quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Professor Francisco Noa fala da literatura de Moçambique e da língua portuguesa no espaço africano: "Temos estudos que podem legitimar as nossas variantes"

(NOTA: A entrevista que a seguir transcrevo foi produzida e publicada em 2014, quando estava profissionalmente vinculado ao jornal Cultura, na qualidade de editor de Letras. Publico-a neste lugar por causa da sua notória actualidade.)

                                                                       
    
Francisco Noa com o Presidente da República de Moçambique Filipe Nyusi, em 2015 (Foto de Ferhat Momade)

Francisco Noa, doutor em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, docente das Universidades Eduardo Mondlane, de Moçambique, e Agostinho Neto, de Angola, ensaísta e crítico literário, foi um dos ilustres convidados ao III Congresso Internacional da Língua Portuguesa da Universidade Jean Piaget de Luanda, realizado nos dias 16, 17 e 18 de Setembro de 2014. Apresentou a comunicação “A Contribuição da Literatura no Desenvolvimento da Língua Portuguesa”. Gentilmente concedeu ao jornal Cultura a entrevista que a seguir se transcreve.

Jornal Cultura – Um aspecto que ficou marcado no congresso da UniPiaget é o facto de nos países africanos a escola tender a impor uma norma da língua portuguesa afastada do uso corrente da língua. Porque não elevar à norma aquela variante que afinal é a língua dos cidadãos?
Francisco Noa – É muito fácil imputarmos as culpas aos políticos mas é uma situação extremamente delicada que vai levar, infelizmente, muito tempo a ser resolvida. Podemos olhar para o exemplo do Brasil, que tem hoje uma norma surgida da variante brasileira. Isso foi o reflexo de muita discussão. O Brasil ficou independente em 1822 e houve a preocupação de criar uma literatura e toda uma mundividência que reflectisse aquilo que o Brasil era culturalmente. Houve, durante décadas, um grande debate entre aqueles que defendiam a variante que tinha a ver com a especificidade, estou a pensar num José de Alencar, e aqueles que defendiam o registo clássico, digamos, culto, da língua, caso de Machado Assis. Só durante o século XX é que a variante se transformou em norma. Os nossos países estão com quarenta anos de independência e se formos às Universidades Agostinho Neto e Eduardo Mondlane, entre outras, vamos encontrar já muitos estudos de especialistas em linguística, com muita qualidade, que serviriam para validar, legitimar, a adopção das nossas variantes do português como normas. Penso que o impasse que existe neste momento é o que Jean-François Lyotard dizia no seu livro famoso, “A Condição Pós-Moderna”, entre aqueles que têm que decidir o que saber, que são os da academia, e os que têm que saber o que decidir, que são os políticos. O que eu quero dizer é que esse impasse de alguma forma tem de ser quebrado, sendo necessária também coragem política.

JC – A discussão tem de sair da academia para a sociedade.
FN –E sobretudo para a política. Isso tem de ser um processo. Há muitos erros ortográficos e de natureza morfo-sintáctica e não podemos ser paternalistas e nos escudarmos permanentemente nas questões das línguas africanas. É preciso que exista um equilíbrio entre aquilo que é a tendência global dos nossos países, do ponto de vista das falas que se vão cristalizando, e aquilo que deve ser a norma e que deve legitimar uma certa qualidade comunicativa. A minha grande preocupação é a nível da escrita. Por isso eu coloco a questão: quais são os limites que a própria escrita se deve impor no sentido de ela manter a sua integridade? A escrita foi e será sempre sagrada, será sempre um registo mais estável e nobre do uso da língua. Significa que na adopção da norma é preciso que haja muitas precauções no sentido de evitarmos resvalar numa espécie de caos linguístico que obviamente vai gerar um caos comunicativo. Entendo que, sobretudo entre os jovens, há uma tendência cada vez maior de escreverem poesia e narrativas tal e qual como eles falam e o que eles falam tem a ver com a variante. É necessário haver todo um trabalho de concertação entre os poderes políticos e a academia. Isso parece-me irreversível.

JC –  A sua comunicação no congresso foi sobre a relação entre a literatura e a língua portuguesa. Pode fazer um resumo breve para os nossos leitores?
FN – Defendi, basicamente, que a literatura tem dado um grande contributo à estabilização e ao desenvolvimento da língua portuguesa. Dei o exemplo do Brasil, mas nós, quer em Moçambique como Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, vamos vendo que cada vez mais a literatura, além da relação com o quotidiano, tem uma relação muito profunda com a língua. Ela vai espelhando as tendências da língua dos pontos de vista lexical, semântico, morfo-sintáctico… Vai registando essas marcas e, de certo modo, legitimando o uso dessas marcas. No entanto, há uma situação no mínimo paradoxal. Apesar de a literatura ser um registo culto, ela vai inspirar-se nas falas populares, as falas das massas anónimas da população que reinventa a língua portuguesa todos os dias, atribuindo novos significados às palavras, acrescentando novas palavras ao universo da língua portuguesa, aportuguesando palavras das línguas bantu ou registando algumas das principais tendências das variantes, onde nós vemos claramente as interferências das línguas bantu. Sendo um espaço de possibilidades, a literatura mostra as enormes possibilidades plásticas que a língua portuguesa possui e explora isso ao limite. Temos os casos, entre outros, do brasileiro Guimarães Rosa, dos angolanos Luandino Vieira, Uanhenga Xitu, Ondjaki, de José Craveirinha, do Mia Couto, em que é manifesta a relação não só com um universo existencial mas sobretudo com a língua. Há claramente nesta relação com a língua portuguesa uma nativização e africanização da língua portuguesa.

JC – Pode traçar-nos um panorama sucinto do estado actual da literatura moçambicana?
FN – O que eu sinto em relação à literatura moçambicana é que há uma certa vitalidade, a nível da produção, e da reflexão sobre ela, que, entretanto, bem poderia ser maior. Sobretudo entre os jovens há uma grande vontade de produzir literatura, o que se vai reflectindo em algumas obras que manifestamente apresentam alguma qualidade, que nalguns casos é já assinalável. Como sabe, a literatura moçambicana passou por um momento menos bom, em que havia certamente alguma produção, mas sinto que hoje essa produção é acompanhada por alguma preocupação pela qualidade, quer a nível da poesia quer da prosa. Há um movimento dos jovens no sentido de discutirem a própria produção literária, sobretudo nos meios próximos às Universidades. Há sinais muito fortes e promissores no sentido de que a vocação e a marca de qualidade que vem dos anos 40 e que depois foi revitalizada nos anos 80 esteja de regresso. E com uma forte pujança. Alguns dos jovens autores têm um forte compromisso com uma certa tradição literária que existe em Moçambique.

JC – Em Angola temos algum conhecimento da literatura moçambicana que vai até à geração da Charrua, com nomes como Marcelo Panguana, Eduardo White, Ungulani Ba Ka Kossa. E há os casos particulares de Mia Couto e Paulina Chiziane. A antologia do conto moçambicano “As mãos dos pretos”, organizada por Nelson Saúte e editada em Portugal, foi vendida em algumas livrarias de Luanda. Mas desconhecemos o quadro das novas gerações. Pode elucidar-nos?
FN – Esse desconhecimento está a tornar-se estrutural e circular. Não sabemos muito do que os outros países produzem. Se em relação à poesia houve uma espécie de continuidade, contudo com aspectos inovadores importantes sobretudo do ponto de vista de uma certa trans-nacionalidade, que eu percebo, sobretudo em relação à actual produção moçambicana há uma grande preocupação com a representação do quotidiano, o que é uma marca das literaturas africanas no geral, esse compromisso com o meio em que elas surgem. As realidades africanas têm uma dimensão épica, porque temos grandes transformações a acontecer e isto funciona como inspiração, não só para os jovens mas também para os mais velhos, já que há uma espécie de compulsão criativa no sentido de registar toda essa pulsação que acontece do ponto vista social, cultural, político e a outros níveis. E a nível da prosa, sobretudo do conto, que é uma das grandes marcas da literatura moçambicana – contrariamente ao que muitos pensam, o conto é um género muito difícil – vão aparecendo alguns jovens que mostram qualidade, mas faltará no nosso universo uma crítica jornalística que poderia dar maior visibilidade às obras produzidas. Há uma crítica universitária mas que fica confinada às paredes das Universidades. Não gostaria de ser injusto mas há uns jovens que se destacam: o Clemente Bata, que lançou, há uns anos, o livro de contos “Retratos do Instante” e é universitário. Não quero dizer que para ser bom escritor tem que se ser estudante universitário, mas que o contacto com textos teóricos e com alguma reflexão mais elaborada na Universidade vai permitindo que esses jovens tenham uma maior capacidade e amplitude na forma como produzem e sobretudo um maior domínio das técnicas narrativas. Um dos grandes exemplos é o Lucílio Manjate, que é professor assistente, produz regularmente e tirou recentemente uma novela, “A Legítima Dor de Dona Sebastião”, que é, de certo modo, uma novidade na literatura moçambicana, porque além da preocupação com o quotidiano é uma narrativa marcada por um ritmo policial, com um texto muito bem conseguido em termos do enredo e da técnica narrativa. O Alex Dau, em “Reclusos do Tempo” oscila entre a preocupação com as pequenas ocorrências do quotidiano e as emoções do universo tradicional. Muitos jovens têm uma ligação com o universo tradicional muito residual, mas eles devem desenvolver alguma pesquisa para recuperar esse universo. O Andes Chivengue, no seu livro de contos, “Febre dos Deuses” apresenta umas marcas obsessivas do ponto de vista temático mas sinto que é um escritor com enorme potencial e que se mantiver uma certa constância e alguma profundidade pode ser um autor de referência na nossa literatura. Temos o Hélder Faive, com “Contos de Fuga”, conjunto de contos premiados onde é notória a preocupação com os dramas individuais, familiares e sociais, com forte ironia e uma assinalável qualidade criativa. Esses jovens sentem que nós vivemos numa sociedade em transição e a literatura funciona como um mecanismo de registar os movimentos dessa mesma transição. As obras que eles apresentam mostram que já dominam um conjunto de leituras que lhes permite um certo desembaraço do ponto de vista da técnica, da criatividade e da representação de uma determinada realidade.

JC – Tem chegado até nós, até recentemente com alguma regularidade, a revista electrónica Literatas, do movimento Kuphaluxa. Fale-nos desse movimento e da sua inserção na vida cultural de Moçambique.
FN – Esse movimento, para mim, além de funcionar como um sintoma, no sentido de que há uma ânsia desses jovens em estarem sintonizados com aquilo que é a produção cultural e literária, também é uma iniciativa extremamente meritória e válida. Penso no Nelson Lineu, no Arijuane Japone, no Eduardo Quive, entre outros… São jovens que estão a deixar uma marca, sobretudo porque não estão só a produzir literatura, sendo a poesia o seu registo mais importante, organizam palestras e encontros com convidados que já têm algum percurso criativo ou académico. Eles estão a ser, de facto, uma referência importante na nossa literatura. Claro que há alguns excessos, em alguns deles, o que é apanágio e natural nos jovens, com algum exibicionismo à mistura. O mérito está naquilo que está por detrás desse tipo de iniciativas, que acaba por ter um grande impacto junto dos outros jovens. Como sabe, nós vivemos tempos muito difíceis, em que os jovens vivem uma grande desorientação e uma grande lacuna do ponto de vista daquilo que seriam as referências nobres e estáveis para sua vida. Com a preocupação de se aglutinarem a volta de uma revista e de fazerem tertúlias, tal como aconteceu com a geração da Noémia de Sousa, do José Craveirinha e do Rui Knopfli à volta do “Itinerário”, e com a geração do Ungulani Ba Ka Kossa, o Eduardo White, o Suleimane Cassamo, o Armando Artur, e outros, à volta da Charrua, esses jovens vão certamente deixar uma marca na literatura moçambicana.

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FRANCISCO NOA é Doutor em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Ensaísta e professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique, é também investigador associado na Universidade de Coimbra, em Portugal. Foi professor na Universidade Agostinho Neto, em Angola.
A sua área de pesquisa actual abarca os temas da colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, a literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico, a partir da literatura. 
Actualmente é Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), em Moçambique.

PUBLICAÇÕES:
- Literatura Moçambicana: Memória e Conflito, Imprensa Universitária, 1997.
- A Escrita infinita, Imprensa Universitária, 1998/2003.
- Império, mito e miopia. Moçambique como Invenção Literária, Caminho, 1998/2002.
- A letra, a sombra e água. Ensaios & Dispersões, Texto, 2008.
- Perto do Fragmento, a Totalidade. Olhares sobre a literatura e o mundo, Ndjira, 2014.


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