terça-feira, 26 de junho de 2012

MENDES DE CARVALHO / UANHENGA XITU: "SINTO QUE PODIA TER FEITO MAIS"

O veterano político e escritor, Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola, insiste que é um mero contador de estórias




Isaquiel Cori


O veterano escritor e político reformado Mendes de Carvalho “Uanhenga Xitu”, foi distinguido com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola (UMA), no passado dia 25 de Maio. Foi a primeira vez que uma instituição de ensino universitário no país atribuiu tal título. Na Carta Doutoral, assinada pela reitora Teresa José Adelina da Silva Neto, a UMA refere que a homenagem leva em conta “a dedicação de toda uma vida, pela via da sua profissão, enquanto enfermeiro, pela via da sua dedicação às artes, e à cultura em geral, enquanto escritor, e pela via da sua intervenção política comprometida, primeiro como opositor ao governo colonial português, depois como governante e como deputado, à construção de uma Angola livre e independente e à ilustração e bem estar do seu povo”.
O jornal Cultura aproveitou a oportunidade para colher algumas palavras do escritor, que, apesar da força da idade (quase 88 anos) ainda conserva a lucidez do discurso.

Jornal Cultura - Qual é o seu sentimento, depois de ter recebido o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola?
Mendes de Carvalho/Uanhenga Xitu – Recebi muitos elogios, não sei se merecidos. Diante da minha biografia e dos elogios sinto que podia ter feito muito mais.
JC – Continua a escrever?
MC/UX – Já não escrevo.
JC – Há quanto tempo não escreve?
MC/UX – Há uns anos. Quase perdi a vista e ouço muito pouco. Tentei ditar aos meus sobrinhos, mas a coisa não é a mesma. Acabei mesmo por deixar de escrever.
JC – Não sente a falta do exercício da escrita?  
MC/UX – Leio um pouco os jornais e tenho uma filha que me lê alguns livros. Por exemplo eu nunca tinha lido os meus livros. Quando a minha filha me leu “O Ministro” dei-me conta que é um livro que continua muito actual.
JC – Até que ponto as suas obras são ficção ou realidade?
MC/UX - Nos meus livros a ficção e a realidade se entrelaçam.
JC – A trama da maioria das suas obras se desenvolve no meio rural. O ambiente urbano nunca o cativou?
MC/UX – Nasci e cresci no meio rural. Lá as coisas são mais vivas mas sei que o meu “mato” não é necessariamente o “mato” de hoje. Muita coisa mudou e as pessoas também mudaram de comportamento. Deixo as coisas do meio urbano para os que sabem escrever. Os meus livros não têm literatura, não sou capaz de fazer redacções literárias. Eu penso em kimbundo e traduzo para o português. As minhas memórias da infância e da juventude tenho-as em kimbundo e elas é que serviram de material para os meus livros.
JC – O que é que mais o preocupa quando pensa na literatura angolana?
MC/UX – Alguns jovens já estão a dizer muitas das coisas que eu esperava.
JC – O que é que esperava?  
MC/UX – O retrato da vida do povo, a sua miséria, o seu estar, a realidade actual.
JC – Nunca pensou em passar para o papel a sua trajectória de vida, as suas memórias?
MC/UX – As minhas memórias estão nos livros que publiquei. Considero o livro “O Ministro” uma relíquia.
JC – Considera este livro o mais importante que escreveu?
MC/UX – Um dos mais importantes. Todos eles são meus filhos. O “Mestre Tamoda” tem as suas características próprias. Em “Manana” fui longe demais, mergulhei fundo na tradição, na vida dos mais velhos, no conhecimento do feitiço, do xinguiladores…
JC – Começou a escrever na cadeia, no Tarrafal, em Cabo Verde. Como era possível?  
MC/UX – Escrevíamos nuns papéis de embrulho, que vinham da loja. Era animado por rapazes como o António Jacinto, o António Cardoso e o Luandino Vieira. Quase todos os meus livros foram escritos na cadeia. Lá eu tinha tempo, sonhava. Escrever era um passatempo.
JC – Além do poema “Eu sou pueta de Kimbundu”, que está no livro “O Ministro”, não se lhe conhecem outros poemas. A poesia nunca o cativou?
MC/UX – Não sou poeta. Não tenho jeito para escrever poesia. Mas gosto de boa poesia.
JC – Quais os escritores que mais respeita e admira?
MC/UX – O Luandino Vieira, o Pepetela, os cabo-verdianos Baltasar Lopes, autor do romance “Chiquinho”, e Manuel Lopes, que escreveu “Chuva Braba”.  
JC – Ainda é muito procurado por jovens aspirantes a escritores?
MC/UX – Continuam a procurar-me. Perguntam-me se os meus livros são ficção ou realidade e querem que eu os ensine a escrever. Eu digo que a ficção também é realidade.
JC – Continua a insistir que não é um escritor mas um simples contador de estórias. Isso não é excesso de modéstia?
MC/UX – O que é um escritor? É um homem que escreve livros com preocupações de linguagem. Os camaradas é que me dizem que sou escritor. A forma nunca me preocupou. O importante era escrever. Não me gabo como escritor porque sei que cometi muitos erros. Não é modéstia a mais.
JC – Disse que continua a pensar em kimbundo. Os jovens parecem cada vez mais longe do aprendizado das línguas nacionais…
MC/UX – Não falo tão bem, mas ouço muito bem. Dos nossos pais recebemos o erro, por influência do colonialismo português, de que as nossas línguas eram língua de cão.
JC – Que conselhos dá aos mais novos, aos jovens?
MC/UX – Aconselho-os a estudar, a ler muito, a confiar no trabalho que o Presidente da República está a fazer. Hoje há mais casas, mais estradas, o caminho-de-ferro está a funcionar. Neste últimos anos foi feito muito trabalho. Por isso há esperança de que o futuro será muito melhor.


…………………………..


Agostinho André Mendes de Carvalho, de pseudónimo literário Uanhenga Xitu, (n. 29/08/1924), dentre as várias funções que exerceu foi ministro, embaixador e deputado pela bancada do MPLA. Escreveu os livros: “Meu Discurso” (1974), “Mestre Tamoda” (1974), “Bola com Feitiço”, (1974), “Manana” (1974), “Vozes na Sanzala – Kahitu” (1976), “Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem” (1980), “Os Discursos de Mestre Tamoda” (1984), “O Ministro” (1989) e “Cultos Especiais”, (1997).
A editora Mayamba reeditou este ano os livros “O Ministro”, "Manana" e "Bola com feitiço - Kahitu".


MOÇAMBICANOS FALAM DE AGOSTINHO NETO

DVD reúne depoimentos sobre o primeiro presidente da República de Angola

Isaquiel Cori

O DVD produzido pela Fundação Agostinho Neto, com depoimentos de 13 personalidades moçambicanas sobre Agostinho Neto, o primeiro presidente da República de Angola, é digno de merecer a maior divulgação possível. Lançado em Janeiro  na província do Bié, no quadro dos festejos do Dia da Cultura Nacional, a obra, até aqui, teve escassa repercussão em Angola, ao contrário do que aconteceu em Moçambique, onde foi posta a público no dia 25 de Maio num acto bastante mediatizado que contou com a presença do Presidente Armando Guebuza.
Os depoimentos abarcam um longo lapso de tempo da vida de Neto, desde os tempos de estudante em Portugal, nos anos 1940/50, até 1979, o ano da sua morte. A trajectória de Agostinho Neto é narrada, através das memórias das personalidades moçambicanas, na sua dimensão de estudante consciente da importância da libertação do país do jugo colonial, de líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de homem de cultura e de estadista. A permear todas essas dimensões ressalta sempre uma constante: a do homem simples, humilde e camarada, não obstante a sua enorme estatura intelectual e simbólica. “Era um indivíduo que falava pouco mas pensava muito. E quando falava só dizia as coisas muito acertadas” (Joaquim Chissano). “Ele tinha uma conversa para todos” (Mariano Matsinha).
As relações estreitas entre o MPLA e a FRELIMO, o contexto em que as mesmas se desenrolaram, as amizades – cumplicidades - entre os dirigentes de ambos os países, alicerçadas e edificadas ao longo da luta de libertação nacional, são evocadas pelos depoentes, cada um, naturalmente, à sua maneira.
Segundo Mariano Matsinha, fundador da FRELIMO, “havia troca de informação institucionalizada, organizada e informal sobre o que acontecia em Angola e em Moçambique”.
Joaquim Chissano, ex-presidente de Moçambique, e ao longo de muitos anos ministro dos Negócios Estrangeiros, afirma que conheceu pessoalmente Agostinho Neto em Dar-es-Salam (Tanzânia) em 1965, num encontro de movimentos de libertação das então colónias portuguesas, em que “ele (Neto) tomou posições muito construtivas”.
O escritor Mia Couto, que foi repórter presidencial ao tempo de Samora Machel, e nessa qualidade esteve muito próximo de Agostinho Neto, centra o seu depoimento na vertente cultural, fala da “dimensão mitológica” e exalta as qualidades do poeta. Para ele, a poesia de Agostinho Neto é de “um africano que bebeu a cultura do mundo e que era um homem universal”: na sua poesia não há “uma proposta de um nacionalismo estreito, que nega as contribuições dos outros”. Mia Couto cita particularmente o poema “Depressa”, contido no livro “Sagrada Esperança”, como um exemplo de “poesia pura”, com “uma mensagem intemporal que deve ser ensinada nas escolas, porque ensina os jovens a terem uma atitude”.
Outro depoimento de grande impacto, sem desprimor para os outros, é o de Sérgio Vieira, que foi director do gabinete do presidente Samora Machel. Algumas das suas informações são autênticas revelações, verdadeiras pérolas de memória histórica. Por exemplo, o facto da FRELIMO ter fornecido armas, incluindo morteiros BM-21, ao MPLA, usadas na crucial batalha de Kifangondo, em 1975; a criação, no dia 12 de Novembro de 1975, de um “banco de solidariedade” com as contribuições de um dia de salário dos funcionários moçambicanos, que arrecadou mais de um milhão de dólares que foram entregues ao jovem governo angolano.
Sérgio Vieira dá igualmente a conhecer que pouco antes da independência de Angola, diante da situação de incerteza que se vivia, o MPLA transferiu “todos os haveres” do Banco de Angola para o Banco de Moçambique. Tais “haveres” foram devolvidos ao Banco de Angola logo depois de proclamada a independência. Outra revelação: Agostinho Neto celebrou o seu último aniversário natalício, em 1978, em Moçambique.
Um dos momentos de maior tensão dramática, do conjunto de depoimentos, é aquele em que o mesmo Sérgio Vieira fala dos acontecimentos e das consequências do 27 de Maio de 1977 em Angola. “Houve descarrilamentos, à margem dos órgãos próprios. Esses descarrilamentos, em particular, feriram o presidente Neto. Ele ficou extremamente magoado, porque era um homem de grande sensibilidade e humanismo”.
Malangatana Ngwenya, essa personalidade irradiante da cultura moçambicana, que faleceu pouco depois de ser entrevistado, fala da poesia de Neto e de como ela terá enriquecido a sua visão estética. Outros depoentes são Marcelino dos Santos, Raimundo Pachinuapa, Bonifácio Massamba, Alberto Chipande, Roque Félix, Abdul Bulamusein, Aiuba Cuereneia e Frederico Alberto.
Os depoimentos do DVD “Moçambicanos Falam de Agostinho Neto” foram recolhidos pelos jornalistas Altino Matos e Horácio Pedro, sob coordenação de Amarildo da Conceição. As filmagens foram feitas pela Dread Locks. A Fundação Agostinho Neto, que concebeu, produziu e realizou o projecto, teve o apoio dos bancos BAI e BPC.

Lançamento concorrido
O lançamento do DVD em Maputo aconteceu a 13 de Junho, no Centro Cultural Joaquim Chissano, na presença do chefe de Estado moçambicano, Armando Guebuza, da presidente da Fundação António Agostinho Neto (FAAN), Maria Eugénia Neto, de centenas de personalidades influentes da sociedade daquele país e do corpo diplomático.
O Presidente da República de Moçambique, a quem foi outorgado o título de  membro honorário da FAAN, considerou Agostinho Neto um “intelectual de primeira água”, com alta perspicácia política e uma personalidade humanística contagiante. Sublinhou que a voz de Agostinho Neto não era apenas ouvida, mas sobretudo respeitada internacionalmente.
Armando Guebuza referiu que Neto colocou toda a sua estatura ao serviço do povo angolano e do alcance da independência nacional.  
Maria Eugénia Neto afirmou que o DVD foi produzido para que não se percam as memórias dos camaradas moçambicanos que conviveram com Agostinho Neto, antes e depois da independência, e para que também “não se adultere a verdadeira história de Angola e do MPLA”.
Na mesma cerimónia a FAAN fez a doação de valores monetários, um total de dez mil dólares, a duas escolas primárias, uma da cidade da Beira, província de Sofala, e outra do bairro Kumbeza, no distrito de Marracuene, na província de Maputo.  Maria Eugénia Neto entregou, igualmente, ao Presidente da República de Moçambique, um poema seu, emoldurado, em homenagem ao primeiro presidente daquele país, Samora Machel.
Amarildo da Conceição, alto funcionário da FAAN, disse ao jornal Cultura que ainda este ano vai ser lançado o DVD com depoimentos de personalidades de Cabo Verde que conviveram com Agostinho Neto. Referiu que a Fundação já procedeu à recolha de depoimentos do mesmo cariz em Angola, Argélia, Cuba, Namíbia, Congo Brazzavile, RDC e Tanzânia, que em devido tempo também serão publicados.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Revista Literatas: Uma pedrada no charco


Isaquiel Cori

Com o voluntarismo, a generosidade e o espírito de partilha que lhe são próprios, o poeta e amigo Frederico Ningi colocou-me na rota de distribuição da versão online da revista Literatas.

Da literatura moçambicana conhecia os velhos escritores revelados e consagrados no período anterior ou imediatamente posterior à independência do país, com realce para Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luis Bernardo Honwana. A antologia panorâmica do conto moçambicano “As Mãos dos Pretos”, de Nelson Saúte, editada pela Publicações Dom Quixote, permitiu-me alargar e actualizar esse conhecimento aos autores que desabrocharam nos anos posteriores à independência, até à década de 1990. Nomes como Ungulani Ba Ka Khossa, Albino Magaia, Paulina Chiziane, Marcelo Panguana, Suleimane Cassamo, e outros, passaram a integrar o meu imaginário com os seus contos escolhidos por Nelson Saúte.

Ora, de 2000 para cá havia um vácuo no conhecimento do que se passava em Moçambique em termos literários. O que se estava a fazer? Para lá do grande vulto de Mia Couto, que novos autores emergiram? Quais eram as suas preocupações temáticas? Como enquadravam, literariamente, a nova sociedade moçambicana, emergida no pós-guerra?

Aparentemente tão próximos, pela história e pela língua, Angola e Moçambique parecem culturalmente distantes: não existe um intercâmbio directo de obras culturais. O que se conhece de um lado e do outro é o que é publicado em Portugal.

A revista Literatas surgiu precisamente como uma pedrada no charco, uma iniciativa de jovens moçambicanos que aproveitam as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias para quebrar barreiras e ligar criadores da língua portuguesa espalhados pelo mundo. Com a Literatas Moçambique está mais junto a nós: na revista sentimos o pulsar e as inquietações dos novos autores e vislumbramos um pouco da dinâmica criativa e espiritual do país.

Mas também nos vemos ao espelho, pois, volta e meia, estão autores angolanos nas suas páginas, alguns dos quais em autêntica revelação,  a fazer jus ao ditado de que “nenhum profeta faz milagres na sua própria terra”.

Parabéns a Nelson Lineu, Eduardo Quive, Amosses Mucavele e a toda a equipa da Literatas! Que o vosso exemplo de empreendedorismo frutifique por muitos e longos anos.




segunda-feira, 11 de junho de 2012

Professora Carmen Tindó: Encantada pela magia das letras africanas


Isaquiel Cori

Carmen Tindó, professora de Literaturas Africanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esteve recentemente em Luanda, onde apresentou o novo romance de Manuel Rui, “Travessia por Imagem”, a convite da Editora Kilombelombe, e assistiu ao lançamento do Jornal Cultura. Já de regresso ao Brasil, ela respondeu a algumas questões colocadas por este jornal, enviadas por e-mail.


Jornal Cultura - O que nos pode dizer do estado actual dos estudos universitários no Brasil, em geral, e na UFRJ, em particular, a respeito da literatura dos países africanos de língua portuguesa?
Carmen Tindó - Há, na UFRJ e em muitas outras universidades brasileiras, grande interesse pelos estudos literários e históricos acerca do continente africano, especialmente sobre Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Creio que por serem os países de África que têm o português como uma de suas línguas. Lecciono há 19 anos as Literaturas Africanas na UFRJ e o interesse veio crescendo a cada ano, tendo aumentado com a Lei 10.639, criada pelo Presidente Lula, que exige a obrigatoriedade do ensino das culturas africanas e afro-brasileiras em todos os níveis de ensino e em todo o território brasileiro. Quando implantei, na UFRJ, o Setor de Literaturas Africanas em 1993, quase nenhum aluno ouvira falar dessas literaturas. Hoje, só na UFRJ, há mais de 30 teses e dissertações sobre as letras africanas, especialmente sobre autores angolanos: Pepetela, Luandino Vieira, Paula Tavares, Ondjaki, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, Uanhenga Xitu, Ruy Duarte de Carvalho, João Melo, João Maimona, Agualusa, Arnaldo Santos, entre outros. Nas demais universidades brasileiras, há também diversas teses e dissertações, cujos autores angolanos estudados são, quase sempre, os mesmos que acabei de mencionar.
JC - Que autores e livros de Angola e dos países africanos de língua portuguesa mais têm chamado a atenção da comunidade académica brasileira?
CT - Na maioria, os editados no Brasil e em Portugal. São os autores angolanos que referi na resposta anterior. Também são autores moçambicanos, como Mia Couto, Paulina Chiziane, Craveirinha, entre outros. Os livros de Mia Couto, Pepetela, Ondjaki e Agualusa são muito procurados. Os da Paulina Chiziane também. Alguns textos já são clássicos: Luuanda, do Luandino Vieira; os contos de Jofre Rocha, falando dos musseques; os de Arnaldo Santos, focalizando o Kinaxixi; “A morte do velho Kipacaça”, de Boaventura Cardoso; Quem me dera ser onda, de Manuel Rui; Mayombe, de Pepetela e muitas outras obras. Paula Tavares teve toda a sua poesia publicada, em 2011, no Brasil. Antologias poéticas também saíram, reunindo poemas de José Craveirinha, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim. As obras inteiras de Mia Couto e Pepetela estão sendo publicadas no Brasil. Isso é importantíssimo, pois são mais lidos os escritores editados no Brasil, em virtude de os livros saírem mais baratos.
JC - As obras de autores africanos de língua portuguesa, no Brasil, circulam apenas nos círculos universitários, por exigência curricular, ou tendem a ganhar também espaços nas livrarias e na imprensa?
CT - Em geral, a maioria dessas obras referidas só circula nos meios universitários. Na imprensa e nas livrarias, costumam aparecer: Mia Couto, Pepetela, Paulina Chiziane, Ondjaki, Agualusa. Paula Tavares começa a ser veiculada, depois de ter a obra poética reunida numa antologia publicada no Brasil pela Editora Pallas. O mesmo ocorre com as antologias dos poetas moçambicanos Craveirinha, Knopfli e Patraquim, editadas em Belo Horizonte. 
JC -    Nas obras de autores angolanos, o que mais interessa aos  leitores brasileiros?
CT - A reinvenção de mitos, tradições e a revisitação da história angolana pela ficção; o papel da mulher angolana nas sociedades tradicionais e na modernidade; o humor como crítica social. Obras como Jaime Bunda, do Pepetela; Filhos da pátria, de João Melo; Quem me dera ser onda, do Manuel Rui, entre outras, agradam muito, pois apresentam um riso que satiriza aspectos da sociedade angolana, alguns dos quais podem ser associados a determinadas situações ocorridas em contextos sociais brasileiros.
JC  - Tem uma ideia,  nem que seja aproximada, de quantas teses de licenciatura (graduação) e doutoramento, tendo como tema a literatura dos países africanos de língua portuguesa, foram produzidas, nos últimos anos, nas universidades brasileiras e, particularmente, na  UFRJ?
CT - Como respondi na primeira pergunta, na UFRJ, temos cerca de 30 teses e dissertações. A UFF deve ter também umas 30; a USP deve ter mais de 50; em todo o Brasil deve haver já umas 200. No portal da CAPES, órgão brasileiro de fomento e apoio à pesquisa universitária, as teses e dissertações de todo o Brasil são digitalizadas na íntegra para serem consultadas pelo público brasileiro e internacional. O endereço desse site é: http://capes.gov.br/avaliacao/cadastro-de-discentes/teses-e-dissertacoes
JC - Particularizando: o que a levou a dedicar-se profissionalmente ao estudo e ensino da literatura angolana, em particular, e africana, em geral?
CT - Eu sempre gostei de literatura, mas leccionava língua portuguesa e literatura brasileira. Quando soube que a UFRJ abriria concurso para Professor das Literaturas Africanas, resolvi estudar e fazer as provas. Eu tinha muitos livros, pois, quando fora a Cuba, comprara. Uma colega, casada com um engenheiro português que trabalhava em Luanda, sempre que voltava de Angola, me trazia variados livros; muitas obras eu também tinha adquirido quando viajara a Lisboa. Autores como Luandino Vieira, Mia Couto, Pepetela, Manuel Rui, Paula Tavares e Boaventura Cardoso me mostraram as múltiplas possibilidades de diálogos com a literatura brasileira. Decidi, então, mergulhar no estudo dessas obras. A qualidade dessas me fez optar por essas letras, cuja magia literária me encantou e me fez abraçar o ensino das literaturas africanas de língua portuguesa, na UFRJ, onde lecciono há 19 anos.
JC - Considera a literatura angolana suficientemente autónoma e adulta?
CT -
Embora a literatura angolana seja ainda recente, considero-a autónoma e adulta, uma vez que já se pode falar em um sistema literário angolano. Sistema no sentido empregado pelo crítico brasileiro António Cândido, quando aborda a formação da literatura brasileira. Nas letras angolanas, depreendem-se movimentos literários, cujas propostas dialogam, algumas vezes se opondo e se ultrapassando, de modo que fundam “gerações”, cuja trajectória delineia o corpo da literatura angolana, um corpo sistêmico que lhe dá um estatuto de maioridade e autonomia. Na minha opinião, nada é suficiente e definitivo. Assim, a literatura angolana está aberta a mudanças, transformações, como as demais  literaturas. Gosto muito da produção literária angolana. Penso que esta, aos poucos, se afirmará, cada vez mais, no Brasil e no mundo.
JC - Na sua última estadia em Luanda, o que mais lhe chamou a atenção?
CT -
O que mais me chamou a atenção foi ver uma preocupação com a cultura. Parabenizo a iniciativa do lançamento do “Jornal Cultura”, que pretende retomar alguns aspectos da antiga Revista Cultura, da qual participaram Luandino Vieira e outros. As muitas obras na cidade de Luanda podem ser, por muitos, consideradas como ícones da paz e da reconstrução nacional na sociedade angolana. Contudo, o desenvolvimento de Angola, a meu ver, tem de priorizar a cultura, as letras, a educação, a saúde e o transporte. Por isso, ao estar presente ao lançamento do “Jornal Cultura” e ao ouvir as propostas deste, fiquei muito bem impressionada, acreditando que será um veículo importante de desenvolvimento cultural em Angola. Também me despertou a atenção a alegria do povo comemorando dez anos de paz; ficou patente que nenhum angolano deseja mais guerras. Outro aspecto que me sensibilizou foi ver a quantidade de amigos que, nestes 19 anos de estudo das literaturas africanas, fiz em Angola.


Carmen Lúcia Tindó R. Secco é doutorada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi responsável pela implantação da disciplina de Literaturas Africanas no
Departamento de Letras Clássicas da mesma universidade.