Isaquiel Cori
O
escritor Manuel Rui (MR), um dos mais prolíferos do país, entregou ao público
leitor, no dia 15 de Janeiro de 2014, na UEA, o romance "A Trança",
editado pela Mayamba com uma tiragem de 2 mil exemplares.
Como
o autor sinalizou no acto de lançamento, o novo livro representa uma mudança de
estilo e de abordagem da sua própria escrita. "Talvez 'A Trança' possa ser
encarada como uma mudança de estilo, uma mudança de ideias. Mudar não é triste,
nem é triste mudar de ideias. Triste é não ter ideias para mudar".
Escrito
numa altura em que se debatia com problemas de saúde, MR decidiu que o seu novo
romance "não deveria ser longo nem triste, e trataria da espiritualidade
africana, também como metáfora da força do pensamento".
"A
Trança", efectivamente, garante uma leitura leve, com uma trama
inicialmente simples, aparentemente linear, mas que depois se complexifica
quando, no contexto rural do Huambo, a personagem principal se vai adentrando
nas questões da espiritualidade das suas origens locais. Com o novo livro MR
completa um movimento que começou em "Quitandeira e aviões", seu
livro de contos publicado em 2013. Esse movimento consiste numa espécie de
regresso ao chão dos seus leitores comuns, depois de, com os romances
"Rioseco" e "Travessia por imagem", ter embarcado numa
escrita densa, com forte pendor experimentalista e enredos e personagens
complexos. Essa sua ambição demiúrgica de realizar uma espécie de romance
total, que abarcasse a vida na maior amplitude possível, com recurso a uma
linguagem laboratorialmente refinada, foi aplaudida pela crítica académica no Brasil,
Portugal e outros países. Vários ensaios
e dissertações de licenciatura, mestrado e doutoramento foram dedicados a ambos
os livros.
Primeiro
com "Quitandeiras e aviões" e mais ainda agora com "A
Trança", reiteramos, MR regressa às origens, no que à comunicabilidade com
o grande público leitor diz respeito. É sintomático que na mesma ocasião tenha
sido lançada mais uma edição de "Quem me dera ser onda", (agora com
uma tiragem de 10 mil exemplares) porventura o maior best-seller da história da
literatura angolana, fazendo parte indelével do imaginário de várias gerações
que o leram na infância ou na adolescência. Abrimos aqui um parênteses para
apelar à reedição da novela "Crónica de um mujimbo", do mesmo MR, que
já não se encontra a venda em lado nenhum mas encerra aspectos de extrema
actualidade.
"A
Trança" mostra-nos um MR absolutamente senhor dos seus recursos
estilísticos, que não se fecha no gozo da sua própria escrita mas entrega-se ao
leitor com a maior vontade de o servir. Toda a maturidade artística e pessoal
de MR está ao serviço do seu novo romance: no livro só está o que lá devia
estar, está-se diante de uma narrativa enxuta, desengordurada, sem digressões
desnecessárias, sóbria. Por um momento MR parece ter abandonado a ironia e o
humor corrosivo característico da sua obra. O autor alcançou o objectivo de não
escrever um livro triste, mas, é preciso que o digamos, "A Trança" é
uma narrativa muito séria. Talvez a circunstância de o ter escrito doente explique
essa faceta. Em termos da serena maturidade patente na obra, este romance
faz-nos lembrar "As palavras", de Jean-Paul Sarte e "O velho e o
mar", de Ernest Hemingway.
Mestre
em registar e recriar os modos de falar angolanos, MR dá a expressões que habitual
e distraidamente usamos ou ouvimos na rua novos ecos, ressonâncias artísticas e
estéticas até então insuspeitas. Atentemos ao diálogo de Maria com o ardina Kasese, logo à saida do aeroporto:
"Como te chamas?" / "Kasese" / Não tens um jornal
antigo?" / "Antigo mais como
então?"
O
narrador gruda-se em Maria, conta a história por ela e através dela. Maria,
"a dos olhos verdes e tranças de fogo", é uma mulher cosmopolita,
viajada, portadora de "várias origens e que regressa à sua origem
angolana". Passou a infância e a adolescência na Alemanha, indo viver mais
tarde na Holanda. Em Angola pela primeira vez, passa rapidamente por Luanda e
vai de autocarro ao Bimbe, no Huambo. Lá, a avó atribui-lhe um novo nome:
Citula.
A
partir daí MR transporta o leitor para a nova Angola, do pós guerra; não a nova
Angola urbana, de asfalto e enormes vultos de cimento armado e vidros
reluzentes. É uma Angola bucólica, pacata, que vive em comunhão com o espírito
da terra e dos ancestrais. Maria, agora Citula, é iniciada na tradição e na
espiritualidade ovimbundu, redescobrindo ela própria, também, as memórias dessa
origem, que lhe foram inculcadas na infância. Através do olhar de Citula o
narrador oferece ao leitor uma soberba descrição do mundo rural angolano, que
alimentarmente se basta a si mesmo, até com fartura, e onde se vive em comunhão
com os espíritos.
O
final do romance é um hino ao fantástico, à magia e à tradição ancestral. É um
mergulhar profundo de MR, e com ele do leitor, naquilo que um dia Henrique
Abranches chamou de "realismo animista", referindo-se a uma
manifestação literária especificamente angolana, em que se celebra o encontro
da modernidade com a ancestralidade e em que os espíritos da terra e dos mortos
vêm ao convívio dos vivos, em contraposição ao chamado "realismo
fantástico", típico da literatura latino-americana e que tem no colombiano
Gabriel Garcia Marquez, com o celebrado romance "Cem anos de
solidão", o seu maior epítome.
"A
Trança" é, no fundo, o país que Manuel Rui tanto ama e que é um melting
pot de saberes, de sabores, de ideias, pensamentos e criação póprias",
sintetizou Amélia Mingas, ao fazer a apresentação do livro. "Até que ponto
esta obra não tem alguma ligação mais directa ao próprio autor? Ou se o avô que
Citula queria ver renascer não seria o país que ela amava e aprendeu a amar
através do pai?".
Leia aqui www.isaquielcori.blogspot.com/2016/03/escritor-manuel-rui-escrevo-sobre-o.html entrevista ao escritor, a propósito.
Leia aqui www.isaquielcori.blogspot.com/2016/03/escritor-manuel-rui-escrevo-sobre-o.html entrevista ao escritor, a propósito.
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