Por: Isaquiel Cori
Adriano Mixinge, historiador e crítico de arte por ora emprestado
à diplomacia - é adido cultural na Embaixada de Angola em Espanha - faz hoje a
sua terceira entrega literária, depois do romance "Tanda", publicado
em 2006, em Luanda, pela Edições Chá de Caxinde, e da colectânea de ensaios
“Made in Angola: arte contemporânea, artistas e debates”, pela editora
L`Harmattan, Paris, 2009.
Sobre o autor e as suas outras facetas não me vou debruçar mais,
dado que nas orelhas desta edição de "O Ocaso dos Pirilampos" consta
uma resenha biográfica sua bastante elucidativa.
“O Ocaso dos Pirilampos” é uma narrativa bastante singular, com enorme
pendor subjectivo, intimista e confessional. É um monólogo que se espraia numa
linguagem simbólica, carregada de imagens surrealistas e evocações fantásticas.
Trata-se de um discurso poético em prosa,
entremeado por poemas em versos de evocação e exaltação ao Semba. Cito, na pág
46:
"…
e se o Semba fosse uma dor
não
haveriam gargalhadas
os
tons berrantes estariam numa
superfície de cera
se
ele fosse o silêncio da terra
seríamos
figuras num cemitério em miniaturas
não
haveria sons errantes de outras eras"
O personagem-narrador está perfeitamente
definido, tem vida própria. A narrativa tem profundidade e densidade e suscita
imediatamente a adesão do leitor apesar da linguagem impregnada de simbolismos,
cujo entendimento remete, ou melhor, convoca, a sua experiência de vida e toda
a sua subjectividade. O narrador/herói/personagem
transporta o leitor pelos caminhos da sua própria intimidade, do seu corpo, da
sua sexualidade, da sua memória e dos seus sonhos.
O narrador-protagonista é um ser arrogante, detentor de um poder
ilimitado sobre a vida e a morte dos seus servidores. Trata-se de um poder unipessoal, absoluto. É
um poder centrado no seu próprio corpo, do qual, literalmente, tudo emerge,
tudo é criado. Ele é o grande demiurgo: as cidades nascem do interior do seu
corpo para depois serem excretadas através dos seus vómitos. As urbes não
passam, afinal, de “restos”, de dejectos do detentor do poder absoluto. E os
habitantes vivem sob o signo do grande-chicote, simbolizado no falo
omnipresente do todo-poderoso personagem-narrador. Cito, na página 75:
"Quando digo aos meus subordinados
para entrarem no lugar em que toco o batuque, observo-os primeiro bem se têm ou
não nádegas volumosas. Até mesmo antes de certificar-me dos atributos físicos
das vítimas, fico logo teso: senhoras respeitáveis, maridos fiéis, militares
arrogantes, polícias, professores, engenheiras, dirigentes de partidos
políticos, líderes religiosos e guias de seitas religiosas, médicas, simples
empregadas de limpeza, solteiros, casados ou boémios, gente educada ou
sanzaleira, eu os submeto todos com o falo e eles já sabem, se querem desfrutar
dos sons do meu batuque têm é que ficar calados e não podem ter opiniões
próprias. Tudo o que pensarem tem de ser uma interpretação ajustada às minhas
ordens".
A concepção do poder como o acto de excretar (urina, fezes ou
vómito) está no centro deste romance. O poder brota do corpo humano, é gerado
nas entranhas. De certo modo, este livro é também um tributo ao corpo, à
fisiologia e aos ritos do corpo. Cito, na página 33:
..."Tudo surgia
do meu estômago de uma maneira surpreendente, era uma emanação directa do meu
desejo, dos meus sonhos. Depois era trabalho dos intestinos delgado e grosso,
que se deformavam até ao ponto de se transformarem em moldes, campos de
cultivo, fornos ou tubos de ensaio. Quando senti a pressão do cólon sigmóide e
das côcegas do recto ao ânus, abri os olhos: houve luz e com ela vieram as
cores".
O monólogo, que jorra como uma corrente de consciência, revela um
personagem solitário, apesar do seu poder desmedido, obcecado pelo seu próprio
corpo e cujo falo, que concentra toda a sua força, é a origem do bem e do mal.
Porque se trata de um monólogo, com o eu a calcar e a dar ênfase à subjectividade da narrativa, “O Ocaso
dos Pirilampos” introduz o leitor no inferno que é a vida interior do narrador.
O eu do personagem/ herói / narrador agarra o
leitor, puxa-o, como os braços de um náufrago na derradeira tentativa de
agarrar-se ao pescoço do seu salvador, e intima-o a uma identificação imediata
com o personagem. Num primeiro momento, o leitor consuma essa identificação,
mas depois recua, tamanha é a crueza e a crueldade patenteada pelo discurso do personagem/ herói / narrador.
Cria-se assim, no plano da leitura, uma tensão psicológica. O
esforço que resulta da necessidade de manter distância do personagem-narrador e
do facto de não se ter outro caminho para o perceber senão o de assumir a sua condição,
com o risco da transferência do eu do
narrador para o eu-leitor, redunda
num dos efeitos mais perturbadores desta obra.
Mas a grande perturbação, diríamos mesmo, o choque, que deriva da
leitura de “O Ocaso dos Pirilampos”, está na natureza intrínseca do personagem
e naquilo que os medos, os receios, as ansiedades, as memórias, os sonhos e,
eventualmente, as realidades - positivas ou virtuais - do leitor, lhe podem
acrescentar. Desse ponto de vista, até pode resultar que, afinal, o
narrador-protagonista de "O Ocaso dos Pirilampos" seja inocente: quem
lhe transmite as ressonâncias medonhas, porventura reais – passadas ou presentes
- ou imaginárias, é o próprio leitor.
Adriano Mixinge, neste seu romance, desvela os medos e os
fantasmas do homem angolano, imerso numa época de imensas encruzilhadas e
incertezas quanto ao futuro e à própria existência. Trata-se de uma narrativa inquietadora,
pois o leitor acaba por ser colocado diante das suas mais íntimas e secretas
fragilidades. O livro é uma espécie de psicanálise do poder – absoluto e
ilegítimo – na sua fase de degenerescência.
Cito, da página, 118:
"Oiço insistentemente
um barulho muito familiar, eco do meu batuque agora já muito desafinado e
esbranquiçado. Os rios do meu corpo coincidem com as comichões da Nação.
Enquanto todo o meu corpo cavernoso, a minha glande e o meu prepúcio descansam,
resgato os melhores pensamentos das sucatas da vida. O que penso é para
redimir-me: eu sei que vocês serão uns ingratos e recordarão este tempo como o
tempo do fracasso de todas as utopias, o do ocaso dos pirilampos, o da
decadência da minha geração, a geração de todos os guerrilheiros convertidos em
novos-ricos, em novos-pobres, ou completamente abandalhados no mundo, na
vida."
Para terminar, diria que o livro "O Ocaso dos
Pirilampos", de Adriano Mixinge, tem a grandeza daqueles que "sintetizam
e iluminam" uma determinada época e enquadra-se na tradição combativa e de
vanguarda da literatura angolana. Deixemos o livro seguir tranquilamente o seu
percurso no circuito de distribuição e nas nossas consciências de leitores.
Muito obrigado.
OBS: Texto de apresentação lido no acto de lançamento do livro e simultaneamente de entrega do Prémio Sagrada Esperança a Adriano Mixinge, no Memorial Dr. António Agostinho Neto, em Luanda, no dia 07 de Março de 2014. A foto da capa é da edição portuguesa chancelada pela Guerra e Paz. A edição angolana foi feita pelo Instituto Nacional das Indústrias Culturais (INIC).
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