentos decisivos, o leitor é transportado, na primeira pessoa, como se estivesse a viajar em primeira classe, através de uma escrita límpida, directa, sem grandes circunlóquios, para a História da Luta de Libertação Nacional. Uma história feita de heróis, sem dúvida, mas de carne e osso, por isso falíveis. Tão falíveis que, por exemplo, o próprio Manuel Videira viu-se, quatro meses depois da Independência, atirado para a prisão onde ficou dois anos e sete meses sem processo judicial e muito menos julgamento. O riso com que hoje o médico e nacionalista responde à pergunta sobre as verdadeiras causas da sua prisão diz tudo sobre o absurdo da situação.

Manuel Videira com este livro responde, no que lhe cabe, à demanda social aos integrantes da sua geração para que escrevam e transmitam às gerações posteriores  o legado da sua vida em prol da criação da nacionalidade angolana. Por isso, é um Manuel Videira aliviado, com sentimento do dever cumprido, que disse ao Jornal de Angola: “Eu escrevi o livro (...) porque muita gente insiste que os mais-velhos têm que escrever”.

Efectivamente, é cada vez mais imperioso escrever, meter no papel as memórias, os sonhos, as aspirações. No fim de tudo, no somatório do que vai permanecer ou ser esquecido na posteridade, o que estiver escrito será fadado a ser considerado “verdade”. E através desses escritos se vão perpetuar visões, percepções, narrativas de grupos que histórica e culturalmente serão considerados hegemónicos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

ESCRITOR LUÍS FERNANDO “O cronista é um narrador apressado e animado da História”

Acaba de alcançar um feito porventura inédito: num único acto publicou dez livros. São sete de crónicas, um de contos, um romance (reeditado) e um de ensaios. Mas já tinha uma bibliografia composta por títulos como “A Saúde do Morto”, “Clandestinos no Paraíso”, “Silêncio na Aldeia”, “Notícias do Palácio - O primeiro ano do mandato do Presidente João Lourenço”, e outros. Já era sabido, mas o multilançamento recente confirmou a predilecção do escritor Luís Fernando pela crónica, género de que fala com a paixão e o conhecimento de quem o cultiva há mais de trinta anos. Na entrevista que se segue, iniciada pelo Whatsaap e finalizada por email, Luís Fernando exprime-se sobre a sua escrita e  o desempenho profissional dos jornalistas. E faz uma revelação: “Neste momento, para mim, a criação literária está suspensa (...) pela razão mais do que previsível: não resta muito tempo disponível”

 

Isaquiel Cori

 

É incomum, em qualquer parte do mundo, um autor proceder ao lançamento simultâneo de dez livros. Por que procedeu assim? Não pensou na possibilidade de confundir os leitores, diante de uma oferta tão vasta? 

Observação interessante, de facto! Não sei mesmo se existirá registo de um acontecimento deste noutra latitude da geografia mas deixe-me dizer-lhe que foi uma situação meramente circunstancial. Eu fui produzindo ao longo de anos (doze ao todo, entre 2004 e 2016) textos diversos para livros e que foram chegando à mesa de trabalho do meu editor, Arlindo Isabel. Diversos factores, de entre eles o financeiro, fizeram com que a editora Mayamba não pudesse ir terminando os livros à medida que ia recebendo os originais e tudo se foi acumulando… 



Desta vez, e aproveitando a data expressiva do meu aniversário (60 anos), a editora achou que ficaria bem um esforço especial para se colocar no mercado tudo o que tínhamos de textos engavetados e lançámo-nos à procura de patrocínios. Entidades com alguma folga financeira aceitaram o desafio e usando a sua quota do que se conhece como “responsabilidade social” das empresas, financiaram a produção dos dez livros e, desse modo, foi possível ter, num único acto, a apresentação das dez obras. Foi um record pouco habitual… 

Se os leitores não se confundirão com tão grande oferta em simultâneo? Acredito que não, porque embora tendo sido muitos livros, não foi assim uma diversidade de géneros tão grande. Por exemplo, sete dos dez livros são crónicas. Depois, há a minha estreia no conto, um romance reeditado e, por último, textos de apresentação de livros que resolvi compilar, algo como rápidos ensaios de Literatura.   

 

As suas crónicas são trabalhadas com o sentido de oportunidade, o olhar e a sensibilidade do jornalista, mas o texto resultante é claramente literário, é literatura. É por isso que tem a preocupação de tão logo resgatar as suas crónicas do arquivo dos jornais para o livro? 

Exactamente! As minhas crónicas escrevi-as originalmente para páginas de jornais mas mal ganhavam a forma de mancha impressa, texto impresso, qualquer leitor percebia sem esforço que o que tinha em mãos era Literatura. Por isso, recusei-me sempre a ver as minhas crónicas a morrerem vítimas da doença efémera associada às notícias dos jornais, achava isso uma injustiça e um desprezo ao valor da obra literária. Atenção: não pretendo com isto dizer que se danem os jornais e as suas colunas, os seus escritos, e que viva para sempre a Literatura! Nada disso! Mas a rapidez com que resgato as crónicas que publico em primeira mão em jornais para passarem a livro tem realmente a ver com essa observação que faz com grande acerto: se as crónicas são nitidamente textos literários, então que passem a livro, que é lá o habitat da Literatura! 

 

Enquanto cronista quem são os mestres que o inspiraram ou que ainda o inspiram?  

Fiz-me cronista sem dúvidas depois de descobrir essa vertente criativa no colombiano Gabriel García Márquez em Cuba, na década de 80, no jornal “Juventud Rebelde”, onde partilhava uma coluna ao domingo com outro grande escritor, cubano este último, Enrique Nuñez Rodríguez. Aprendi com ambos a perceber que qualquer tema, facto ou episódio banal do quotidiano pode ser transformado em tesouro de leitura, numa relíquia literária, pois o valor da peça não era tanto ou somente o relato em si mas o modo como tudo era descrito. Indiscutivelmente para mim a crónica tem a sua chave, o seu segredo, o seu lado delicioso, no modo como a palavra é burilada, como a descrição é feita. Tem de existir fascínio no modo como o cronista relata aos outros aquilo que a sua sensibilidade captou e elegeu como motivo bastante para ser narrado.  

Concretizando a resposta: os meus mestres, a minha inspiração mais firme e acabada, chamam-se Gabriel García Márquez (colombiano) e Enrique Nuñez Rodríguez (cubano). 

 

O prazer que deriva da leitura das suas crónicas terá correspondência com o prazer com que as terá escrito? Ou o prazer da leitura esconde muito trabalho e esforço de escrita, algum sofrimento mesmo? 

Acredito que exista um alinhamento perfeito entre o prazer da escrita e o prazer da leitura, da fruição, das crónicas que escrevi e agora estão definitivamente agrupadas em livros. Não se esqueça que só se é cronista se se for apaixonado pelo género e não existe outra maneira de se gostar profundamente da crónica se não for, primeiro, por via da leitura. Ou seja, temos antes de gostar de crónicas lidas algures para nos propormos o desafio de querermos fazer, também, algo que se aproxime, que iguale ou que supere aquilo que nós lemos de outrem. Portanto, é só prazer, é só satisfação plena, no ciclo completo da crónica: feliz ao escrevê-la, feliz em igual proporção ao ler o resultado! 

 

Os factos e as pessoas das suas crónicas são sempre verdadeiros? 

Em 99% das crónicas que escrevi, elas correspondem a factos reais e a pessoas reais, de carne e osso. Pode acontecer que um ou outro detalhe seja apimentado com uma boa dose de ficção mas não é isso que representa a espinha dorsal do texto. O cronista é, em boa verdade, um narrador apressado e animado da história, seja a que faz a mundivivência das comunidades seja a outra, a de interesse global, a História com H maiúscula.  

 

Já lhe aconteceu estar a pensar ou a escrever uma crónica e depois concluir que não, que está diante de matéria para ficção? 

Incontáveis vezes. Há crónicas que percebi desde o primeiro momento que nunca chegariam a sê-lo porque o género tem a característica de ser um relato breve, rápido, e essas, para serem absorvidas, precisariam de maior desenvolvimento, mais espaço, textos mais volumosos com relatos mais detalhados. O meu romance “A Cidade e as Duas Órfãs Malditas” nasceu de uma tentativa inicial de se escrever uma crónica para relatar a saga de duas irmãs que passavam doenças venéreas à rica burguesia da Luanda do século XIX. Entendi que seria puro desperdício esgotar num texto com umas poucas linhas uma história rocambolesca que valia a pena mostrar de forma híbrida: metade factos reais e metade ficção ao sabor da criatividade do escritor.    

 

Quando é que o ficcionista entra em cena? Quando é que sente que é hora do romance acontecer? 

Simples: quando os limites da crónica “alertam” o escritor que não vai conseguir partilhar com os seus leitores a sua experiência. Porque a Literatura não é outra coisa senão o desejo quase irreprimível de contar às pessoas aquilo que sabemos e achamos digno de ser distribuído por todos. Um escritor é, no fundo, um filantropo: dá parte do que tem aos demais! 

Um tema que precise de mais do que uma ou duas crónicas para ser “oferecido” aos leitores é o primeiro sinal de que se pode estar diante de matéria-prima que pode servir para algo maior, mais espaçoso, mais volumoso: um livro!  Não custa muito ao escritor “cheirar” isso, descobrir o ponto em que deve abandonar a ideia da crónica e lançar-se no desafio de escrever um romance, uma novela, um ensaio ou qualquer outro género.   

 

Falemos um pouco de jornalismo. Como vê o desempenho dos seus antigos colegas de profissão? De quando em vez sente saudade de exercer a profissão? 

Sabemos todos que existem profissões viciantes e o Jornalismo é uma delas…no bom sentido, diga-se! É claro que nunca se deixa de ser jornalista, por mais que deixemos de frequentar o mundo fascinante de uma Redacção. Vivemos o Jornalismo de mil maneiras, uma delas é -estando fora do activo -, transformar-se numa espécie de revisor caçando as gralhas dos jornais, ou de leitor-crítico, que não espera apenas encontrar a notícia e a reportagem nas páginas dos diários ou semanários, mas se pergunta se aquela notícia está bem elaborada e se aquela reportagem, se fosse eu a fazê-la, teria tido aquele ângulo de abordagem.  

Mesmo longe do lufa-lufa da Redacção, o nosso vínculo com essa oficina da escrita urgente não se quebra totalmente. Deixamos de estar fisicamente na Redacção, é verdade, mas o nosso espírito viaja para lá e, vez por outra, “vemo-nos” sentados de colete e computador a fazer o que fizemos ao longo de uma vida. Continuo a acompanhar os meus colegas, sobretudo os que fazem rádio e os que publicam em jornais, que são os dois mundos principais daquele que é o meu percurso de mais de 40 anos como jornalista.  

Como os vejo? Do mesmo modo como nos meus tempos de jornalismo activo: os dedicados, os que se esforçam e não olham para a profissão como um mero emprego que dá salário ao cabo de 30 dias a rabiscar o livro do ponto, têm futuro, hão-de singrar na sua caminhada, o futuro falará deles e por eles. Os outros, os que estão na profissão errada e não vivem o Jornalismo do único modo que a profissão permite que se viva – com paixão, com intensidade, com entrega absoluta – hão-de acabar como é esperado que acabem: ignorados, esquecidos, sem glória. Simplesmente desaparecerão do espaço público, por mais que se arrastem nas Redacções por dezenas de anos! 

 

Não acha estranho que o jornalismo angolano actualmente forneça tão poucas individualidades para a literatura? Na sua opinião a que se deverá isso? 

A explicação é simples: reduziu enormemente o rebanho – se me permitirem o termo simpático – dos que viviam as Redacções e a profissão como um sacerdócio. O romantismo dos que consideravam o Jornalismo, como Gabriel García Márquez, a “profissão mais linda do mundo”, anda à míngua, perdeu-se no emaranhado de problemas existenciais do nosso tempo e as Redacções foram invadidas por pessoas em busca de remuneração para as despesas do lar, as contas da família. Não é destes grupos de “operários” do Jornalismo que nascerão os novos David Mestre, Ernesto Lara Filho, Alfredo Bobela Motta, Ernest Hemingway, Machado de Assis, José Saramago, Gabriel García Márquez ou Monteiro Lobato, que tinham as Redacções como espaços oficinais e de cultura, onde o debate era elevado e a tempo inteiro. Nas Redacções, hoje, olha-se para o relógio com pressa de se ir para casa e, no dia seguinte, com o jornal a circular, muitos dos nossos colegas nem sequer se dão ao trabalho de ler o que eles mesmo escreveram, para comparar o que mudou entre a versão entregue ao editor e as alterações que este introduziu eventualmente… 

 

O facto de estar tão próximo do poder político, onde por norma vigora o politicamente correcto, de alguma forma condiciona a sua liberdade de imaginação e de criação literária? 

Neste momento, para mim, a criação literária está suspensa, não por qualquer condicionalismo derivado do que chama de “politicamente correcto em vigor” mas pela razão mais do que previsível: não resta muito tempo disponível. Dirão alguns: mas escreveste o livro Notícias do Palácio? Pois foi precisamente a experiência dura de fixar em livro a experiência governativa de um ano frenético, de muita actividade diária, profundo envolvimento em diplomacia, que me lançou o conselho amigo: poupa a pouca energia que te sobra para a atenção à família e volta a escrever um dia, sem as ocupações profissionais de agora. Acatei o conselho! 

 

Os seus livros “Angola: Memórias da Transição Política - De José Eduardo dos Santos a João Lourenço” e “Notícias do Palácio – O primeiro ano de mandato de João Lourenço” fundam uma narrativa sobre o poder que certamente irá influenciar a visão histórica. Esse projecto terá continuidade enquanto estiver a trabalhar no Palácio? 

Fui motivado, nas duas experiências, pelo exasperante vazio que reconheci existir no relato da nossa vida governativa, do nosso ambiente político. Assustei-me enquanto cidadão não conseguir, por exemplo, encontrar em livro ou outro suporte qualquer, a narrativa de um 15 de Março de 1961 na perspectiva dos protagonistas da acção, um facto histórico de enormíssima repercussão sobre a vida de todo o Norte de Angola, que levou a ter uma estrada asfaltada com mais de 300 km a permanecer fechada por décadas (Luanda-Uíge, via Úkua-Piri…). Tudo o que se pode encontrar é o relato feito por portugueses, a mostrar uma visão unilateral daqueles factos dramáticos… 

É claramente um caminho a prosseguir, o sermos nós próprios enquanto protagonistas ou testemunhas da História fazer o seu relato. Sonho com livros que muitos dizem andar a escrever sobre heróis nossos, grandes figuras das nossas guerras, batalhas, acções épicas… 

O certo é que há muito pouca literatura com esse perfil – relato histórico – a chegar às livrarias, às bibliotecas, e muitos dos que têm coisas a dizer, vemo-los partir uns detrás de outros sem que o legado escrito fique. Com muita pena e muita dor, confesso.  

Eu quero fazer a minha parte, contribuir humildemente com o meu olhar à volta. Neste momento, como já o referi antes, sobra pouco ou nenhum tempo para escrever, pelo que não há, para já, como contar com novo livro meu, naquela linha ou noutra qualquer. Mas dispondo de tempo, um dia no futuro, é evidente que surgirá a sequela de Notícias do Palácio. Até já tem título. Vai chamar-se “Servir”.   

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Perguntas de algibeira 

 

Qual foi o último livro que leu? E o que está a ler? 

“Sua Excelência de corpo presente”, de Pepetela. Estou neste momento a ler, na versão original em espanhol, “La Parábola de Pablo”, um ensaio interessantíssimo sobre o narcotraficante Pablo Escobar.  

 

Que livros e autores recomenda para este final de ano? 

“Tio Jorge e outros quês”, contos de Manuel Rui; “Contos de Natal”, de um grupo de autores como Cremilda de Lima, Eduardo Águaboa e Onélio Santiago.  

 

E que discos e cantores? 

 “The Soul Music of Angola”, de Afrikhanita e qualquer disco de Paulo Flores, o cronista da voz 

 

Qual foi a última exposição de arte que visitou? 

Guilherme Guizef, uma combinação de pintura e escultura, no Museu da Cerveja, em Lisboa. 

 

E a última peça de teatro que assistiu? 

“Clandestinos no Paraíso”, pelo grupo Twana Teatro. 

 

Tomessa é um sonho,  uma ideia, um mito, uma história de infância? 

Tudo isso. E mais: o alfa e ómega de Luís Fernando, o princípio e o fim do ser que eu sou!  

 

Quando pensa em Cuba hoje, o que lhe vem à memória? 

A vibrante cidade cultural que é Havana, mesmo faltando o pão e o arroz… 

 

Qual é o lugar em Luanda onde mais gosta ou gostaria de estar? 

Na Ilha do Cabo, virado para o mar infinito. Porque inspira e faz os genes da Literatura “andarem às turras” nos labirínticos caminhos do cérebro. 

 

E fora de Luanda? 

Uíge, em tarde de chuva. 

 

E no estrangeiro? 

Times Square, provavelmente o centro do mundo. Cidade de Nova Iorque, onde João Kyomba se perdeu definitivamente, na sua versão feiticeiro boémio…  

 

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Perfil breve

 

Luís Fernando nasceu na aldeia de Tomessa, província do Uíge, em 1961. Jornalista desde os 17 anos, trabalhou por mais de década e meia na RNA, onde foi sucessivamente sub-chefe de Redacção, re-writer, correspondente em Havana e director de Informação. Durante 12 anos foi director-geral do Jornal de Angola. Dirigiu o semanário O País (hoje diário) por cinco anos, desde a sua fundação em 2008. Foi administrador executivo do grupo Media Nova.

Em 2011 foi vencedor do Prémio Maboque de Jornalismo.

Membro da União dos Escritores Angolanos, actualmente Luís Fernando é secretário para os Assuntos de Comunicação Institucional e Imprensa do Presidente da República.

JOSÉ LUÍS MENDONÇA “O primeiro deus na Terra foi a Mulher”

 


Tem novo livro no mercado, o poemário “Software Carnal”, com chancela da editora Kalunga. José Luís Mendonça, em nótula autobiográfica constante do livro em referência, apresenta-se assim: “homem de profissão, jornalista por concessão e poeta por distracção”. É detentor de vários prémios literários, nomeadamente Prémio Sagrada Esperança (Chuva Novembrina”, 1981, e “Quero Acordar a Alva”, 1996);  Prémio Sonangol de Literatura (“Respirar as Mãos na Pedra”, 1990); Prémio dos Jogos Florais do Caxinde (“Se a Água Falasse”, 1997); e Prémio Angola 30 Anos (“Um Voo de Borboleta no Mecanismo Inerte do Tempo”, 2005). Actualmente  consultor na empresa Edições Novembro,  dirigiu e editou, durante sete anos, o jornal Cultura. Licenciado em Direito, José Luís Mendonça é o vencedor do Prémio SADC de Jornalismo 2021. Na entrevista que se segue Mendonça fala do seu novo poemário, do possível impacto das redes sociais e da Internet na evolução humana e na própria poesia. E explica as razões que o fizeram abandonar tanto a União dos Escritores Angolanos como a Academia Angolana de Letras

Isaquiel Cori

“Software Carnal”, o título do seu novo poemário,  suscita logo à partida várias questões sobre a interligação do humano com a inteligência artificial ou a influência da computação nas nossas vidas. E faz lembrar aqueles personagens do cinema, os cyborg, meio humanos meio máquinas. É sua opinião que a humanidade realmente caminha para aí?

Obviamente. Vivemos num contexto global dominado pela hipermídia digital e o seu fruto civilizacional, o Homo Zappiens (nome proposto por Wim Veen e Bem Vrakking, 2009, para aqueles que nasceram a partir do início da década de 1990) – “primeiros seres digitais”. Por força desta realidade, que o próprio Homem criou, toda a nossa evolução, agora, suscita em nós, um processo de automatismo. Como um chip incrustado no olhar. Em “Software Carnal” eu digitalizo os versos, com recurso ao software inamovível e desconhecido da origem da Vida, misteriosamente oculto no corpo humano, mas com maior representação no da Mulher. O corpo da mulher é um hino à misteriosa e infinita expansão do Universo que aqui, neste lugar chamado Terra, se reedita no ventre expansivo em tempo de gravidez, nos olhos húmidos e luminosos da Mulher dotados da ciência maternal de ver e na sede dos dedos a tactear a liquidez das coisas que nos rodeiam.

 

Vozes há que se interrogam sobre o verdadeiro impacto das redes sociais na evolução humana, que passaria a depender sobremaneira de imagens projectadas e de associações determinadas por algoritmos, esvaziando-se cada vez mais a vida de relação e de proximidade física. Você também vê assim as coisas?

Vejo e não vejo. Vejo, porque paulatinamente me vejo submerso nessa onda universal de decomposição electrónica dos afectos. Hoje, a sociedade humana caiu na monetarização do pensamento. Tudo é vendável. Até a própria alma. Porque se perdeu muito do humanismo próprio do Sapiens, (trans)ferido para o Zappiens. O Zappiens é perigoso contra si mesmo.

 

Um amigo jornalista, comentando o caso de vários jornalistas forçados a aposentar-se,  um dia disse que eles estariam mortos se as redes sociais não existissem. Pessoalmente sente que as redes sociais lhe deram um novo fôlego?

Verdade absoluta. Veja que eu ganhei o prémio SADC de jornalismo pelo meu artigo publicado num órgão online. Embora não ganhe nada, em termos salariais.

 

O mundo e a vida tal como se apresentam nas redes sociais têm um viés bastante fragmentado e o conjunto de postagens é comparável a um interminável fluxo de consciência, a mais das vezes surrealista. São as redes sociais verdadeiramente o reino da liberdade humana?

No caso de Angola, onde o ANGOSAT se perdeu e ninguém diz como não foi possível reproduzir outro satélite com o reembolso do dinheiro pago, onde o público maioritário não tem acesso às redes sociais por falta de internet, aqui esse reino da liberdade é acessível a uma pequena franja de pessoas, mas essa pequena franja reproduz o pensamento da maioria e os interesses dos grupos político-religiosos. É uma espécie de selva contemporânea, onde se digladiam verdades, horrores e mentiras sem paralelo…

 

Não teme que algum dia os poetas venham a ser substituídos por programas de computador?

Temo e bastante. O plágio é um indício dessa transformação computacional. Você observa como o livro perdeu o seu valor de artefacto do conhecimento em Angola e quase por todo o lado. Até já se fazem pinturas e comida pelo computador. É o progresso. Só falta criar o ser humano numa máquina, com um cérebro de chip electrónico. A Poesia só pode ser salva pelos verdadeiros poetas, os homens e mulheres hiper-sensíveis, que ainda a cantam e escrevem à mão.

 

“Software Carnal” é mais um tributo seu à mulher. Está visto que para si a mulher é um tema absolutamente inesgotável...

Na verdade, é inesgotável. O primeiro deus na Terra, há mais de 30 mil anos, foi a Mulher. O ser humano espantava-se de ver a mulher parir filhos. Dos seus seios brotava leite para amamentar esses filhos. Nessa época, a Mulher foi endeusada. Foi a Revolução Agrícola, há 15 mil anos, que destronou a Mulher do seu templo de adoração. Com o sedentarismo e a criação de animais, o homem observou que, no reino animal, o macho tem uma função seminal e que os filhos não eram apenas obra de forças misteriosas. Foi quando nasceu o sentimento de paternidade e a apropriação, pelo homem do lugar divino. Por isso é que Deus é macho, é representado como um Pai. E o Filho de Deus nunca podia ser do sexo feminino. Eva sairia de uma costela de Adão. Mas o rei Salomão volta a adorar a deusa chamada Mulher, nos seus cantares. E do mesmo modo, eu assim a represento em “Software Carnal”.

 

A mulher nos seus poemas aparece ora como objecto de desejo, a detentora do “software carnal da origem da vida”, ora como a expressão da beleza ancestral. Há na sua vida uma musa inspiradora, ou os seus versos partem de um olhar para a mulher no geral?

Muitos dos meus versos têm uma fonte carnal, palpável, sangrante. Outros têm uma fonte onírica, é o imaginário apenas. Se eu não fosse um ser vivente e pensante não haveria os poemas do sujeito poético que me nasce a todo o instante. É verdade que certas mulheres, em determinadas fases da minha vida me encheram o coração de maresia, outras me beberam o tutano dos ossos, como se eu fosse um javali leiloado na savana pelo êxtase feminino. Hoje, nem sei mais onde se acumula todo o pó dessas atracções súbitas, umas, diferidas no tempo, outras, inacontecidas, outras ainda, a memória que me assola é de uma monumental geometria, parece Deus se repetindo em Criação.

 

Quais são, na sua opinião, os pontos fortes e os pontos fracos da instituição Literatura Angolana?

A instituição Literária Angolana subsiste submersa em mitologias pré-fabricadas na Casa dos Estudantes do Império, subvertidas pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola e pela revista Mensagem, de pouca duração, e recicladas com a independência e o slogan da arte ao serviço da revolução. Portanto, a Instituição Literária Angolana, cá dentro, tem um templo chamado UEA fundado sobre alicerces político-partidários, e esse electrólito disfuncional, para além de ficcionar lugares cimeiros no campo da literatura angolana, é um elemento de decomposição da criatividade do escritor autóctone. Tal como o jornalismo, a literatura só produz excelência num ambiente de liberdade de expressão e de alta tecnologia do artefacto chamado texto. Perante esta realidade (e já terei o troco dos Guardiões do Templo daqui a pouco), ergueram-se vozes criadoras contrárias ao status quo, que usaram e abusaram desse estatuto, tendo, na sua maioria, produzido outras lavras literárias com reconhecimento exógeno, visto que, aqui no país, há, até hoje, uma certa aversão ao escritor “rebelde”, quando, sem rebelião, não pode haver literatura digna desse nome.

 

Está na reforma, fechou-se um longo ciclo da sua vida profissional. E parece que inaugurou um novo ciclo na sua vida, mais libertário e voltado para as realidades da sociedade civil...

O jornalista, tal como o professor, não vai nunca para a reforma. Se não escrever para os órgãos das Edições Novembro, minha empregadora, hei-de escrever para outros. Mas, na realidade, fabriquei recentemente um novo romance histórico e, para além, do “Software”, um novo livro de poemas.

 

Se debruça sobre que época histórica, o seu novo romance?

Outra vez a Independência, o 27 de Maio e a Covid de hoje com as suas nuances totalitárias. É que está muita coisa por resolver na nossa Independência e está muitíssima coisa por assacar do 27 de Maio, a sua essência, o seu fundamento sociológico e humano, que foi a inauguração do sistema de tortura legalizada pelo seu não reconhecimento oficial. Sobre a Independência, o romance explora o poema “Havemos de Voltar”, de Agostinho Neto, para mostrar até que ponto existe uma extrema dissonância entre os conceitos e imagens ali expressos e ao que realmente não houve até hoje o Povo de voltar. De igual modo, o problema já aflorado em “O Reino das Casuarinas” e em “Se os Ministros Morassem no Musseque” (um e não o mesmo romance) de não haver Independência nem desenvolvimento sem a verdadeira integração e inclusão económica e política de todas as ex-nações que o colonialismo ficcionou num só mapa sob o império da língua portuguesa.

 

O JLM nos últimos anos tomou decisões fundamentais na sua vida, que não sei se já terá tido a ocasião de explicar publicamente. Refiro-me ao facto de ter abandonado a condição de membro da União dos Escritores Angolanos e de se ter afastado da Academia Angolana de Letras. A que se deve esse recuo?

Não foi um recuo. Foi uma conquista para a minha liberdade de pensamento e de criação. A UEA, tal como as outras agremiações criadas na era inicial da Independência, continuam a ser apêndices do partido no poder e, até, estrictamente vigiadas pelos Serviços de Inteligência. Para provar o que digo, é só ver que a UNAP (União Nacional dos Artistas Plásticos) tem, à frente da Assembleia Geral, um escritor, membro da UEA. Para salvaguardar o quê?

 

Deve-se então inferir que, supostamente, os membros da UEA têm ligações aos Serviços de Inteligência, ao ponto de alguns deles serem “destacados” para vigiarem outras classes de artistas?

A questão não é assim tão directa! Não se trata de uma delegação dos Serviços de Inteligência dentro da UEA ou das outras associações como a UNAP, que já citei. Trata-se, isso sim, de um controlo partidário, coadjuvado pela Inteligência. O caso do meu irmão Zacarias Musango é paradigmático. Em 2018, a UEA fez de tudo para que a minha pretensão – de fazer justiça a um inocente – não fosse avante, para salvaguardar a Polícia. Para que se fazem coisas deste género? É preciso chegarmos a este ponto, porquê? Até ficaria bem para a corporação desligar-se desse crime, condenando os seus verdadeiros autores! Veja que, quando eu pedi assinaturas dos membros da UEA para realizarmos a assembleia extraordinária para redigirmos a moção de repúdio, tive o apoio de 13 confrades, incluindo Pepetela e Maria Eugénia Neto. Mesmo assim, faltaram 2 assinaturas, para as 15 necessárias e não fizemos a assembleia extraordinária. Nessa ocasião, o ex-secratário-geral convocou a TPA para uma conferência de imprensa na UEA, onde pôs a falar a pobre da viúva – vejam lá! – ladeada por um familiar desta, das FAA e fardado – mas que aberração! – e este oficial das FAA é que falou o seguinte: “Nós, familiares do falecido, não queremos que usem o nosso irmão para resolverem os vossos conflitos na UEA” (mais ou menos isso). Eu e o irmão do falecido, que também é guarda e nunca foi entrevistado, ainda tentamos pedir à TPA para usar o contraditório, mas a TPA não aceitou. Este foi também outro motivo que me levou a sair da UEA. As pessoas que me conhecem sabem que eu não sou desse género, de convocar uma assembleia extraordinária para tomar o poder seja lá onde for, não tenho esse feitio, nem sequer me vejo a dirigir a UEA, não me interessa, o assunto resvalou, por criação conjunta da UEA-TPA, de um assunto de crime de homicídio preterintencional, para um assunto de luta pelo poder na UEA. Mas que imbecilidade! Com todo esse imbróglio, é fácil de ver como há interesses do Estado (que também desconheço!) inseridos na gestão de uma associação meramente literária. Valha-nos Deus, Virgem Santíssima! Mas para quê mantermos este estado de coisas, 40 anos depois da independência, quando o Muro de Berlim há muito foi derrubado! É preciso ter tomates para libertar a Arte!

 

Voltando à questão do abandono da UEA...

Eu abandonei a UEA, e não entro no seu quintal sequer, porque um meu irmão, Zacarias Musangu, guarda daquela associação foi torturado até à morte numa esquadra da Polícia no Cassequel. Foi acusado pelo chefe da polícia de ter  roubado a placa de uma viatura estacionada na UEA. Durante o dia. E foi raptado pelo chefe da esquadra do Cassequel, porque se a autoridade leva detido um cidadão, sem mnandado de captura, está a violar a Constituição e Lei Penal. Está a violar um direito fundamental do cidadão. É rapto. E o meu irmão ficou lá detido três dias e não apareceu nenhum procurador da PGR, nem advogado. Estes só apareceram um mês depois da morte da Zacarias Musangu, porque eu, que estive fora na altura da detenção e morte do meu irmão, no meu regresso fiz um certo “barulho”, na minha coluna do Jornal de Angola. Só assim é que entraram em cena uma procuradora e o advogado da UEA. Para fazer nada. Simplesmente para consolidar a “pureza” da autoridade policial. Mas nunca se provou que Zacarias foi realmente culpado. Neste caso, como Zacarias esteve sob custódia do Estado, o Estado, através da PGR ou do Ministério do Interior, tem a obrigação de indemnizar a viúva e os quatro filhos do meu irmão Musangu. Só depois dessa indemnização é que talvez eu entre na UEA. A indeminização deve atingir a soma de 80 milhões de kwanzas. O Estado deve pagar 80 milhões de kwanzas, 40 milhões pelo nojo da viúva, para ela acabar a casa que o marido não concluiu e uma espécie de compensação pela perda irreparável da vida do seu marido. Dez milhões para cada filho órfão, para continuarem os estudos e se formarem. Quando eu regressei do exterior, em 2018, e sugeri a tal moção dirigida ao Ministério do Interior, de repúdio pela morte sem necessidade de um homem sem culpa provada, a direcção da UEA insurgiu-se contra mim. Eu não ponho os meus pés na UEA, porque, segundo a nossa tradição, o meu irmão virou Kanzumbi, quando por lá passo, vejo-o a chorar lágrimas de sangue no parque de estacionamento onde foi detido pela Polícia. Enquanto não se fizer justiça para com a viúva e os filhos (indemnização do Estado), ele lá estará a chorar, já não pela própria morte, mas pela sorte da mulher e dos filhos.

 

E por que saiu da Academia Angolana de Letras?

Saí também da AAL, porque não podia encarar os mesmos membros que também são da UEA, os que se opuseram à minha proposta. Não concebo um escritor que não seja humanista. Um escritor conivente com a morte gratuita de pessoas é tudo, menos escritor. Esta sua pergunta levanta uma das questões mais cruciais da História da nossa Angola: a tortura. A tortura, proibida pela Declaração dos Direitos do Homem, é um assunto que deve ser amplamente e exaustivamente debatido e resolvido pelo MPLA, que é quem manda em Angola.

   

Naturalmente não se pode impor uma suposta maneira ideal de se ser escritor. Mas, na sua visão, hoje, em Angola, como é que os escritores deveriam exercer o seu papel?

O escritor é uma voz crítica. Se recordarmos o papel que o romance de Luandino Vieira, “A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, teve no contexto da luta de libertação, como se pode, hoje, em país independente, ver repetir-se a mesma morte de outro Domingos Xavier (Zacarias Musangu) na cadeia, e ficar indiferente? Não há duas versões da forma de ser-se escritor. Ou se é pela Vida, ou se é um fantoche do sistema, pelo dinheiro.

 

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software carnal

 

a expansão do universo

se convalida em cada átomo

da tua bunda astronómica

 

beijo cada partícula

desse cosmos liquefeito

onde gravitam dois planetas exóticos

em simétrica rotação 

 

mordo essa beleza ancestral

esse registo abobadado

de trezentos milhões de anos de evolução.

 

na tua bunda lateja

o software carnal da origem da vida.

 

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o anjo e o pão

 

vi-te passar de mabela

como se foras um anjo

 

vi-te deixar a estrada

como se foras um anjo

 

vi-te chegar de mansinho

como se foras um anjo

 

e te olhei sem te ver

como se foras um anjo

 

e te beijei de lencinho

como se foras um anjo

 

abriste as portas do templo

como se foras um anjo

 

me rasgaste os vestidos

como se foras um anjo

 

me deitaste na mesa

como se foras um anjo

 

e me comeste ali mesmo

como se eu fora o teu pão